Passar mais do que um par de dias consecutivos sem computador é uma idéia assustadora para muita gente e a simples evocação dessa possibilidade costuma provocar sobressaltos e, nos casos mais graves, desespero. Desde quinta-feira, 7 de outubro, há quase duas semanas portanto, estou sem o meu, graças a um devastador ataque de hackers que parecem ter acreditado num boato absurdo que afirma que este humilde romancista e colunista é um espião vinculado ao serviço secreto de algum país do Oriente Médio. Talvez eles estivessem à cata de alguma informação codificada em persa sobre o misterioso programa nuclear iraniano ou um documento do Hamas em árabe com todos os dados bancários dos terroristas no Líbano e na Suíça, mas o fato é que, há algum tempo, meus arquivos ficam longe do computador, armazenados em CDs e disquetes. Isso deve ter revoltado meus algozes que, então, decidiram, como represália, promover uma quebradeira geral.
As primeiras quarenta e oito horas sem minha máquina foram, não vou negar, bastante perturbadoras, mas aos poucos fui me habituando até que, já no terceiro dia, não sentia mais falta. Moro num bairro com uma grande quantidade de lojas de Internet e, uma vez a cada dois ou três dias, eu me dirijo a alguma delas para, rapidamente, conferir minhas mensagens de correio eletrônico, visitar as colunas dos meus colegas aqui no Digestivo Cultural e só. Não sei se foi por estar sem computador ou apesar disto, mas o fato é que vivi uma semana e meia de impressionante e vertiginoso fluxo criativo, como havia muito não me acontecia. Além disso, devorei cinco livros, inclusive o da professora Marisa Lajolo (abaixo) - que li duas vezes e ando pensando seriamente numa terceira. Em suma, foram dias absolutamente extraordinários que devem terminar até o fim desta semana, quando um novo computador, se Deus quiser, aterrissará na minha mesa.
De vez em quando, se puder, experimente desligar o seu computador e fingir que ele está quebrado ou que, simplesmente, não existe. Em vez de mandar um e-mail, dê um telefonema ou, melhor ainda, vá visitar pessoalmente um parente ou amigo, marque um cinema, um almoço, um chope ou um chá e ponha a conversa em dia. Afinal, nada substitui o contato pessoal. As relações humanas são o que de mais precioso existe na vida e devemos cultivá-las, já que o tempo passa rápido - mais ainda para quem gasta horas seguidas na frente de um monitor ligado. Só abra uma exceção para ler, diariamente o Digestivo Cultural. Afinal, ninguém é de ferro e tudo na vida tem limite.
Uma aula de como ler Literatura
Sempre que um bom amigo me pergunta qual a solução para a escassez de leitura entre os brasileiros, costumo repetir uma teoria que venho amadurecendo há tempos: enquanto o livro continuar a ser tratado como objeto de culto intelectual e a sua relação com as pessoas - sobretudo os jovens nas salas de aula - não deixar de ser burocrática e esquemática para se tornar espontânea, cálida e prazerosa, de nada adiantará espalhar bibliotecas pelo país, pois muitas, rapidamente, se tornarão sombrios depósitos de poeira e mofo e os únicos prováveis devoradores de livros serão os cupins e as traças.
Essa intimidade entre pessoas e livros sempre foi - voluntaria ou involuntariamente - desestimulada no Brasil. Seja pela soporífera e exageradamente didática metodologia de ensino de Literatura nas nossas escolas, seja pela excessiva intelectualização do ato de ler, estimulada pela crítica acadêmica e embasada por diversos formadores de opinião ligados à seara do livro. Bibliotecas e livrarias converteram-se, muitas sem saber, em cultuados santuários do conhecimento, freqüentados por mentes iluminadas empenhadas numa nobre e infindável jornada pelos parágrafos sagrados onde os grandes gênios se esmeraram em desvendar os subterrâneos da alma humana, desnudar as filigranas do mundo cão em que vivemos a fim de lhe propor mudanças e, sobretudo, fazer com que o leitor crescesse espiritual e intelectualmente e atingisse uma espécie de êxtase da sabedoria. Não é de se admirar que tantas cobranças em torno de um exercício tão prosaico e quase rústico como a leitura, tenham afastado dela o grande público. Sei, inclusive, de indivíduos que temem pisar numa livraria por medo de serem imediatamente percebidos como ignorantes, como gente que não pertence "ao meio"; situação semelhante a que pessoas com um físico fora dos padrões estéticos propagados pela mídia vivem diante de uma academia de ginástica com corpos sarados em movimento.
O mais curioso é que muitas das ilustres personalidades que vão à imprensa, à TV ou aos auditórios universitários encher a boca para protestar contra os baixos índices de leitura no Brasil são as mesmas que contribuem para perpetuar essa deplorável conjuntura, ao insistir na defesa da leitura primordialmente racional, da leitura sempre com um "objetivo maior". A aura de dogmatismo em torno dessa tese está tão vivamente consolidada que, vez por outra, eu me questiono se já não existe alguma ordem religiosa congregando os seus simpatizantes, todos unidos pela devoção ao "deus" livro.
Uma das mais importantes críticas literárias em atividade no Brasil, professora titular de Teoria Literária na Unicamp e coordenadora do projeto Memória da Leitura, Marisa Lajolo, apesar do seu notório amor aos livros e à Literatura, certamente se recusaria a ingressar nesta hipotética confraria a julgar pelo belíssimo e bastante oportuno livro que acabou de publicar, Como e Por que Ler o Romance Brasileiro (Objetiva; 176 páginas; 2004). Seguindo na contramão do pensamento predominante entre os seus pares, Marisa, que é mestre e doutora pela USP, nos demonstra, através de uma análise enxuta, minuciosa e precisa, tão apaixonante quanto apaixonada, o quão natural pode ser o contato de uma pessoa com a Literatura, representada, no livro, pelo romance brasileiro.
Como Marisa Lajolo consegue isto? Tomando por base a própria trajetória como leitora, desde o primeiro romance brasileiro lido, ainda na escola, o morno Inocência, do Visconde de Taunay (por cujas páginas também me aventurei na adolescência, sem que eu me lembre exatamente o que me levou a tanto) até autores surgidos mais recentemente, como Luiz Ruffato, Ferréz e o premiado Bernardo Carvalho, sem esquecer, é claro, de alguns dos grandes nomes que construíram a tradição romanesca brasileira. Passando ao largo de academicismos e sem cair na tentação de, ainda que disfarçadamente, ensinar teoria literária a leigos, Marisa, pouco a pouco, vai tecendo um rico painel da evolução do romance no Brasil e acaba por dar forma a um verdadeiro manifesto em defesa da leitura como fonte de lazer, ainda que dela se pretenda extrair muito mais do que apenas algumas horas de abstração da realidade. O testemunho desta forte relação sentimental com a Literatura e o êxito decorrente dela, ajuda a reforçar a teoria de que teses literárias profundas e elaboradíssimas podem muito bem ofuscar o que de melhor um romance tem a oferecer - e, em geral, ofuscam mesmo. E que, muitas vezes, estas análises são totalmente inúteis e dispensáveis. Imaginem que maravilha é para uma pessoa descobrir autores como Dostoievski, Tolstoi, Clarice Lispector e Machado de Assis sem, jamais, ter tido contato com uma - umazinha sequer - crítica a respeito do que escreveram. Quantos escritores clássicos não terão se debatido no túmulo, ao saber que algum estudioso contemporâneo enxergou nas entrelinhas dos seus livros, intenções ocultas e mensagens subliminares que jamais existiram? Autores vivos ainda poderiam se defender e desautorizar as interpretações malucas que nada têm a ver com o que está escrito de fato e é, provavelmente, por esta razão que eles são tão menos estudados.
No fim das contas, o que se constata é que a grita geral em torno da baixa leitura do brasileiro não está somente relacionada ao fato de as pessoas, na média, lerem pouco e sim ao fato de elas não lerem o que os intelectuais julgam apropriado. Quem deve, contudo, decidir o que ler é o próprio leitor e ninguém mais. No máximo pode-se sugerir títulos e autores, resignando-se ao fato de que tais sugestões poderão ser aceitas ou não. Assim como Marisa Lajolo escolheu os livros que lhe atraíram mais e esbaldou-se com eles, todo mundo deve escolher os seus e ver no que dá. É assim que nascem os leitores.
Uma opção alternativa no circuito de exposições
As exposições que precedem os concorridos leilões organizados pelo Soraia Cals Escritório de Arte, no Rio de Janeiro, - um dos mais conceituados do Brasil - poderiam perfeitamente constar do calendário cultural de qualquer capital brasileira. A riqueza e variedade de obras expostas - quase sempre, quadros e esculturas - assinadas por artistas de renome do Brasil e do exterior, é motivo mais do que suficiente para uma visita à mostra, ainda que não se pretenda efetuar nenhum lance. Soraia Cals trabalha no mercado de arte há duas décadas, como marchande e, agora, promovendo leilões. Os catálogos que publica especialmente para cada leilão são referência de excelência editorial em todo o país. Vistosos, elegantes, coloridos e informativos, impressos em papel de altíssima qualidade e com acabamento impecável, não ficam nada a dever aos melhores livros de arte disponíveis no mercado.
Nas duas edições anteriores, realizadas em maio e agosto de 2004 às quais compareci, Soraia Cals expôs e apregoou trabalhos valiosos de nomes do quilate de Ismael Néry, Iberê Camargo, Lasar Segall, Salvador Dali, Miró e Picasso. No próximo leilão, que acontecerá no final deste mês de outubro, os destaques são duas telas de Portinari: Mulheres, de 1939 e Índia Carajá, de 1959, ambas com lances mínimos superiores a R$ 1 milhão. Há, ainda, trabalhos de Guignard, José Pancetti e do alemão Karl Ernst Papf, entre outros. São, na maioria das vezes, peças pertencentes a coleções particulares e que muito raramente vêm a público - quando vêm. Trata-se, portanto, de uma oportunidade única para apreciá-las de perto.
As obras ficarão expostas entre os dias 20 e 25 de outubro, das 12 às 22 horas, no Atlântica Business Center - Av. Atlântica, 1130/4º andar - Copacabana, Rio de Janeiro. O leilão acontecerá entre os dias 26 e 28 de outubro a partir das 21 horas, no mesmo local, sob o comando do leiloeiro Evandro Carneiro.
Para mim a ausencia do computador nao parece ter surtido efeito: continuo aprendendo com seus textos da mesma maneira... Vou ler o livro da Marisa Lajolo, pois nunca li nenhum livro com um painel mais simples da literatura nacional (aka, mais simples = compreensivel para mim).
Sim, que bom saber do livro da Marisa Lajolo com o parágrafo sobre o leitor que independe das análises para buscar uma boa leitura... Muito feliz: vou guardar o texto. Um abraço.