O mês de julho de 2004 foi marcado por uma notícia triste, devidamente registrada aqui, no "Digestivo nº 184": o fim prematuro d'O Pasquim21, a versão ressuscitada e reformulada do antigo e célebre jornal de resistência à repressão política do regime militar. Em sua reedição, a publicação contava com uma equipe de colaboradores de primeira linha - muitos dos quais egressos do primeiro Pasquim - um criativo e arrojado projeto gráfico, impressão em papel de muito boa qualidade e um sistema eficiente de distribuição nas principais capitais. Eu costumava adquirir o jornal com alguma regularidade e sempre me deliciava com o humor ácido e inteligente dos textos, tiras e charges, com as críticas a questões da atualidade, muitas feitas por meio de uma ironia mordaz e apreciava, sobretudo, o fato de ter em mãos uma publicação de alto nível que demonstrava um esforço em manter o bom senso nas análises, apesar de, vez por outra, tropeçar nas suas assumidas convicções políticas, esquecendo-se, nestas ocasiões, de que o apego a crenças e ideologias, sejam elas quais forem, não pode, jamais, sobrepor-se à percepção objetiva e implacável da realidade, ainda mais num segmento como o da imprensa, em cuja atuação livre e honesta repousa um dos pilares capitais da saudável estabilidade democrática.
A pergunta que não quer calar, portanto, é: se o jornal era possuidor de tantas qualidades, se apresentava requisitos de sobra para assegurar uma carreira duradoura e consistente num país carente de publicações semelhantes, por que se viu forçado a encerrar suas atividades? Imagino que muita gente tem, na ponta da língua, uma explicação automática e perigosamente óbvia: porque o povo brasileiro não lê praticamente nada, porque somos uma pátria de ignorantes funcionais, na qual os jornais só sobrevivem graças aos cadernos de esportes, de TV e às seções de horóscopo; querer, portanto, que um periódico semanal, concebido e levado a cabo por veteranos intelectuais vingasse, era uma utopia tão disparatada quanto a crença ingênua e algo apaixonada - em voga até muito recentemente -, de que a mera chegada ao poder no Brasil da esquerda (na acepção tradicional do termo), capitaneada por um ex-operário oriundo das massas iria, num piscar de olhos, trazer uma solução imediata e milagrosa aos seculares problemas do país os quais, de tão antigos, encontram-se entranhados na sociedade, como mofo num porão úmido que não é ventilado há décadas.
A questão, contudo, não é assim tão simples. É verdade que o povão, em geral, não se interessava pelo Pasquim21 (como não se interessa pela Bravo, pela Cult, pela Carta Capital, e por aí adiante), pois a maioria, lamentavelmente, ainda mal é capaz de decodificar uma frase breve e elementar de sujeito, verbo e predicado, que dirá assimilar as elaboradas e bem-humoradas análises que o jornal publicava todas as semanas. Mas, o fato é que, desde a chegada do primeiro número às bancas, em fevereiro de 2002, eu me incomodava com a sensação de estar diante de uma publicação brilhante, porém fora de sua época, não pelo conteúdo e sim pela relação com o público. Explico:
Vivemos, hoje, num Brasil muito diferente daquele dos anos setenta, quando o primeiro Pasquim vicejou. Desde então, tivemos a lei da anistia, o regime militar acabou pacificamente e a democracia consolidou-se, assegurando liberdade de imprensa, pluripartidarismo e eleições diretas a cada dois anos. O passado autoritário, apesar de ainda recente, tornou-se uma referência vaga e sem grande significado para a maior parte dos brasileiros. A queda do Muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a conseqüente decadência das ilusões socialistas frente ao avanço impiedoso do trator capitalista, puseram em xeque a tradicional divisão política bipolar que, durante décadas, alimentou o embate ideológico em todo o Ocidente. A simples oposição entre direita e esquerda, apesar de continuar a existir e a rever seus conceitos, dando vida a novas formas de pensamento em sintonia com as demandas do mundo atual, já não é suficiente para diagnosticá-lo e propor-lhe, sozinha, soluções factíveis e convincentes.
Do mesmo modo, o fim da censura política e a crescente concorrência entre as empresas de comunicação fizeram deflagrar uma prática inédita no Brasil de se denunciar abertamente atos de corrupção e incompetência administrativa em todas as esferas do poder público nacional o que, conjugado ao eternamente precário (quando não mal-intencionado) desempenho das nossas autoridades e legisladores no intuito de dar ao país condições decentes para que se desenvolva social, humana e economicamente, levou a opinião pública - antes esperançosa de que o retorno à democracia, afinal, trouxesse ao país as melhorias necessárias tão sonhadas -, a, gradativamente, desenvolver uma notória aversão por política, a ponto de ver no próprio ato de votar um sinônimo de opressão e perda de tempo; isso, apenas vinte anos depois de multidões terem saído às ruas de todo o Brasil para exigir Diretas Já. Política no Brasil é um tema que caiu em desgraça. As pessoas estão desinteressadas, revoltadas, céticas, indignadas, desesperançadas e isso é especialmente verdade entre a classe média urbana, que constitui, justamente, o público alvo de publicações na linha d'O Pasquim21.
Se as coisas chegaram a esse nível, como, então, viabilizar a comercialização de um jornal cujo foco principal é o mundo político numa sociedade com ódio de tudo relacionado a política, ainda mais se valendo de uma retórica ideológica que conquistava legiões de seguidores há trinta anos, mas que, hoje, não encontra quase nenhum eco numa sociedade inteiramente mudada, com dilemas e paradigmas diferentes e muito mais complexos? Talvez, fazendo um jornalismo em sintonia com a realidade e a linguagem de agora. Nos anos setenta, o humor d'O Pasquim representava um importante foco de resistência ao arbítrio da ditadura; suas charges e textos inteligentes, repletos de mensagens nas filigranas, funcionavam brilhantemente, pois a marcação cerrada da censura não permitia que fosse de outra forma. As pessoas liam o jornal porque sabiam que encontrariam nele um conteúdo subversivo, extremamente valioso numa época em que a grande imprensa se achava à beira da asfixia. Hoje, no entanto, a situação é outra. Charges, músicas de protesto e sátiras inteligentes já não satisfazem, sozinhas, o leitor politizado e preocupado com os rumos do país. A opinião pública tornou-se menos romântica e mais pragmática. De modo que, o único jornalismo político combativo possível no Brasil de hoje é aquele que se incumbe de trazer à tona, de forma cruel e sem disfarces, a podridão que vem corroendo o estado brasileiro desde o seu nascimento: o jornalismo investigativo, de denúncia e amparado por um eficiente esquema de apuração de dados e fatos.
Enfrentar o poder sempre foi uma tarefa perigosa e não será justamente agora, com o Brasil pegando fogo, que isso irá mudar. Assim como o pessoal d'O Pasquim enfrentou as baionetas há três décadas, hoje os que quiserem enveredar por esse caminho terão de se armar fortemente para poder sobreviver: arregimentar uma equipe de repórteres audaciosos, perspicazes e corajosos; contar com o apoio de um departamento jurídico ágil e atuante, para dar conta da enxurrada de processos que, certamente, desabará sobre o jornal após as primeiras denúncias; ter nervos de aço para suportar as inúmeras pressões, ameaças de retaliação e de morte que se sucederão e possuir um bom ativo financeiro para custear desde as despesas com as investigações (que poderão levar meses, envolver viagens dispendiosas, contratações de assistentes e, eventualmente, o pagamento de subornos estratégicos a informantes-chave) até os gastos com advogados e, num caso mais grave, com a segurança pessoal dos repórteres e seus familiares. Além disso, para cativar de vez os leitores, o jornal precisará estar sempre na dianteira e dar as notícias em primeira mão, antecipando-se à grande imprensa. Resumindo: trata-se de uma empreitada difícil, cara, tremendamente arriscada, que pode condenar seus idealizadores a uma vida de turbulências e à ira eterna dos poderosos, historicamente habituados a dispor do erário como se fosse uma extensão dos seus feudos e conglomerados. Mas, infelizmente, é a única que se apresenta viável frente ao atual quadro político brasileiro.
De resto, faço votos que Ziraldo, Zélio e toda a turma d'O Pasquim21 já estejam bolando uma nova publicação e reapareçam o mais breve possível e com força total. Um jornal como o Pasquim, com toda a sua criatividade e inteligência em alta voltagem, faz falta numa sociedade como a nossa, cada vez mais poluída pelo vazio, pela futilidade e pela baixaria repetitiva. Mesmo porque, humor nunca é demais, ainda mais o de boa qualidade, feito por gente que entende do assunto e sabe a diferença que uma palavra bem colocada pode fazer num ambiente de cerceamento de idéias.
Olá, Luis Eduardo, mais uma vez vou repetir que seus textos jornalísticos são sempre maravilhosos. No caso do Pasquim, acho realmente uma pena estar encerrando suas atividades. Como você mencionou, ele vem sendo um jornal de excelente qualidade. Na última FLIP, em Parati, tive a oportunidade de assistir à palestra do Ziraldo e alguém lhe fez a pergunta, porque o Pasquim estava encerrando as atividades. E sua resposta foi bastante clara e direta. Não me lembro exatamente as palavras, mas a idéia foi essa. A vida dele teve uma bandeira que era colocar o seu partido no poder para finalmente ver sua ideologia criando um novo país. E ele não teria coragem, por exemplo de fazer uma charge com o Lula recebendo e voando sem parar me seu novo avião! Acho que todos que ajudaram a eleger o presidente Lula, com talvez a última esperança de que o país pudesse sair de uma corrupção suja e mesquinha onde os políticos não tem o menor escrúpulo em criar taxas e impostos para o enriquecimento pessoal e dos seus partidos, sentem o mesmo. Parece que chegar ao poder significa espoliar o povo em proveito próprio! Ou quem sabe o Ziraldo, com sua intuição tão aguçada, previu que com a aprovação da nova lei que vai “controlar” a produção cultural e o jornalismo, o Pasquim de qualquer forma acabaria!
Caro LEM,
Sinceramente acredito que o fim do Pasquim ocorreu porque a maioria de seus integrantes são egressos de uma esquerda que se tornou lamentavelmente ultrapassada. Era triste ver um sujeito inteligente como o Fausto Wolff ficar lamentando todas as semanas o fim da utopia petista sem ter a menor coragem de rever suas próprias convicções. Não por acaso o que havia de melhor no Pasquim21 eram as (poucas) colaborações de autores jovens bem como as charges da nova geração de carunistas.
Discordo de você numa coisa: há espaço não sei se no mercado mas ao menos no espectro da Imprensa para uma revista de esquerda moderna, nos moldes da Adbusters canadense. O problema é que o Ziraldo e sua turma são incapazes de fazê-la pois são órfãos do muro de Berlim, saudosos de um tempo que já passou. Construir uma publicação desse tipo com qualidade será tarefa da nove geração de jornalistas e escritores brasileiros. O desafio é termos competência para isso.