De onde quer que se esteja nesta cidade rarefeita, a impressão é a mesma: a cidade acaba daqui a dois quarteirões. A paisagem é rasa e espalhada como num acampamento. As casas baixas somem da vista, mergulhadas no horizonte e na copa das árvores. Lotes vazios e pomares de laranja parecem marcar o fim da área urbana. Mas a terra plana engana, os quarteirões se sucedem ao longo de ruas compridas e a cidade nunca acaba. Os pomares de laranja são ilhas verdes no meio do asfalto. Por quilômetros, a cidade se estende da mesma maneira esparsa: lotes enormes, casas e shopping centers plantados no meio de estacionamentos, calçadas desertas. De dia, as montanhas ao redor abraçam o vale com sua tez de terra clara e pedregosa, e as mansões no topo dos morros se confundem com a paisagem. À noite, as luzes se acendem revelando a imensidão da cidade: os pontos luminosos cobrem o vale e as encostas a perder de vista, e de onde quer que se esteja a impressão é a mesma: uma cidade que não acaba mais.
Assim é Riverside, arquetípica cidade média do sul da Califórnia: um subúrbio gigante, uma constelação enorme de gente vivendo como se fosse uma vilazinha. A "Avenida Central" é uma estrada longa cortando a montanha, com barrancos e terrenos vazios e condomínios horizontais esparramados. Parece mais uma Avenida Marginal. "Downtown", o centro da cidade, tem um par de prédios de dez andares, um par de ruas de pedestres, um par de bares e cafés. O resto são casinhas e sobrados em alamedas ladeadas de árvores. Silêncio, vazio, e sol derramado sem limites, sem sombras. "Centro" é uma abstração.
Ah, já ouvi, Riverside é chata, Riverside é monótona, Riverside não tem nada. Não. Riverside é exemplar. Riverside é fascinante. Riverside é uma lição de urbanismo - mais erros que acertos - para qualquer um que se interesse por cidade, de São Paulo a Berlim.
Os urbanistas e engenheiros de tráfego adoram repetir que um dos maiores problemas paulistanos é o crescimento da cidade ter se baseado no automóvel individual. É verdade - desde o plano de avenidas de Prestes Maia no começo do século passado até a overdose de minhocões, túneis e pontes dos prefeitos recentes. Mas Riverside faz São Paulo parecer a terra do pedestre. Em São Paulo há esquinas, e há lojas e botecos nessas esquinas. Há vitrinas ao longo das ruas, pontos de ônibus e linhas de ônibus. Há gente atravessando a rua, andando a pé sem ser para fazer jogging, e o centro é um nó de pessoas e de prédios no meio da aglomeração urbana.
Caminho livre
Já Riverside tem ruas que parecem avenidas, avenidas que parecem vias expressas, e vias expressas que parecem autódromo. Ninguém anda a pé, os ônibus são escassos. Uma pessoa sem-carro é algo como uma pessoa sem-teto. Nem todas as ruas têm calçadas; as calçadas acabam no meio do nada. Andei a pé em Riverside e fui parar num canteiro-sem-saída, encurralada no meio do asfalto atraindo olhares curiosos dos motoristas (ninguém parou para dar passagem). Os quarteirões são compridos, as esquinas estão longe, mas não dá para atravessar a rua no meio da quadra porque a rua tem quatro faixas de carros a 80 por hora. No cruzamento há faróis, mas o sinal de pedestre dura segundos e fica vermelho no meio da travessia.
Riverside tem quase 300 mil habitantes e faz parte da região metropolitana de Los Angeles. É uma das cidades que mais crescem na área, não porque tenha indústrias locais em expansão, mas porque vem se tornando cidade-dormitório para quem trabalha em Los Angeles. É caro morar em Los Angeles, mais caro ainda morar bem. Para conquistar o sonho americano de casa tipo rancho (planta térrea e ampla) com gramado próprio, é mais fácil pagar os preços de terrenos em Riverside - e gastar até duas horas para chegar ao emprego. Afinal, para isso é que servem as freeways - o sistema de rodovias que conecta as cidades californianas em caminhos supostamente livres.
É normal pegar estrada para ir trabalhar, para ir ao cinema, ao supermercado, visitar o amigo. A freeway está tão integrada no modo de vida da Califórnia que até mesmo o sistema de ruas dentro da cidade incorpora a rodovia. Sim, pode-se ir da "Avenida Central" (no leste da cidade) até "Downtown" por dentro, pelas ruas com semáforos e quarteirões e cruzamentos. Mas o habitante típico pega a saída para a rodovia estadual, com oito faixas e limite de 100 km por hora, e duas ou três saídas depois é despejado no centro, sem ter visto mais do que caminhões, asfalto e barreiras de concreto. O deslocamento intra-urbano segue a lógica das viagens longas - e, por tabela, as viagens longas são coisa de rotina.
Nação de asfalto
Riverside exemplifica o padrão de urbanização dominante nos Estados Unidos, e que influencia a transformação de cidades no mundo inteiro. "Nação de Asfalto" é como Jane Holtz Kay define o fenômeno, em livro de mesmo nome (Asphalt Nation: How the Automobile Took Over America, and How We Can Take It Back). O argumento da autora é que o desenvolvimento da maior parte das cidades norte-americanas de pequeno e médio porte foi e é orientado para o transporte individual por automóvel - em vez de transporte coletivo por ônibus, trem ou bonde. A explosão da indústria automobilística norte-americana em meados do século vinte tornou carros acessíveis até mesmo a famílias de renda média ou baixa, numa época em que, em outros países, o automóvel era artigo de luxo e não de primeira necessidade. O carro passou a ser visto não como um meio de transporte compartilhado pela família inteira, mas como objeto de uso pessoal. Segundo Kay, outros fatores contribuíram para o domínio do carro: a pressão de indústrias de petróleo, combinada a subsídios públicos para a abertura de estradas e rodovias.
Para Kay, e boa parte dos urbanistas dedicados ao tema, o império do carro é indissociável do formato das cidades. A mobilidade do transporte individual se traduziu em expansão espacial. Bairros densos, próximos ao centro, foram substituídos por áreas exclusivamente residenciais fora dos limites urbanos - os subúrbios. Para quem mora no subúrbio, o carro é necessário para tudo: trabalho, escola, fazer as compras do mês ou comprar cigarro na esquina (que, como o centro, também é uma abstração). A imagem típica do subúrbio, com casas isoladas no lote e ruas sem saída, foi retratada no filme Beleza Americana (American Beauty).
Nessas cidades, os centros históricos - quando existentes - foram gradualmente esvaziados de população e funções econômicas, ou associados a grupos de menor poder aquisitivo (que não podem comprar carro e têm de morar perto do trabalho ou do ponto de ônibus). Em cidades mais antigas, os centros decaíram. Em cidades mais novas, como Riverside, nem chegaram a se consolidar.
As grandes cidades norte-americanas são exceções - Nova York, Boston, Chicago, San Francisco têm ocupação espacial densa, transporte público e vida urbana em ruas, espaços públicos e calçadas. A exceção é Los Angeles - que é também paradigma da cidade espalhada e sem centro, dependente do carro, cujo espírito fragmentado foi captado de modo brilhante por Robert Altman no filme Short Cuts.
Sonho americano
Aos fatores econômico (carros acessíveis) e político (abertura de vias, corte de transportes públicos) juntou-se, é claro, o peso sócio-cultural. O caso de amor com o automóvel, alimentado em filmes e músicas populares, faz do carro objeto de desejo primário; da mesma forma, a valorização da casa isolada em vez do apartamento no meio da cidade é parte do imaginário coletivo. A casa e o carro ecoam os ideais norte-americanos de liberdade e individualismo, em que qualquer restrição à ação particular deve ser eliminada - por exemplo, a restrição de horário ou rota de um ônibus, ou a restrição de espaço ou comportamento em um prédio de apartamento.
Mas a nação de asfalto exemplificada pela ensolarada Riverside dá sinais de falência até mesmo na imensidão desértica do oeste americano, e quebra a promessa de autonomia e de caminho livre e irrestrito. Os congestionamentos das freeways e parkways que circulam pelo sul da Califórnia são célebres. Não há hora do rush: há tráfego pesado o tempo inteiro, com momentos piores em que tudo pára, filas duplas entupindo as saídas e entradas das estradas. A poluição é horrenda, e a pacata cidade residencial de Riverside, com suas plantações de laranja, está permanentemente coberta por uma camada marrom de smog, lançado da região inteira de Los Angeles e encurralado pelo relevo montanhoso. Para lidar com a congestão do trânsito, além de débeis esforços para promover o trem, foi implementada a faixa de rodízio ou carpool lane - uma faixa exclusiva para carros com mais de um passageiro.
O modelo que já não serve até mesmo em sua encarnação mais radical continua, no entanto, a ser adotado mundo afora, como sabem os paulistanos às voltas com obras viárias e uma rede de metrô atrasada em décadas em sua extensão. Até mesmo a idéia do subúrbio foi adotada, na versão encastelada de Alphaville - para não falar do desejo quase erótico pelo carro individual.
Utopia
A cidade do automóvel, é importante que se note, fez parte de utopias urbanísticas no século vinte. Os arquitetos modernistas, nos anos vinte e trinta, saudaram o automóvel como revolução tecnológica e conceberam cidades ao longo de sistemas de vias rápidas como as freeways. Essas cidades, graças ao carro, poderiam ser muito mais extensas que as aglomerações européias de onde esses arquitetos, em sua maior parte, saíram. Para eles, a densidade era um problema: prédios altos demais, apartamentos sem luz e sem ventilação, ruas estreitas e escuras, congestão. A cidade rarefeita era a solução saudável; construções espalhadas, sem sombras, sobre áreas verdes enormes como se a cidade fosse um parque só, gigante. Nesse sentido, Riverside encarna as visões modernistas - aliás, sempre ensolaradas, como na "Vila Radiante" do suíço Le Corbusier.
Mas a cidade norte-americana aproveitou apenas uma parte da utopia - o asfalto - e deixou o parque e as vias de pedestres de lado. E mesmo as versões mais aplicadas do ideal da "cidade-parque", como Brasília, revelaram problemas insolúveis, estruturais. O sistema viário baseado em carro individual não pode ser expandido ao infinito: acaba congestionado (a não ser, hipoteticamente, que a cidade seja inteira coberta de asfalto). E as esquinas fazem falta. A vida das ruas, as vitrines, os botecos, os passantes, as calçadas - com cuspe e tudo. Não à toa, os centros das cidades - e toda uma nostalgia pela "comunidade" e vida pública - estão virando, para o bem e para o mal, a utopia urbana do século vinte e um. Até mesmo nos Estados Unidos.
Oi Daniela, muito bom o seu texto. Sugiro, caso ainda não conheça, que visite o site Car Free Cities. É bastante interessante. Sugere que é possível uma cidade na qual qualquer ponto é acessível, a pé e com transporte coletivo, em, no máximo, 35 minutos. Abraço, Bruno