Nesta sexta-feira estréia no Brasil o documentário Super Size Me, do norte-americano Morgan Spurlock. Os outdoors estampando o rosto do diretor/protagonista sufocando em batatas fritas já estão espalhados pela cidade. Os rumores sobre o filme também: para alguns, uma espécie de Tiros em Columbine gastronômico; para outros, um caça-níqueis dedicado a demonstrar o óbvio. Há um pouco de verdade nessas duas versões – o que não diminui os méritos do filme. Spurlock mantém o interesse e a relevância de sua idéia ao longo dos 98 minutos de Super Size Me. O alerta de Spurlock convence pelo realismo às vezes nauseante de suas imagens.
A idéia, de fato, parece óbvia: fazer todas as refeições diárias no McDonald’s por trinta dias, sem exceção, para verificar seus efeitos no organismo. Ora, todos sabemos que a maior parte das redes de fast-food não prima por qualidades nutricionais, e que uma dieta de hambúrguer e refrigerante engorda. Por que dedicar um filme inteiro para provar o que já é conhecido por todos? A resposta está no início do filme, num documento oficial apresentado pelo McDonald’s por ocasião de um processo em que adolescentes dos Estados Unidos culpavam a rede por sua obesidade e pediam indenização. A empresa norte-americana não assumiu responsabilidade, acrescentando que só consideraria a hipótese de responder sobre os efeitos deletérios de seus produtos quando fosse provado que uma dieta composta exclusivamente de comidas do McDonald’s faz mal à saúde. Afinal, como saber se os adolescentes haviam comido outras coisas ainda mais prejudiciais?
Spurlock decide encarar o desafio. Faz de si mesmo cobaia, seguido por equipe de filmagem e acompanhado por três médicos. Passa por uma bateria de testes, que medem seu condicionamento físico, índice de gordura no corpo, e níveis de substâncias no sangue, como colesterol. Jovem e saudável, recebe dos três médicos um prognóstico similar antes de começar a experiência: vai engordar, seu colesterol provavelmente vai aumentar um pouco, e só. Os médicos não se mostram alarmados, nem mesmo muito interessados, pois os supostos efeitos da dieta, além de previsíveis, não parecem assustadores.
Ovo mexido com pão doce
E lá se mete Spurlock em sua jornada de Big Macs, Chicken McNuggets e fritas em tamanho extra-grande. Spurlock corta suas atividades físicas, para se igualar à média sedentária. Para se manter dentro do número médio de passos dado por um norte-americano, tem de se restringir às escadas que levam da entrada de seu prédio à porta do apartamento. Até para ir ao McDonald’s da esquina ele tem de pegar táxi.
Spurlock tem de provar cada item do cardápio pelo menos uma vez. No café-da-manhã, come sanduíche de ovo mexido com bacon em pão semidoce. Sempre que os funcionários oferecerem a promoção “Super Size” – ou seja, aumentar a porção para o tamanho máximo por alguns centavos a mais –, ele aceita. No início, seu estômago é pequeno demais para os refrigerantes em balde e as batatas-fritas que não acabam. Ele vomita, diante da câmera. Começa a engordar, a ficar flácido, a ter dores de cabeça, pára ofegante no meio da escada, tem depressão e mau-humor constante. A namorada, vegetariana radical, nota queda em seu desempenho sexual. A câmera mostra Spurlock jogado na cama, a barriga crescendo, empunhando um Mc Fish tristonho e murcho. O cardápio vai se revelando repetitivo e restrito.
O gosto é bom!
Mas isso tudo não é o mais impressionante. O mais impressionante é que, apesar de todos esses efeitos no corpo e na cabeça, Spurlock exclama, ele mesmo surpreso, ao longo de todo o filme: a comida é gostosa. É gostosa! Todos nós que já provamos lanche do McDonald’s podemos entender o porquê. As fritas crocantes que recebem caldo de carne em sua preparação para realçar o sabor; os sanduíches untuosos, vazando maionese e molho especial; o milk-shake cremoso e suave como papinha de nenê. O gosto tem apelo fácil – não à toa, apelo infantil. As características de cada ingrediente (salada, carne ou frango) são atenuadas, resultando em uns poucos sabores básicos e padronizados. O frango, o pão e o peixe ficam todos com gosto e consistência de isopor, com a única graça do sal e do glutamato monossódico. Aquele slogan da Elma Chips – “É impossível comer um só” – indica esse agrado viciante de tudo que é salgadinho. Do mesmo modo, o excesso de açúcar também agarra paladares pela sedução do doce – em bebidas, sobremesas, condimentos, até nos sanduíches salgados. Tudo é molinho: a comida não oferece resistência nem na hora de morder.
As ocasiões em que Spurlock comenta o sabor gostoso da comida passam quase despercebidas no filme, em meio às entrevistas com especialistas e às suas sucessivas visitas aos médicos. Mas é nessas ocasiões em que está um dos aspectos mais perturbadores do filme: mesmo sabendo que a comida faz mal, boa parte das pessoas come, e muito, no McDonald’s e em redes equivalentes de comida rápida. Não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro.
Fórmulas de sucesso
Muita gente já tentou explicar por quê. No filme, Spurlock aponta para o poder persuasivo do McDonald’s, que combina um lobby fortíssimo no Congresso americano (para evitar medidas públicas que a empresa considere prejudiciais a seus interesses) com presença ubíqua nos meios de comunicação, numa espécie de “doutrinação” alimentícia. A propaganda é voltada, em especial, para um segmento especialmente vulnerável: as crianças. Em uma das cenas mais engraçadas do filme (e justificando as comparações com Michael Moore, pelo mesmo estilo de provocar situações “artificialmente” para criar sensação), Spurlock sabatina crianças em uma escola primária. Nem todas sabem quem é George W. Bush, mas todas conseguem identificar o palhaço Ronald.
O uso maciço e astuto de meios de comunicação ajuda a entender o sucesso da rede. Outras hipóteses sugerem um fator sócio-econômico: a comida rápida é mais barata que alimentos saudáveis e nutritivos. Isso inclui não só a diferença entre restaurantes de fast-food e os demais, como também a diferença entre comidas industrializadas e frescas. A produção massificada, em especial no primeiro mundo, muitas vezes torna mais barato comprar pratos congelados, enlatados ou em pó do que os vegetais e carnes separadamente. Considerando-se o tempo de preparo, comidas prontas parecem ainda mais vantajosas. Finalmente, estratégias de distribuição e oferta também contribuem para formar o hábito de fast-food. Spurlock mostra isso de forma desconcertante, ao revelar o cardápio gordurento e insalubre de inúmeras escolas norte-americanas – onde “batatas fritas” são consideradas uma opção de legume.
Suicídio por overdose de hambúrguer
O filme de Spurlock tem valor por levantar algumas das questões que citei, e por mostrá-las de modo contundente. Ele também usa o seu meio de comunicação – o cinema – para persuadir, causar impressão e afetar a platéia. O estilo divertido e rápido da filmagem, a sedução da imagem, o alcance de público garantido pela distribuição e publicidade – tudo isso se combina para transformar Super Size Me em um poderoso meio para transmitir a mensagem. Talvez até mais poderoso, em termos de sua difusão, que um estudo científico ou um parecer legal.
Além disso, o filme de Spurlock termina por chocar até mesmo o diretor e seus médicos, pelos resultados surpreendentemente nocivos da dieta. Os onze quilos que Spurlock ganhou são o menor dos males. O colesterol disparou – e não apenas um pouco, como os médicos haviam previsto no início. O fígado se deteriorou, à beira da cirrose. Os médicos compararam seu estado com o do fígado de um alcoólatra. “Se você quiser, pode se matar se entupindo dessa dieta,” disse um dos clínicos, fazendo paralelo com o filme Leaving Las Vegas, em que o protagonista, vivido por Nicholas Cage, decide se embebedar até morrer. Outras substâncias começaram a se alterar no sangue de Spurlock, mostrando que seus órgãos já não estavam dando conta de processar a overdose de açúcar, gordura, carboidrato e proteína animal. O nível de ácido úrico, por exemplo, subiu (a chamada hiperuricemia). Os médicos trocaram o ar de troça e indiferença iniciais por expressões preocupadas, e todos eles afirmaram veementemente: Spurlock deveria interromper sua dieta imediatamente, a apenas dez dias do final, ou estaria colocando sua saúde em risco.
Caso exemplar – ou isolado?
Spurlock continuou, e sobreviveu. Mas a devastação da dieta de McDonald’s sobre o corpo em forma e saudável de um homem de trinta anos parece não deixar dúvidas sobre a questão inicial da empresa de comida: uma dieta exclusiva de McDonald’s está ligada não apenas à obesidade, como a outros efeitos danosos e potencialmente letais. O filme explora esse impacto surpreendente com competência. Entretanto, é aí também que mora um de seus pontos fracos: o exemplo de Spurlock, por mais convincente que seja, não é suficiente para ter valor legal ou científico. Estudos médicos sobre o efeito de alimentos têm de envolver um número muito maior de pessoas para compensar as variações individuais de metabolismo – nem todos reagem da mesma forma às mesmas condições. Além disso, a condução de um tal estudo tem de seguir regras rígidas que vão desde a medição e o controle de substâncias ingeridas até o acompanhamento minucioso de índices vitais. De certa forma, continuamos onde começamos: sabemos que a comida do McDonald’s faz mal à saúde, e agora sabemos também que faz muito mal a Spurlock. A comida é nociva, é óbvio, mas cadê a prova científica?
O filme de Spurlock levanta a lebre; seu valor está em chamar a atenção. E, claro, se modificar os hábitos alimentares de alguém apenas por suas imagens impressionantes, também já terá cumprido sua função. Já um estudo rigoroso leva tempo, e suas demandas éticas e logísticas podem torná-lo impossível – sem falar na pressão de grupos poderosos, como cadeias de fast-food. Há, no entanto, muita literatura sobre o tema, inclusive um best-seller - País Fast Food (no original, Fast Food Nation), de Eric Schlosser. Lançado em 2001, o livro é, como Super Size Me, um libelo contra a indústria de comida rápida. O autor não esconde sua posição política, muitas vezes radical, não apenas contra os malefícios alimentares, mas também contra o sistema injusto e opressivo ligado à produção de comida industrializada, exemplificado pelas condições deploráveis de abatedouros e frigoríficos, ou pela extinção de pequenos criadores, “esmagados” pelas grandes companhias de agropecuária. Independentemente das opiniões do autor, o livro é um trabalho exemplar de pesquisa e jornalismo investigativo, e apresenta informações inéditas e muitas vezes arrepiantes sobre todo o processo de produção e consumo de fast-food, além de analisar sua relação com o modelo de urbanização e industrialização norte-americano.
É bom lembrar, por fim, que comida gordurosa e prejudicial à saúde não é novidade nem invenção de cadeia de fast-food – lingüiça, bacon, manteiga, creme, frituras, açúcar e farinha refinados estão presentes em culinárias populares e sofisticadas no mundo inteiro. Assim, qualquer crítica à comida rápida não pode se restringir apenas a seus ingredientes nocivos, mas deve considerar o contexto social, econômico, cultural e político de sua indústria. Ao mesmo tempo, não basta eliminar o Big Mac e seus comparsas para garantir uma dieta saudável. Por mais que fatores externos influenciem nossos hábitos, a maioria de nós tem, em geral, condições de decidir o que entra em nossas bocas, e assumir a responsabilidade mesmo quando outros (como as empresas de que nos vendem as comidas) se recusam a fazê-lo.
Spurlock parece mesmo um cara esperto, por ter feito esse documentário. Ainda que o filme seja ruim, ele provou o que queria: que comer fast-food todo dia faz mal. Mas isso, como foi colocado, é de conhecimento geral. E a esperteza foi ter feito isso com o Mac Donalds, para dar um efeito crítico - uma pena é a crítica não se sustentar. Porque, veja: fast-food faz mal. Tem certeza? E se alguém se propusesse a comer todos os dias torresminho e tutu, num restaurante tradicional: o resultado seria o mesmo.