Porque, em primeiro lugar, fui traumatizado, no ginásio, por professoras frustradas, que estudaram Letras porque não podiam - ou não queriam - estudar mais nada. E, portanto, ensinavam os alunos a não gostar de Literatura: recomendavam livros entediantes e, se não bastasse, exigiam análises e interpretações frígidas, esquemáticas - que eu não sabia e não queria fazer. Fui gostar de geografia, que me apresentava um mundo mais palpável, real. Literatura sempre me pareceu uma matéria distante e abstrata - que me obrigavam a estudar apenas porque, em certa medida, complementava o estudo de História. Todos os livros eram encaixados em fases precisamente definidas, que eram marcadas pelo acontecimento político do momento. Nada mais - era a minha impressão - influenciava as decisões do personagem ou do autor. Acontece que a Literatura há anos está, neste aspecto - como ilustração de uma época -, superada pelo cinema e pela televisão.
E é por isso que minhas professoras eram frustradas: porque elas percebiam isso. Elas reconheciam, ainda que secretamente, a inferioridade da literatura em relação à telenovela. Normalmente, porém, elas se recusavam a assumir - e nos enchiam com livros cansativos e inúteis enquanto, às 8 horas, grudavam na tela da televisão. E este, estou certo, não foi apenas o meu caso. Dificilmente alguém, no Brasil, teve um professor de Literatura que - no fundo, no fundo - gostasse de Literatura. Por vários motivos, mas, e principalmente, porque a forma como Literatura é ensinada, no Brasil, é extremamente chata. Talvez por um motivo razoável: porque Literatura, Literatura mesmo, é praticamente impossível de ser ensinada - se é que deve ser, numa sala de aula normal.
Eu não acho: eu não acho que o estudo de Literatura em sala de aula é fundamental à formação educacional de ninguém - e esse é o segundo motivo pelo qual eu não fui, depois do colegial, para a faculdade de Letras. Porque eu acredito que o gosto literário - e por Literatura - aparece e se desenvolve naturalmente. E precisa ser assim. Com conselhos de amigos e ajuda de críticos, claro, mas sem o apoio de uma instituição dura, rígida, como uma universidade. A principal função da Literatura - a educação sentimental, digamos assim - desaparece quando a dedicação aos livros se torna obrigatória e mecânica. A Literatura, dentro da sala de aula, desconfigura-se, e perde a utilidade que tinha. Tanto é assim que, repare, já os calouros se entopem de teorias interpretativas e artigos quase didáticos, sem encostar nos clássicos originais. E esse tipo de estudo não tem nada a ver com Literatura.
Ou seja: decidi me dedicar, na universidade, a um tema árido, às vezes, mas quase sempre útil. Porque outro ponto que me incomodaria, se eu fosse para uma faculdade de Letras, é a substituição da vida prática por uma imaginação artificial. Uma imaginação que a maioria dos estudantes de Letras imagina que tem. Como se estudar Literatura, no ambiente da universidade, significasse se dedicar a um mundo paralelo, com explicações e sensações maravilhosas, desconhecidas por quem não está matriculado no curso. Essa dedicação integral à Literatura - ou mesmo a ilusão da dedicação - é também limitadora. Porque a principal utilidade da Literatura, para mim, é potencializar o aproveitamento da vida prática - e esse aproveitamento acabaria, se eu me dedicasse exclusivamente aos livros.
Viaje sem viagem
Viaje na Viagem, de Ricardo Freire, saiu em 1998 - "há um tempão", ele diria - mas tem me divertido muito, nos últimos dias. O autor, ex- publicitário, escreve surpreendentemente bem: publicitários costumam se preocupar muito com o ritmo e esquecem que o texto precisa também, em algum momento, de conteúdo. Mas Freire lembra dessa parte: e, com uma prosa rápida, engraçada, o livro passa dicas e informações úteis a viajantes de todos os tipos, de casuais a profissionais. Suas observações são também apuradas: quando comenta sobre essa mania de conhecer o local como nativo, por exemplo, alerta os principiantes: "você sempre vai ser um turista". E um turista, insisto, com outra frase pescada no livro: "e não um astronauta".
Porque brasileiros - talvez pela nossa distância dos destinos turísticos convencionais - ainda viajam para outro país com o espírito de quem embarca numa jornada intergaláctica. E os homens se fantasiam de jogador de futebol, com camisa do Brasil e pochete na cintura. Nem um astronauta acaba tão mal vestido. E o figurino da mulher o próprio Freire descreve, indiretamente, quando trata os brasileiros como "turistas emergentes (com todas as implicações vera-loyólicas do termo)".
O estilo do livro é, portanto, muito pessoal, mas Ricardo Freire tem bom-senso e senso de humor - um senso de humor de publicitário, bem entendido. Sobre Londres: "Londres é a Paris dos modernos. Eu particularmente não consigo gostar, mas entendo, compreendo e dou a maior força para quem gosta." O livro é permeado por essas generalizações. Quer dizer: Londres é a Paris dos modernos para os modernos, para quem pretende ser moderno ou, como é o caso de Freire, para quem convive com modernos. Não é para mim, por exemplo - e o leitor é, em todos os momentos, estimulado a viajar para desenvolver também as suas opiniões.
Viagem em revista
Enquanto a viagem não chega, porém, confie nas recomendações de Freire, que em geral são boas. Como a sobre a revista Condé Nast Traveler - da mesma editora da New Yorker e Vanity Fair, para os entendidos: "a mais influente, mais bem escrita e bem diagramada das revistas de viagem." E compre guias: a maioria dos meus são Lonely Planet, mas agora os da Rough Guide, que usei na Polônia, são meus favoritos: segundo Freire, "não tão completos quanto o Time Out, quase tão alternativos quanto o Lonely Planet e muito mais doidões que os dois juntos". Doidões? São os mais bem escritos, garanto.
Os primeiros contatos com livros na minha infância foram com trechos de obras que se encontravam nos grossos livros didáticos de Comunicação e Expressão, mais precisamente na seção de literatura. Sempre achei que jamais teria um livro, até porque eu não via necessidade nisso já que os didáticos me traziam o que precisava para o gasto. Minhas primeiras experiências em se tratando de leitura foram como a maioria das crianças pobres naqueles anos 60: os já citados trechos nos livros didáticos, as fotonovelas, alguns gibis (estes como aquelas na maioria emprestados às minhas irmãs) e bolsilivros (aqueles de faroeste, de espionagem e até de romances água com açúcar). Minha primeira aquisição de uma obra, já então com 20 anos, foi o “Perdidos na noite”, de um certo James Leo Herlihy, cuja transposição para o cinema contou com as soberbas interpretações de Jon Voight e Dustin Hoffman e teve como uma das trilhas sonoras a belíssima canção “Everybody talkin’”, na voz de Harry Nilsson. Daí foi só um passo para ter o meu acervo pessoal: uma biblioteca com uns 600 volumes das mais diversas literaturas, evitando o máximo que eu posso os medonhos “best-sellers”. Às vezes fico pensando que não vou viver o suficiente para ler tudo o que está ali, já que eu continuo com essa mania de adquirir pelo menos uns dois por mês. E, sim, eu fiz o tal Curso de Letras, que na verdade até hoje me pergunto porque de tão inusitado ato. Pode ter sido pela exigência de se tirar um diploma, que para tal ainda não vislumbrei necessidade alguma. Vale ressaltar que sempre fui uma das figuras mais introvertidas de minha época de estudante e só me faltava ter um treco se alguém me olhasse, quanto mais se uma professora se lembrasse de que eu existia e chamasse meu nome para tal tarefa, até mesmo para ouvir de mim o “Presente!”. Refugiei-me então entre os livros, que não me exigiam mais do que meu silêncio e meu tempo todo disponível, depois dos afazeres de todo menino de família classe baixa-baixa: ir pra inevitável escola, cuidar de limpar o quintal, encher as vasilhas de água e jogar bola a tarde inteira. Neste caso, a literatura pode ter salvo uma alma do abismo das ignorâncias. Por outro lado, não consigo entrever uma utilidade prática para a literatura, ou, em outras palavras, poder aplicar no cotidiano o que a leitura me permite interpretar. Então, por que lês, me pergunta a esfinge: Leio porque lendo eu me desdigo o tempo todo; porque necessito de contraponto.
No mural do bloco do meu curso (que por acaso não é Letras, faço Biologia) tem uma frase do Nietzsche: "A arte existe para que a realidade não nos destrua". Não creio que a função da literatura seja a de potencializar o aproveitamento da vida prática. A literatura, ao menos na minha vida, funciona para não deixar que a realidade me destrua.
Eu também detestava aulas de literatura. O que me parecia estranho, já que sempre adorei literatura, desde a mais tenra infância. Geralmente não gostava dos livros indicados, principalmente porque me afastavam, ainda que por um breve tempo, dos livros realmente interessantes. E, se por milagre, algum livro bom era indicado, o prazer da leitura era arruinado pela consciência de que eu teria que fazer alguma interpretação estúpida, depois. Ainda bem que o gosto pela leitura já era arraigado e anterior às tais aulas. Ou elas poderiam ter me feito não gostar de ler.
Sinceramente, jamais iria imaginar que o meu gosto pela literatura pudesse surgir nas maçantes aulas de literatura e gramática. E não surgiu mesmo! Foi graças ao "catecismo" do Carlos Zéfiro e da série Vagalume que eu adquiri o gosto pelas letras. Infelizmente o prazer pela polemização e o excessivo esforço de teorização do "nada" contribuiram para a falência do curso de letras e consequentemente aqueles que heroicamente ainda se aventuram na faculdade saem de lá cada vez mais chatos e paranóicos!
Curiosamente, fui estudante de Letras APESAR da Literatura. No segundo grau, tive: no 1o. ano, uma professora mal amante da Literatura; no 2o. ano, vários professores mal amantes (alguns até escritores de livros didáticos) da Literatura; no 3o. ano, um professor hipocondríaco que, se gostava de Literatura, esqueceu de nos emprenhar com esse gosto. Ainda assim, fui fazer Letras e estudar Literatura. E descobri que, como na Física, na Geografia, na Matemática, há bem mais a ser explorado e conhecido do que nos querem fazer acreditar os professores do segundo grau (ou qualquer nome novidadesco que se venha atribuir a essa fase do ensino). Pena mesmo é, na maioria das escolas, como faz a maioria dos professores, nos desensinarem (ou nos ensinarem a desamar) Literatura, Português, História, Artes Plásticas... Porque todo conhecimento contribui, sim, para o nosso crescer, depende, tal qual alimento, de como e em que doses e com que cara seja (ad)ministrado.