"O que você está lendo?" Essa pergunta, algo curiosa, algo indiscreta, pode soar debochada ou descabida num lugar como o Brasil, onde se convencionou afirmar que ninguém lê, a despeito de o nosso mercado editorial estar entre os dez maiores do mundo, acima de países como Itália, China e Canadá e superior ao de toda a América espanhola reunida mais Portugal (a máxima de que Buenos Aires possui mais livrarias do que o Brasil inteiro não passa de uma daquelas lendas cuja longevidade é um enigma; nosso país contabiliza, hoje, cerca de mil e trezentas livrarias - o que é, sem dúvida, pouco, se comparado a uma população de cento e oitenta milhões de pessoas -, enquanto a capital argentina e arredores têm pouco mais de quatrocentas). Mesmo assim, a pergunta que visa decifrar as preferências de leitura de celebridades e formadores de opinião, está presente em toda a mídia impressa, de entrevistas a enquetes, passando pelos mais do que batidos perfis do consumidor. E nem adianta mencionar jornais, revistas ou blogs, por melhores que sejam as escolhas. A pergunta refere-se, unicamente, a livros.
Quem tem o hábito de ler com regularidade as seções literárias na imprensa, já deve ter notado como essa indagação é constante, chegando a merecer um lugar cativo e exclusivo em algumas publicações. É curioso, pois não vejo o mesmo interesse em relação a outras manifestações artísticas e culturais como, por exemplo, a música ("Que CD você tem ouvido mais, ultimamente?") ou o cinema ("Qual o último filme a que você assistiu?"). Talvez porque a audição de um CD ou a assistência de um filme sejam hábitos já mais do que incorporados ao cotidiano da população urbana em geral, enquanto que o ato de ler permanece um mistério indecifrável, como um castelo austero e majestoso, lindamente incrustado no topo de um outeiro enevoado e inexpugnável, permeado de lendas e muita desconfiança. Ao mesmo tempo em que exerce um irresistível fascínio, por ser a fonte máxima do conhecimento e por guardar nas suas páginas, possibilidades ilimitadas de viver aventuras e experimentar sensações com uma intensidade única e improvável de outra forma, os livros assustam e inibem quem não os conhece bem, intimidam os que não lhes foram adequadamente apresentados e não puderam se deixar envolver por toda a sua magia e encantamento.
Tudo isso contribuiu para alimentar a noção de que os leitores são seres diferentes, privilegiados, habitantes de um outro mundo, com uma aptidão peculiar e algo incomum para se entregar a um exercício que, à maioria, não causa mais do que sono e desconforto. E acabou levando o senso comum a consagrar a idéia absurda e limitadora de que a leitura é um exercício essencialmente intelectual, sempre com objetivos nobres e bem definidos de crescimento interior, reflexão sobre algum tema importante ou absorção de conhecimento. O resultado foi que se criou em torno do objeto livro, uma espécie de folclore, que todos os segmentos da sociedade - a classe leitora, inclusive - parecem ter incorporado sem a menor cerimônia.
Basta acompanhar a imprensa literária para se dar conta de como isso, de fato, acontece. Indagados sobre os livros que estão lendo, muitos entrevistados, no afã de arrotar uma cultura portentosa e admirável, não resistem a disparar respostas pomposas do tipo: "Estou lendo dois livros no momento: Les Liaisons Ordinaires. Wittgenstein sur la Pensée et le Monde, Leçons au Collège de France - Juin 2002, de Charles Travis, numa competente edição da Librairie Philosophique J. Vrin e, ainda, Lições Sobre a Filosofia Política de Kant, de Hannah Arendt (Relume Dumará), com organização e ensaios de Ronald Reiner. É uma reunião de aulas dadas por Hannah Arendt sobre a filosofia política de Kant, uma análise do ato de julgar, que serviria como tema para a última parte da sua trilogia inacabada A Vida do Espírito, que a morte repentina a impediu de concluir".Ou então: "Leio Marc Aurel. Der Philosoph auf dem Cäsarenthron, de Ute Schall, publicado pela Ullstein Taschenbuch, de Berlim. Antes, tinha lido, da mesma autora, Die Juden im Römischen Reich, também excelente. Ambos não foram traduzidos para o português, mas são leituras imprescindíveis, que recomendo a todos que apreciam um texto consistente e informativo". Atire a primeira pedra quem nunca leu depoimentos semelhantes a estes nos suplementos literários dos jornais de circulação nacional.
Da mesma maneira, é raro depararmos com pessoas admitindo que se deleitaram com os últimos títulos de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Zíbia Gasparetto ou John Grisham, apesar de estes estarem freqüentemente no topo das listas de mais vendidos em todo o país e ocuparem as livrarias com pilhas e mais pilhas de exemplares que nem chegam a juntar poeira nas prateleiras. Por que será? Esnobismo intelectual? Risco de ser visto como um leitor sem personalidade e desprovido de gosto ou conhecimento literário? Um desejo irrefreável de ser descobridor das coisas e dançar diferente da maioria? É quase certo que muitos dos leitores confessos das obras sobre Kant e Wittgenstein, cujos volumes, ocupam lugar de destaque nas suas estantes abarrotadas ao lado de vistosos exemplares de Joyce, Proust, Sartre, Nietzsche e Cervantes, lêem, escondidos atrás do sofá, embaixo da mesa ou na penumbra solitária do quarto trancado a chave, os best-sellers de Literatura, espiritismo e auto-ajuda, cuja reputação, à luz do dia, se empenham em destruir com suas opiniões ácidas e que encontram imediata receptividade entre colegas com práticas similares, os quais, também, jamais revelarão o seu degradante e herético segredo.
Duas dúvidas, contudo, permanecem em aberto: 1) Se o brasileiro é um povo iletrado e os poucos iluminados que compram livros só se deleitam com obras de denso teor acadêmico ou lírico, quem então consumiu os milhões de exemplares que tornaram Paulo Coelho uma celebridade? 2) Já que ninguém lê mesmo, que diferença faz revelar em público que se está lendo Brida ou Crítica da Razão Pura? Ou será que estamos condenados a ser, eternamente, uma nação dividida entre uma massa de supostos analfabetos e um clubinho de pretensos intelectuais que vêem no ato de ler, quase um ritual religioso? Torço para que, um dia, perguntados sobre o que estão lendo, nossos formadores de opinião se preocupem mais em responder a verdade, em vez de tentar se promover às custas dos livros que irão citar.
Te Vejo na Laura
Se a vida noturna do Rio de Janeiro anda combalida devido à queda da clientela, afugentada pelos preços altos, pela insegurança das ruas e pela fúria dos pitboys nas boates, o mesmo não se pode afirmar da vida cultural, que segue em alta, com uma efervescência e uma vitalidade impressionantes. Prova disso é o evento Te Vejo na Laura, idealizado pelo jovem e talentoso casal Maria Rezende (poeta) e Rodrigo Bittencourt (músico) que toda a última segunda-feira de cada mês ocupa o palco da Casa de Cultura Laura Alvim, um dos mais ativos e prestigiados espaços culturais da Zona Sul carioca.
Levado por uma amiga, a livreira Ana Klajman, estive lá no início da noite de segunda, 30/8, para conferir e posso dizer que o espetáculo superou as minhas expectativas, que já eram bastante altas. A proposta do evento é dar oportunidade a novos artistas - em especial poetas, músicos e compositores, cujo acesso à grande mídia é, em geral, muito difícil - de mostrar o seu trabalho a uma platéia interessada e antenada. Com o teatro lotado, tive dificuldades em encontrar um lugar e acabei me sentando num dos corredores do balcão, de onde se descortinava uma visão nítida e abrangente do palco, sem nenhuma cabeça inconveniente à minha frente.
O espetáculo seguiu à risca a sua linha democrática, reunindo artistas novatos e consagrados, como a poeta Elisa Lucinda, o ator Marcelo Serrado e a cantora Ana Carolina, que encantou a platéia declamando, com um surpreendente talento teatral, textos de Clarice Lispector e da própria Elisa Lucinda. Em especial um divertido conto em que esta descrevia a conversa com um motorista de táxi durante uma corrida à casa de Ana Carolina para entregar um texto que seria recitado na abertura dos shows de uma turnê que a autora e intérprete de sucessos como Garganta, faria pelo Brasil e que, não por acaso, também foi lido por ela, ali no palco. Entre os novatos, destaque para Domingos Guimaraens, bisneto do poeta simbolista Alphonsus de Guimaraens, autor de uma interessante performance que cumpriu o objetivo anunciado de ser inexplicável - tanto assim que eu sou incapaz de explicá-la aqui; para Rodrigo Bittencourt e suas ótimas músicas, como Cinema Americano, sempre dedicadas a um ícone consagrado (de Richard Wagner a Caetano Veloso); e, sobretudo, a Maria Rezende, que foi aluna de Elisa Lucinda e leu alguns dos poemas publicados no seu livro Substantivo Feminino, como o divertido, criativo e sugestivo Pau Mole.
E, para não fugir ao tópico que abriu esta coluna e, sem que ninguém se dê ao trabalho de me perguntar, quero dizer que, neste momento, estou lendo Substantivo Feminino de Maria Rezende, uma leitura imperdível que recomendo seja feita ao som do CD de Rodrigo Bittencourt, Canção para Ninar Adulto. Comprei um exemplar de cada, num pacote à saída do espetáculo e não me arrependi. Quem quiser saber mais sobre o Te Vejo na Laura, sugiro uma visita ao site: tevejonalaura.blogspot.com.
Hápax traz ao público a boa música brasileira contemporânea
De acordo com o Aurélio, "hápax é uma abreviação do grego hapax legomenon, 'o que foi dito apenas uma vez'(...) Palavra, termo locução, etc., que ocorre apenas uma vez em documento, obra literária ou científica, etc. (...)". Ou seja, refere-se a algo de caráter inédito, já que nunca se repete.
A idéia do Hápax, um conjunto de câmara formado pelos músicos Tatiana Dumas (piano), Marcos Botelho (trombone) e Taís Soares (violino) é abrir um canal para que peças inéditas de compositores brasileiros contemporâneos de música erudita - conhecida como Música Brasileira Contemporânea - possam ser apresentadas ao público -, daí a escolha do nome. Sua criação vem preencher uma grande lacuna na cena musical carioca, uma vez que, segundo consta, não existe na cidade um conjunto fixo, dedicado principalmente à música contemporânea, cujo caráter é fortemente experimental. Ao assumir a tarefa de dar visibilidade a um segmento desconhecido das grandes platéias, o Hápax espera, ainda, estimular novos compositores a produzir e a apresentar seus trabalhos.
Terça-feira passada, dia 31/8, o trio apresentou-se dentro da Série Brasiliana 2004 da Academia Brasileira de Música, que na última terça de cada mês promove concertos e recitais no auditório da Casa de Rui Barbosa, no Rio. No repertório, peças de compositores consagrados (Edino Krieger, Almeida Prado) e novos (Yahn Wagner, Delano Mothé). O recital, do qual fui um dos espectadores, teve momentos inusitados, como o duo do trombone de Marcos Botelho com o eco produzido pela cauda do piano e arrancou entusiasmados aplausos do público que lotou o auditório. Graças ao Hápax, tive a felicidade de conhecer, por exemplo, os lindos Estudos 1 e 2 para piano de Delano Mothé e o inusitado Entremeio para violino, trombone e piano, de Marisa Rezende.
O Hápax avisa que está apenas começando e que veio para ficar. Sua próxima apresentação acontecerá no dia 18 de novembro de 2004, no IBEU de Copacabana, no Rio de Janeiro.
Luis Eduardo, muitíssimo obrigada pela sua matéria bacanérrima sobre o nosso projeto, que bom que você esteve por lá e se sentiu motivado a escrever sobre a gente. Fazer esse projeto é uma trabalheira enorme e todas as manifestações a favor são fundamentais pra manter a chama acesa, sabe? Espero que você volte sempre e muito obrigada também pela recomendação dos nossos trabalhos, isso é igual mastercard: não tem preço! Um grande abraço, Maria e Rodrigo
Esses projetos que disponibilizam novos espaços para novos artistas são indispensáveis. Lembro com muito carinho as várias noites que passei no CEP 20000 no Espaço Cultural Sérgio Porto absorvendo novas poesias e música que eram criadas naquela época. Saudades...