"Por que a gente escreve? Para quem escreve? Se se começar com esta indagação, não se escreve mais! Escreve-se, é tudo, e as pessoas nos lêem. Escreve-se para as pessoas que nos lêem. Os escritores que ninguém lê são os que levantam tais questões."
(Os Mandarins, Simone de Beauvoir)
Algumas vezes a madrugada chega, fria, definitiva. Os vaga-lumes iniciam a sinfonia e o barulho da lua zombeteira começa a ecoar do lado de fora da casa. Olho pela janela grande. A lua está lá, impondo-se, falsa, e atraente. De repente esqueço dela, e das pessoas que também a olham por aí, e do mundo comum, e das coisas comuns, e de mim: leio, ou escrevo... para mim, para os outros, para ninguém, para todos... Que diabo! Ser escravo das palavras, das próprias palavras, das palavras dos outros, de palavras que se perdem, insensatas, verdadeiras, e de frases inteiras que significam algo. Mas, por que apenas a mim significam algo? Os outros preferem olhar a lua, as palavras não significam nada para eles... Por que somente um ou outro escreve, ou lê? Ou escreve e lê? Que tipo de efeito causa no cérebro o ato de ler e escrever, afinal?
Näo esquecerei - era menino ainda - e vi na TV uma reportagem sobre o maior escritor do Brasil. Eu ainda era iniciante, mas vieram-me alguns nomes à cabeça. Não era nenhum desses. Tratava-se de um homem na Bahia, se não me engano, que escrevia livrinhos de faroeste e os vendia nas feiras. Era o maior de todos porque escrevia um livro a cada 2 ou 3 dias. Anos mais tarde, vi no jornal O Estado de São Paulo sobre o maior leitor do país, alguém que tinha lido naquele ano em questão 150 ou 160 livros. Por que alguém leria 150 livros em um ano, meu Deus? Isso parece insano... Que espécie de pessoa gasta boa parte do seu tempo lendo histórias dos outros, lendo inverossímeis frases construídas a repetir mazelas humanas recorrentes há 5 mil anos, casos de adultério, de incesto, assassinato, belas e improváveis histórias de amor, de rara solidariedade, de fatos há muito já encerrados, de fatos que jamais acontecerão, de pessoas que se foram, de pessoas que não existem? Por que perdemos tempos com isso? Por quê? Repito a pergunta: que tipo de efeito causa no cérebro o ato de ler e escrever, afinal?
Eu quero ser poético, sempre, e justificar o ato de leitura como puro, singelo e legítimo prazer, apenas. Quem lê (e quem escreve) realmente sente regozijo em fazê-lo, acredito. Eu o sinto. E não restam dúvidas. Mas, existem tantas outras coisas - algumas mais simples, como observar a lua cheia - que também o dão! Não há nada de prático diretamente resultante da leitura de poesias, por exemplo. Ler toda a obra de Gregório de Matos trará algum benefício evidente e imediato? Não. É somente o prazer da leitura, de fato.
Não consigo apreciar um quadro e emocionar-me, viajar, os pensamentos distanciando-se cada vez mais, sem amarras, o coração acelerando, o sorriso despertado. E já vi muitos quadros por aí. E nada. O que há de errado comigo? Por que meu olho dilata agradecido lendo e não dilata surpreso vendo uma obra de arte? E por que, em outras pessoas, acontece o contrário? E por que, pessoas pintam quadros que valerão milhões séculos depois se não significam absolutamente nada para mim? Por que não vendem os quadros e montam grandes bibliotecas? Deve significar algo para eles. Eu juro que queria chorar olhando esculturas e pinturas... O que há de errado comigo? Por que os livros monopolizam minhas emoções? Por que somente os livros me fazem sonhar? E a música clássica? Por que somente uns poucos sortudos gostam dela? Se é boa como dizem, por que não agrada a massa? A massa não gosta do que é bom também? Só alguns têm o direito de apreciá-la? Falta de costume, de conhecimento? Será?
Nosso cérebro reage de maneira distinta aos estímulos que recebe, a linguagem, as imagens (de quadros) que vemos, aos sons que nossos ouvidos recebem. Talvez aquele amontoado de sons incomuns da orquestra incite o cérebro, atraia-o, como se aquele dissesse: "Opa, esse negócio parece ser interessante! Não ouço isso por aí sempre! E parece mais sofisticado do que outros sons!". Mas se for só isso, por que se chora então? Por que se chora ouvindo ópera? As linhas desenhadas e as cores combinadas nos quadros parecem desafiadoras, de modo que, uma vez captadas pelos olhos, o cérebro as analisa e parece contente em demonstrar o funcionamento do fantástico software que possui. E que funciona bem, sem nada similar reproduzido eficazmente pelos homens. Sabemos, ainda, que nosso software cerebral foi projetado para que identifiquemos formas humanas e animais agradáveis e que isso nos dê prazer, por isso as pinturas desse tipo atraem tanto.
As artes, ainda que acessíveis a todos, não são facilmente produzidas e adquiridas. Há poucos artistas no mundo comparando-se com as profissões "comuns", de modo que "ser artista" dá status. Escrever poesia, tocar cravo e pintar abstratamente aumentam a chance da pessoa obter respeito dos outros. As perícias artísticas são razoavelmente complexas, o que, supõe-se, demonstram maior capacidade nessa área (oriunda de uma genética propícia), tempo livre para se dedicar a isso (como treinar violino 8 horas por dia) e, por que não?, situação financeira estabilizada, pelo menos nos países pobres, onde freqüentar aulas de piano demonstram geralmente a classe social da pessoa.
O que são as artes e por que precisamos delas? Por que abrimos mão de algumas categorias como essas? Por que a arte nos emociona? Por que queremos "aquilo" para a gente, por que queremos ser como os grandes escritores, os grandes atores, os grandes pianistas?
Além do prazer estético e o status obtido, deve-se considerar significativamente o prazer conseguido ao imaginar histórias, pessoas, lugares, (re)inventá-los à sua maneira, transformá-los ao seu gosto, imitar e simular qualquer experiência, vivida ou não, deste ou de qualquer outro mundo ou local que a imaginação permita conceber (irreal sobretudo). Parece agradar ao homem vivenciar de alguma maneira experiências que não viveu e que jamais viverá.
No futuro - não muito distante - possivelmente serão conhecidos alguns dos mecanismos cerebrais, em especial os relacionados à visão e à audição, de modo que poderemos entender melhor o fascínio que as artes causam nos homens e o prazer obtido através dela há milhares de anos e por absolutamente todas as culturas e povos, e que curiosamente seguem o mesmo princípio geral do gosto. Talvez seja possível entender por que gostamos tanto de uma foto ou um quadro, de sons musicais e porque nos emocionamos lendo livros. E então descubramos que o cérebro inventou as artes para nos dar um pouco de prazer. Uma maneira eficiente de nos dar o que sempre buscamos. Nesse caso, então, não haveria muito glamour na arte em si, mas continuaria existindo nos artistas, abençoados com genes que lhes possibilitam criar arte.
Por isso que escrevemos apenas para as pessoas que nos lêem: para que ouçamos depoimentos coerentes com nossas palavras, como o que tentamos transmitir, com o que buscamos, com o significado que certas coisas têm para nós e não têm para os outros. Sentimentos que - conscientes ou não - estão presentes em alguns mas não em outros, tampouco em todos. Sonhos, frustrações e dores que habitam nossa alma - caso ela realmente exista - ou nosso cérebro, pelo menos, e que apenas as artes conseguem acessá-las, revivê-las e fazer-nos chorar feitos uns tolos.
Agora que acabei de escrever, olharei a lua um pouco...
"Não há nada de prático resultante da leitura de poesia..." E ainda bem que é assim! Por que tudo tem de ser prático? Por que temos de retirar alguma espécie de "lucro" com cada atividade que executamos? Ler poesia faz bem à alma (não duvido nem por um segundo que esta exista). Ler prosa de ficção, para meu gosto particular, mais ainda; mas Gregório de Matos bem merece estar entre os seletos (um dos raros casos em que a faculdade me fez descobrir um autor que se me tornou caro...). Quanto à música clássica, o que sabemos do homem comum que, nos séculos XVIII e XIX, cantava árias de óperas de Mozart e de Verdi pelas ruas (assim afirmam os historiadores) pode nos dar uma pista; podia ser que, sendo "comuns", essas peças musicais (no sentido de populares, conhecidas), como óperas, tendo letras a serem cantadas, a distância entre elas e a música "popular" não fosse grande como agora é. Creio que o costume faz boa diferença. E pessoas sem cultura formal ou instrução superior também gostam de ópera, e de música clássica hoje: conheço pelo menos um exemplo. Crianças carentes, quando "apresentadas "a Mozart e a Beethoven", apreciam-nos; há os que se entusiasmam (fiz a experiência quando trabalhei com oficinas de leitura). Enfim, é assunto vasto, cheios de caminhos e nesses caminhos bifurcações... excelente texto!
É, meus amigos leitores, a literatura e as artes em geral são maravilhosas. Inclusive, agora eu sou o-escritor-que-tem-prazer-em-escrever só pela possibilidade de alguém me ler...
Existe maior sentido para a vida do que sentir prazer? Já me perguntei muito: qual o sentido da vida? - e quem no mundo não se pergunta alguma vez? - E encontrei a resposta: sentir prazer. E o porquê de sentirmos prazer? Devido à nossa capacidade de percepção biológica e, pense, seria possível o ser humano perpetuar sua espécie se não houvesse prazer? Não me refiro só a sexo. A mesma coisa acontece com a arte: ela existe por prazer! Nós precisamos senti-lo, ela nos proporciona. A arte pra mim nada mais é do que uma forma de expressão, comunicação que o homem tem necessidade. Eu comecei a escrever um livro - se lhe interessar, peça - que dizia isso. O ser humano apareceu daquela forma, apenas sobrevivendo, comendo, existindo. Mas de repente usar peles deixou de servir apenas para aquecer e proteger, os homens começaram a competir qual pele era mais quente, mais bela e logo sua comunicação transpareceu por meio das vestes... A arte da moda. Talvez assim tenha nascido a arte. "Nosso cérebro reage de maneira distinta aos estímulos que recebe", concordo e por isso me oponho a visão "maniqueísta" de que existe arte boa ou ruim. Achei seu texto maravilhoso!
Caro Marcelo, sou estudante de jornalismo e só descobri o prazer da leitura e da escrita a partir do primeiro ano de faculdade. Antes gastava o meu tempo assistindo a Tevê. Hoje, meu maior prazer (fora a minha esposa) é pegar um bom livro e, sem pressa, saboreá-lo. E devido a profissão que escolhi, estou praticando, mais do que nunca, a arte da escrita.
O autor do texto, como bom conhecedor do mundo da escrita e da leitura, talvez tenha se esquecido de um pequeno detalhe quando disse que a produção textual serve para dar prazer às pessoas. Certamente não é só isso. Não é so para distrair ou revelar conhecimento apenas por revelar. Amigos, a leitura é intelectual e o aprendizado através da leitura é a evolução humana. Se aprende muito através de leituras, mas isso não é o bastante para a vida. No dia a dia, quando se põe em prática o que se aprendeu na leitura, é que se percebe o quanto evoluímos. Se dá prazer, ótimo! É muito bom quando se une o útil ao agradável. Sabemos que a leitura e a produção textual existem em váriios níveis. Daí modernamente estar em voga o termo letramento. Mesmo quem se denomina analfabeto tem algum tipo de leitura e produção de texto, é preciso, pois, que se incentive essas pessoas não só a produzir diversos textos, como a lê-los também. Definir a leitura como sendo apenas uma coisa não é aconselhável. Mas o importante não é definir, mas sentir, ter, usufruir. Ler o mundo é aprender um pouco com ele a cada dia. Saber usar o que lemos é que faz a diferença.
Sou estudante de filosofia e sempre adorei ler... tenho sido escrava feliz deste hábito há muito. Mas confesso também minha ignorância e desapego a outros tipos de artes... Como vc, não me emociono como quadros, músicas ou qualquer outra representação do que somos... Olho, sondo (ja sondei, agora, não mais), e vou sempre me perder, me encontrar, começar e me acabar na leitura. Acho que somos abençoados.
Todas as artes expressam, cada uma à sua maneira, sentimentos e pensamentos. Talvez os que preferem literatura sejam mais racionais que aqueles que se emocinam com outras artes, como a pintura. Estes, talvez, tenham uma sensibilidade mais aguçada e percebem o que existe de expressivo ali na arte. Já aqueles que preferem assistir à TV, talvez, sejam menos sensíveis que os da literatura. Mas, enfim, são apenas suposições... Até que alguém descubra, um dia, como a arte causa fascínio aos homens.