Só escreveria se o senhor meu marido permitisse. Muito provavelmente, ele mesmo seria o dono do jornaleco em que uma mulher poderia publicar textos. E caso fosse um jornal um tanto mais distinto, com muita vênia ele me permitiria compor um belo pseudônimo, sob o qual eu publicaria quase qualquer coisa. Ah, importante lembrar que esse codinome seria masculino. No lugar de Ana, um masculiníssimo Eduardo ou um singelo José João. Talvez um nome bíblico ou uma homenagem grega.
Assim é que as mulheres entregavam seus textos ao público até meados do século XX. Sabendo disso, é possível imaginar por que turbulências deve ter passado Rachel de Queiroz. Até mesmo a mitológica Clarice Lispector. E qualquer outra mocinha de boa família que se metesse a escrever e a publicar.
Há o caso das meninas que escreveram em situações-limite, Anne Frank talvez seja a mais emblemática. A pseudônima Helena Morley escreveu o famoso diário de uma moça em Diamantina, entranhas auríferas das Minas Gerais. Mas os diários, até pouco tempo atrás, eram secretos. Em geral, os adolescentes faziam deles seu repositório terapêutico e, passados alguns anos, o caderninho ou virava lixo ou motivo de riso.
Atualmente é que a moda dos diários digitais pegou e adolescentes e adultos embrionários deram as caras espinhentas a tapa nos blogs. Muita água passou embaixo da ponte e os blogs passaram a ser empregados para outros tantos fins, mais ou menos sigilosos.
Mas o que interessa é que as meninas aparecem. Por uma série imensa de fatores, têm uma "pegada" singular nos textos e fazem sucesso em meio à mesmice testosterônica. No entanto, também acontece de elas acharem que para ocupar o espaço conquistado precisam virar homens. Eis o pecado. Ficam testosteronizadas, no lugar das siliconadas de má proveniência.
Foram tantos séculos de silêncio e há tão pouco as mordaças foram arrancadas... que é preciso fazer questão de ser muito mulher pra escrever.
Das tantas mulheres que pipocam em livros e especialmente em antologias recentes pinço Ivana Arruda Leite, autora de livros de literatura para jovens e para adultos, entre os quais Falo de Mulher, que de fálico só tem o nome, propositadamente ambíguo.
Ivana inventa umas personas delicadas e irônicas, em narrativas em sua maioria curtas. Jamais me esquecerei da "puta seletiva", personagem que me surpreendeu à época da leitura.
Lendo mulheres como Ivana é que eu me certifico: tem que ter muito peito pra escrever com essa mão leve.
Surubas letradas de final de ano
Quem nos dera fosse sempre assim. Disse Fernando Pessoa que não consta que Cristo tivesse biblioteca. Mas diz Rodrigo Costa, um dos meus designers preferidos, que Jesus lia, e muito. Sabia de cor muitos textos e citava o Velho Testamento de cabeça. E quem não podia ou não sabia ler, ficava de cócoras ouvindo boquiaberto.
No interior de Minas existe um conselho assim: "Quem é coxo sai mais cedo". Pois é. Então os não-leitores (sempre leitores em potencial) que dêem jeitos de arrumar as trouxas para viajar. Se não puderem ir ao Seminário sobre o Livro e a História Editorial, mencionado nesta coluna há duas semanas, ainda dá tempo de ir aos Encontros de Interrogação, no Itaú Cultural, em 22 e 23 de novembro, o dia inteiro.
O evento rola por inspiração de Claudiney Ferreira (aquele, do Jogo de Idéias) e com curadoria de Nelson de Oliveira, Marcelino Freire, Frederico Barbosa e Cláudio Daniel. Depois da abertura, as salas do Itaú serão espaço privilegiado de discussões sobre prosa e poesia, mídias, papel e pixel, literatura e literatice, diagnósticos e prognósticos.
Serão dadas algumas oficinas e apresentadas várias mesas-redondas, quase sempre interessantíssimas. Entre os convidados, os mineiros (da resistência) Ricardo Aleixo, Carlos Ávila e eu. Vários nomes de muitas paragens me vêem à lembrança: Ronaldo Bressane, Joca Reiners Terron, Ivana Arruda Leite, João Paulo Cuenca, Cecília Gianetti, Greta Benitez, Tião Nunes... ha, mas não dá pra ficar citando a turma toda que se encontrará para interrogar sobre os rumos do que se escreve no país. Só mesmo indo até lá.
Destaque especial para a mesa que questiona sobre onde estão a nova Clarice e o novo Rosa. Bobagem questionar? Não sei. Só sei que quem vai falar sobre o assunto espinhoso será Marçal Aquino, mediador de uma mesa de prosadores.
Estarei na mesa "A nova literatura vem da Internet?", com mediação de Élson Fróes. Estamos todos convidados. E alguém me ajude a responder, por favor.
Literatura da boa
Visitem o www.patife.art.br, site reativado recentemente pelos escritores Jorge Rocha, George Cardoso e por mim, que fico só dando pitaco. Mas a revista está interessante. No ar o especial "Estranhos em terra estranha".
Cara Ana, há pouco tempo, li um texto que criticava justamente o fato de a literatura feminina ter muito das mulheres. Era a palavra de um homem. Na época, me questionei como alguém conseguiria escrever sem deixar marcas do seu gênero (e porque deixar marcas deveria ser ruim). Até porque esse texto não deixava muito espaço para as mulheres fazerem literatura de valor. Era ruim se deixassem o seu sexo aparecer. Também seria ruim escrever com um estilo mais "pop", colocado como típico masculino pelo autor. Por outro lado, deixar aparecer marcas do sexo masculino não estava sendo considerado ruim. Por isso, quando li seu texto, fiquei super feliz em ver que você acredita que a literatura feminina pode e deve deixar suas marcas. Por mais que digam que a gente não deve basear nossos conceitos pelos dos outros, confesso que senti alívio ao ver minha opinião, tão insegura, refletida na sua coluna. Sucesso na sua participação no evento do Itaú Cultural!
Olá, Ana Elisa. Não posso falar muito. Neste momento estou rascunhando algumas das 318 perguntas cabeludas que te farei no Encontro de Interrogações...
Oi, Ana Elisa, mandou bem nesse texto; é um tema que sempre me intriga: o sexo da escrita. Eu me lembro de um pensamento de Balzac, de uma crueldade desconcertante: "A mulher que escreve aumenta o número de livros e diminui o de mulheres"; e Baudelaire completou: "gostar de mulher inteligente é prazer de pederasta." Na verdade, tudo que a mulher gera alimenta-se dela mesma e quando sai à luz, vêm envolto em sangue: é uma escrita vital, umbilical. beijins procê
Interessante esse questionamento (entre tantos do seu texto) sobre onde estão o novo Guimarães Rosa e a nova Clarice (justo dois VIPS em ficção brasileira pra mim). E esse outro: escrever como mulher; escrever sendo mulher. Escrita tem sexo? Virginia Woolf achava que sim. Muitos críticos (homens) concordam, e descem a lenha, condescendem, porque são eles quem escrevem sobre "o-que-é-relevante" (quem disse? Ah, sim, foram eles mesmos...); é assunto vasto e polêmico. Feministas criticam Cecília Meirelles porque entendiam na poetisa o esforço por ser "não-sexual", unissex, talvez... E então, fica-se "obrigada" a ter um sexo no que se escreve? Ah, as patrulhinhas ideológicas... Enfim: assunto vasto, como disse; e complexo...