Toda a poesia mítica de um antigo e mágico oriente que povoa o nosso imaginário há séculos está vivamente presente em O Enigma de Qaf (Record; 272 páginas; 2004), novo livro do escritor Alberto Mussa, que lançara, em 1999, o premiado O Trono da Rainha Jinga, uma história desenrolada na primeira metade do século XVII, quando o Rio de Janeiro colonial se vê tomado por uma série de crimes, de cuja autoria uma confraria de escravos é acusada. Agora, em O Enigma de Qaf, o autor - que tem ascendência árabe, tendo, inclusive traduzido para o português contistas e poetas árabes, alguns dos quais pré-islâmicos numa coletânea, ainda inédita, intitulada al-Muallaqat (Os Poemas Suspensos) -, se debruça sobre a saga do poeta al-Gatash, autor da Qafiya-al-qaf que, para conquistar o coração de Layla, filha do xeque da tribo dos Ghurab, precisa decifrar o enigma de Qaf, a vigésima-primeira letra do alfabeto árabe.
Fascinado com as lendas, contadas por seu avô Nagib, da Qafiya-al-qaf, de um homem que atravessava o deserto à procura de uma mulher desconhecida e de um enigma relacionado a uma fantástica montanha circular, o dublê de narrador e personagem decide recuperar os fragmentos perdidos do poema e dar-lhe um formato escrito. Para tanto, resolve aprender o árabe clássico, o hebraico, o siríaco (um dos ramos do aramaico, o idioma que Jesus Cristo usava para se comunicar com o povo simples) e a antiga língua epigráfica do Iêmen - há muito desaparecida - além de estudar os mapas dos desertos da Síria e da Arábia, a arqueologia do Oriente Médio, a etnologia dos beduínos e até a ciência das estrelas. Uma vez recomposto o poema original, se chegaria à solução do enigma de Qaf.
Três características chamam particularmente a atenção neste romance, concebido sob uma forte influência borgiana. A primeira, a forma hábil e absolutamente natural com a qual o autor consegue se infiltrar na trama, sem, contudo, invadi-la inconvenientemente e transformá-la num feudo de auto-referência exacerbada. É através da curiosidade do narrador, que avançamos pelas páginas, como se o acompanhássemos na fascinante jornada por ele empreendida. A segunda característica, um tanto incomum e, por sinal, muito bem realizada é a maneira como o livro é dividido, oferecendo algumas possibilidades distintas de leitura: pode-se fazê-la, concentrando-se na história principal, dividida em vinte e oito capítulos, cada qual correspondente a uma letra do alfabeto árabe. Neste caso, o que temos é uma interessante novela épica de aventuras. O autor, no entanto, introduziu, entre um e outro capítulo, narrativas intermediárias, denominadas parâmetros e excursos. Enquanto nos parâmetros, Mussa relata as lendas de heróis e poetas da estatura de al-Gatash, com o intuito de estimular o leitor a avaliá-lo dentro de um universo mais amplo, os excursos são construídos na forma de contos breves, deliberadamente desvinculados do enredo principal a fim de não sobrecarregar o leitor, evitando, assim, que ele se perca numa narrativa muito confusa. Mussa utiliza os excursos para fazer uma fascinante releitura de lendas, algumas das Mil e Uma Noites, trazendo às páginas figuras célebres como Sherezade, Aladim, Sinbad e Pitágoras. Segundo o próprio autor anuncia logo na abertura do livro, os excursos são essenciais para os que "tiverem a ousadia de decifrar o enigma de Qaf", embora a não-leitura destes textos não comprometa a compreensão da trama principal. Também a leitura isolada dos parâmetros ou dos excursos é válida, já que o autor uniu-os à história, preservando-lhes, ao mesmo tempo, uma autonomia em relação ao restante do livro.
Outro dado interessante diz respeito às epígrafes que, pomposamente, abrem os vinte e oito capítulos do livro: são todas fictícias, criadas pelo próprio Alberto Mussa, num lance de indiscutível fervor criativo. Como se vê, os enigmas neste livro estão por toda parte. É como se a cada parágrafo transposto, a cada página virada, uma surpresa nos espreitasse pronta para dar o bote. Uma sucessão infinita de charadas e armadilhas das quais somos pouco capazes de escapar. Quer ler, verá.
Uma batida sensual para o pop-rock
No momento em que me esforço para dar forma a estas claudicantes linhas, deleito-me com o relaxante novo CD da cantora carioca Danni Carlos, que ganhei de presente na semana passada (sim, os colunistas do Digestivo Cultural, por incrível que pareça, também fazem aniversário. Ou será que alguém pensa que somos não mais do que uma confraria de ectoplasmas cibernéticos?). O CD chama-se Rock'n'road Again e é uma reunião de vários sucessos do pop e do rock internacional, reinterpretados na voz sensual, aveludada e elegante de Danni, que vendeu mais de cem mil cópias do seu primeiro álbum Rock'n'road Acústico, na mesma linha, lançado em 2003.
O repertório inclui sucessos que foram executados exaustivamente nas rádios FM como "Losing My Religion" (R.E.M.), "Don't Speak" (No Doubt) e "With or Without You" (U2). Há também uma composição própria, a suave e melodiosa "Just Don't", ideal para ser tocada num momento de relaxamento. Chamou-me particularmente a atenção, no entanto, a interpretação da cantora para "Sowing The Seeds Of Love", um dos maiores sucessos do Tears For Fears e, sobretudo, para "Wonderwall", da banda Oasis, que ficou belíssima. Por essa, acho que Noel e Liam Gallagher não esperavam.
É claro que sempre haverá os espíritos de porco a acusar Danni Carlos de oportunista, de ter se vendido às facilidades de se cantar em inglês, aproveitando-se da sua perfeita pronúncia do idioma, como se isso constituísse um crime de lesa-pátria. É curioso que ninguém acha estranho quando intérpretes internacionais, como a holandesa Josee Koning, cantam músicas brasileiras em português, ignorando suas línguas nativas. Será que na Holanda não se preza tanto a cultura pátria como no Brasil, um país cuja população trata tão bem o seu idioma a ponto de ele ser, hoje, quase um mutilado de guerra?
De qualquer forma, a julgar por seu belo trabalho neste Rock'n'road Again, seria um prazer ouvir Danni Carlos entoando, por exemplo, clássicos do Rock Brasil como "Corações Psicodélidos", "Meu Erro" ou "Exagerado". Quem sabe? Pelo menos, neste álbum, ela já nos dá uma prévia de como é a sua voz em português, com a faixa bônus "Não Leve a Mal", uma versão de "Don't Get me Wrong", dos Pretenders. Vamos aguardar.
Uma pérola do humor descoberta ao acaso
Outro dia, durante o meu périplo semanal pelos sebos do Rio de Janeiro, encontrei, ao acaso, um antigo exemplar das Obras Primas do Conto Humorístico, que reúne textos primorosos de prestigiados autores das Literaturas nacional e internacional. É sabido que o humor tem andado escasso. Não o humor rasteiro, de piadas degradantes e, não raro, ofensivas, mas aquele humor fino, inteligente, resultante de um olhar agudo e privilegiado sobre o mundo, que só uma bagagem cultural sólida aliada à sabedoria de uma razoável experiência de vida é capaz de proporcionar.
O livro, uma edição dos anos sessenta, da livraria e editora Martins de São Paulo, estava a um canto empoeirado da prateleira mais baixa de uma estante discreta, de maneira que foi quase um milagre encontrá-lo. Nele, deparei-me com textos hilariantes de escritores como Pirandello, Voltaire, Anatole France, Machado de Assis e Monteiro Lobato. Mas foi, sobretudo, por causa de Pitigrilli, o escritor a quem Angelo Frattini se referiu como "o homem mais alegre da Europa" no seu tempo, que me decidi a levar o livro.
A ironia lancinante, o sarcasmo, a acidez cáustica e o humor afiadíssimo e certeiro são os traços mais marcantes da prosa de Pitigrilli, nascido em Turim em 1893 e que, perseguido pelo fascismo, refugiou-se na Argentina. Seu conto selecionado para o livro, O Chapéu em Cima da Cama, não foge ao seu estilo. A história, que começa com o reencontro de dois velhos amigos de adolescência num enterro depois de dez anos sem se verem, mostra Pitigrilli na sua melhor forma humorística. É uma pena, é realmente uma pena, que seus livros não estejam na praça, circulando de mão em mão, sendo reeditados, devorados, apreciados e comentados à exaustão. A verdade é que o mundo de hoje não é compatível com o humor elegante de um Pitigrilli, de um Oscar Wilde ou de um Machado de Assis. Eles simplesmente não seriam compreendidos e ainda correriam o risco de serem confinados num sanatório como loucos metidos a sabichões.
Mas, felizmente, ainda podemos contar com lugares como os sebos que, junto com as bibliotecas, são os guardiões da memória escrita, os santuários que oferecem abrigo aos livros condenados ao ostracismo pelo frenesi e pela brutalidade fútil da sociedade moderna. Essa semana farei nova incursão pelos sebos cariocas e, quem sabe, não encontro um novo Pitigrilli para colorir as minhas noites de leitura e ajudar a ampliar um pouco os meus horizontes sobre o ridículo da nossa condição humana?
Algumas observacoes:
1) "Etcetra, etceterum, etcetrae", Avius Avenus.
2) A cantora é gatissima, portanto sua opinião não é imparcial. Ela pode cantar até em frances, que fica tolerável.
3) Livros podem ser também uma brutalidade fútil que provocam o frenesi da sociedade... Não os fossem, poderiamos estar confortáveis na idade das pedras, sem nenhum frenesi...
Mas para sua alegria, veja este linque aqui. Além disso, as bibliotecas de Berkeley, Stanford e do Congresso Americano estão iniciando a digitalização de todo seu histórico acervo... Quem sabe, pitigrili não aparece por aqui, né?
5) Não conhecia o Mussa, você achou este melhor que o primeiro livro?
É uma pena em pleno século 21 (ou XXI para os antigos) as pessoas ainda se preocupem com barreiras de lingua e etc. O Brasil não é uma ilha e devemos abrir nossas fronteiras mentais de uma vez por todas. O que eu acho engraçado é que os grandes "intelectuais" que criticam esta menina e outros de cantar em inglês, são os que mais se apegam ao filosofos estrangeiros e aos clássicos. Chega de policiamento!