Sobre o escritor inglês Aldous Huxley (1894-1963), boa parte dos leitores conhece aquele que é um dos livros mais emblemáticos do século XX, o romance Admirável Mundo Novo, publicado originalmente em 1932. Nele, o autor discorre sobre um hipotético futuro de avanços científicos que resultariam numa sociedade totalitária e absolutamente desumanizada. Além deste, sua obra é composta por ensaios, como o não menos célebre As portas da percepção, e livros de contos. Uma faceta menos conhecida do autor é a de roteirista de cinema. Em 1937, para tratar de sua cegueira, Huxley mudou-se para a Califórnia, nos Estados Unidos. Lá, assinou alguns roteiros para cinema (experiência em que não foi muito bem-sucedido, conforme escrevem seus biógrafos). Mesmo assim, não parou com a literatura. O livro que agora é lançado pela Editora Globo, O macaco e a essência, é fruto dessa fase americana do autor. E aqui, mais uma vez, os principais temas da obra de Huxley, como a política e a crítica aos abusos das descobertas científicas, ganham destaque, sempre com um tom que mescla a ironia com uma visão apocalíptica do futuro.
No prefácio, o professor da USP João Alexandre Barbosa anota um dado relevante no que se refere à composição deste romance: o livro é um misto de sátira com roteiro de cinema. Explico. A obra se divide em duas partes. Na primeira, intitulada "Tallis", há uma apresentação feita pelo narrador dos momentos que precedem o encontro de um roteiro (cujo título é "O macaco e a essência") esquecido nos corredores dos estúdios de Hollywood. A partir do momento em que encontram o texto, Bob Briggs e seu amigo deixam a conversa para segundo plano e saem à procura do autor do texto, que se chama William Tallis. Chegando ao endereço, não encontram o autor, de quem, talvez, buscariam mais informações sobre o roteiro em si. Nesse ponto, o narrador reaparece: "Bem, isso foi o mais que nos aproximamos de Tallis em matéria. No que se segue o leitor poderá descobrir o reflexo de sua mente. Reproduzo o texto de 'O macaco e a essência' tal como o encontrei, sem alterações e sem comentários".
Desse modo, na segunda parte deste romance-roteiro, a trama de William Tallis é apresentada. Cabe dizer que é a parte mais complexa do livro. Isso porque, como peça literária, o roteiro não possui a mesma fluência que um romance, por exemplo, muito embora os dois "gêneros" sejam pertencentes ao campo da prosa, e, nesse caso em específico, da prosa de ficção. Assim, é fundamental que o leitor não desvie sua atenção e não perca de foco a abrangência da obra, isto é, o fato de que o roteiro, apesar de ser a peça-chave deste romance, está dentro de um conjunto e que foi precedido por um excerto não apenas introdutório como essencial para a compreensão de toda a narrativa.
Assim, o script inicia por apresentar quais seriam os elementos precedentes aos diálogos. Como todo roteiro, além do texto, há uma preocupação com o ambiente que cerca esse cenário. Nesse sentido, num trecho que precede a entrada do narrador constam os apontamentos que detalham, com o acréscimo de comentários, qual música deveria ser colocada na cena seguinte. Trata-se, no caso, de uma peça de música clássica. "A música muda de caráter e, se Debussy fosse vivo para escrevê-la, quão delicada seria, quão aristocrática, quão cristalinamente pura de toda a lubricidade e arrogância wagnerianas, de toda a vulgaridade straussiana!".
A partir de então, o leitor é levado para o ano de 2018, quando o planeta está dilacerado pela Terceira Guerra Mundial. Nesse contexto, o único lugar não alcançado pela destruição é a Nova Zelândia. A propósito, é da Nova Zelândia que parte uma expedição de redescobrimento da América. Dessa maneira, o leitor passa a acompanhar, página após página, a mudança na escala de valores dessa nova sociedade. Pois, na América "do ano luminoso de 2018", são os babuínos que estão no comando, escravizando os cientistas, a fim de que estes sejam executores de um único propósito: a guerra.
É preciso ressaltar, ainda, a "voz" do narrador ao longo do roteiro, uma espécie de testemunha ocular dos fatos. Trata-se de uma isenção participativa que, no entanto, proporciona uma análise no mínimo aguçada sobre o que ele observa, como a que segue: "A cena escurece; ouve-se o estrondejar de um canhoneio. Quando a luz retorna, lá está, de cócoras, o Dr. Albert Einstein, atado a um cabresto, atrás de um grupo de babuínos uniformizados". Em outros trechos, de igual surrealismo, é espantoso perceber como Huxley tenha conseguido ser tão profético: "Tudo o que se tem a fazer é simplesmente ameaçar o vizinho com qualquer das armas de destruição em massa. O seu próprio pânico fará o resto. Lembrem-se do que o processo psicológico fez em Nova York, por exemplo. As irradiações em ondas curtas de além-mar, os cabeçalhos nos vespertinos. E no mesmo instante oito milhões de pessoas espezinhando-se nas pontes e nos túneis".
Nesses excertos, pode-se perceber como os temas do autor são atuais, sem mencionar o fato de que é triste perceber como a ficção do roteiro se assemelha à realidade do mundo em 2004, quando o temor de ataques terroristas faz com que as pessoas passem a agir (e reagir) com medo. A propósito desse sentimento, o narrador analisa: "O amor elimina o medo; mas reciprocamente o medo elimina o amor. E não apenas o amor. O medo elimina a inteligência, elimina a bondade, elimina todo o pensamento de beleza e verdade. Só persiste o desespero mudo ou forçosamente jovial de quem pressente a obscena Presença no canto do quarto e sabe que a porta está trancada, não há janelas".
Embora não seja um dos livros mais celebrados de Huxley, O macaco e a essência traz ao público algumas obsessões do autor, como a preocupação com o futuro da humanidade sob a constante perspectiva de um conflito nuclear. No roteiro, o escritor exagera, abusando do surreal e das metáforas, o que faz com que a obra se transforme em um libelo político. Essa feição absurda, para o bem e para o mal, é o modo como Aldous Huxley enxergava não o avanço tecnológico ou científico em si, mas a maneira que os humanos viriam a se comportar a partir desses avanços. Nesse aspecto, é preciso ressaltar que esta obra de Huxley, se não é importante do ponto de vista literário, é, graças à sua atualidade, de suma importância política e ideológica.
É fundamental ressaltar que a obra de Huxley é sim muito importante do ponto de vista literário. Tanto pelo emblemático "Admirável Mundo Novo", como pela novela "Ponto Contraponto". "Ponto Contraponto" é obra de 1928, quatro anos antes de "Admirável Mundo Novo". Marca o apogeu e o fim de uma fase acidamente crítica, e o início de uma fase preocupada com o futuro da humanidade e as possibilidades de uma nova sociedade. Não me recordo de nenhum outro livro que tenha retratado a sua própria época com tanta lucidez, abrangência ou corrosão. Uma corrosão isenta, despojada de intenções ideológicas ou de declarações apaixonadas por quaisquer certezas. Tudo o que Huxley fez em "Ponto Contraponto" foi relatar minuciosa e argutamente os ridículos e as inconsistências da sociedade, expondo com implacabilidade fria as fragilidades e as mesquinhezas do ser humano, dessa criatura que, a despeito das empáfias de sua presumida "racionalidade" ou "intelectualidade" (somente em poucos raros autêntica!), é apenas uma criatura insignificante, à mercê dos condicionamentos sociais e de suas fraquezas individuais - como a carência afetiva e a vaidade, o principal de todos os ridículos humanos. Inexiste a figura do protagonista. A preocupação de Huxley é montar um painel de sua sociedade, focando ora um ora outro grupo de personagens, flagrando suas mazelas, incertezas e certezas (sempre muito mais graves do que as primeiras, porque arrastam o indivíduo ao definitivo erro de enxergar o mundo sob uma perspectiva estreita). Os personagens fazem estritamente aquilo que devem fazer, nem mais nem menos. Suas capacidades são limitadas e orientadas, portanto plenamente previsíveis - previsíveis ao sarcasmo onisciente do autor. Previsíveis ao deus-autor, mas surpreendentes ao leitor. Este vê-se como testemunha atônita das fraquezas dos homens e das inconsistências de suas vidas sem sentido, vulneráveis aos crivos das incongruências existenciais e dos equívocos ideológicos. Inadvertidamente o leitor pode vir a sentir o gosto amargo de ter sido flagrado, apanhado em retrato cruel de suas próprias fraquezas. São muitos os capuzes distribuídos: pelo menos um deles pode muito bem ajustar-se à cabeça do leitor. É bem mais difícil encontrar alguma verdade onde não queremos encontrá-la. Ponto Contraponto não é complacente nem elogia ninguém (a não ser Bach). Essa é a sua grande virtude.