A pergunta veio de onde eu menos esperava: o meu próprio orientador, professor universitário, historiador da arte, editor de publicações acadêmicas - enfim, um profissional cuja carreira se desenvolveu à margem do mercado, por assim dizer, na torre-de-marfim da universidade, onde pesquisadores se dedicam (ao menos em tese) primariamente à busca do conhecimento e ao ensino de novas gerações. Mas foi ele mesmo quem perguntou, ao saber que eu pretendia concorrer a um emprego universitário: "How are you going to market yourself?" ("Como você vai se vender"?).
Foi como um bofetão. Ora, ué, antes de perguntar "como", ninguém perguntou "se" eu queria me vender. É claro que eu estava pensando em como eu iria me apresentar, ou me representar, ou me descrever. Afinal, a luta por um emprego em universidade é competitiva, e a cada candidato cabe o ônus de fazer com que a sua ficha de inscrição se destaque das centenas de outras. Tão importante quanto um bom currículo ou um histórico estelar é saber apresentá-los de modo atraente e convencer os empregadores de que você (ou eu) é o par perfeito para o departamento ou faculdade. É um processo de sedução, sim, que envolve carisma e outros talentos inefáveis. Mas daí a comparar o processo a um mercado, a um processo de compra e venda (intermediado por publicidade), é um pouco demais.
Antes que me acusem de sonhadora anacrônica ou socialista obsoleta, deixo claro: não sou "contra" o mercado. Em primeiro lugar, porque não adianta ser contra uma realidade, seja a cor do céu ou a natureza das relações sociais. Em segundo lugar, porque mercados não são essencialmente bons ou ruins, ainda que possam se tornar uma coisa ou outra. Relações mercantis fazem parte da história, talvez até da pré-história, em todas ou quase todas as sociedades. De sua forma simples, como escambo, passando pelas primeiras moedas de metal valioso, até as operações abstratas e complexas do mercado de futuros - não dá para separar ser humano de mercado. A troca ou venda de coisas tem seu paralelo em câmbios simbólicos, como oferendas e sacrifícios em troca de favores divinos, ou mecenato artístico em troca de prestígio social. E foi graças aos mercados burgueses que a Idade Média se desenroscou lentamente da servidão rural dos feudos e desaguou na cultura urbana e (mais) livre da Idade Moderna, não à toa o período do mercantilismo.
O lado mascate
Não admira, então, que hoje o mercado esteja por toda parte. Eu, dentro do mundo acadêmico, tenho de me transformar em mercadoria, bolar uma estratégia de publicidade, desenvolver uma embalagem atraente, e finalmente me oferecer como produto nas feiras profissionais ("career fairs"). Assim como nas universidades, quase todo o resto das profissões tem caráter semelhante. O equilíbrio cadente dos salários depende não do valor intrínseco de cada trabalhador, mas do valor pelo qual o trabalhador decide ou aceita se vender.
Um dos programas de televisão mais bem sucedidos da tevê americana, The Apprentice (O Aprendiz, no Brasil), consiste basicamente em duas dezenas de candidatos tentando se "vender" ao chefe, Donald Trump. A vinheta do programa cantarola, "money, money, money, money", e, na hora da decisão, cada competidor se promove como se a mesa de reunião fosse uma banca de feira e fosse preciso vencer a grito para vender mais bananas que o vizinho. A linha entre concorrência profissional e disputa comercial é tênue. A maioria das provas do programa exige que os concorrentes vendam alguma coisa - literalmente, saindo às ruas e oferecendo um produto. Eu nunca trabalhei em corporação e não tenho idéia do que as tarefas de um executivo demandam, mas sempre imaginei que envolvessem cálculos e tabelas e conceitos complicados e negociações sofisticadas. Nunca pensei que um administrador de empresas precisasse provar seu lado mascate (sem nenhum demérito dos últimos). Mas esse é o conceito do programa como um todo, e depois de cada episódio semanal, é possível comprar os produtos desenvolvidos pelos participantes. Até a arte de vender está à venda.
Talvez seja um sinal dos tempos. Tudo vira mercadoria - seja o espaço urbano de centros históricos promovidos como destinação turística, seja a história, até mesmo a história trágica de guerra e holocausto transformada em indústria bilionária de filmes, livros, museus e passeios. A lógica do shopping center se estende pelas cidades, até mesmo em ruas e espaços abertos, muito além da "praça" de alimentação; e o mundo vira um E-bay gigante, em que tudo, não importa o quão estapafúrdio, pode ser comercializado.
Mercado bom, mercado mau
Como eu dizia antes, o problema não é o mercado - o problema é qual mercado, e onde ele está. Que alguém receba um salário por seu trabalho (seja trabalho intelectual ou manual, seja prestando um serviço ou produzindo algo) é natural, é desejável e esperado. Mas isso não significa que a pessoa esteja se vendendo. Podemos falar em remuneração, retribuição, recompensa por um trabalho (em vez de preço). Mas, muito antes de minha coluna rabugenta, Marx já havia revelado parte do problema: quando nada resta ao trabalhador senão vender sua própria força de trabalho (destituído de instrumentos, meios de produção, matéria-prima), quando os trabalhadores em excesso (ou, melhor dizendo, os desempregados estruturais) puxam os salários para baixo, quando os recursos se concentram nas mãos de poucos empreendedores (em vez de espalhados em iniciativas diversas e cooperativas) - bem, quando tudo isso acontece, o mercado se torna um lugar inóspito e injusto para a maioria das pessoas.
Daí o meu desconforto em dizer que vou "me vender". A caracterização da universidade como ela mesma um mercado significa, na maioria dos casos, adotar valores comercialistas, mercantis e superficiais. Nos Estados Unidos, é claro, o mundo universitário é extremamente integrado à economia pública e privada. As universidades privadas (entre as quais estão as melhores do país) são geridas como empresas ou corporações. Em si isso não é ruim - afinal, é bom que a universidade seja auto-suficiente e não drene recursos sociais necessários por exemplo à saúde ou educação básica; é bom que a gestão universitária seja eficiente e produtiva, gerando a melhor educação e infra-estrutura para os alunos e as melhores condições de trabalho para os professores. O problema é quando essas benesses tornam-se secundárias, e o que conta é o lucro. O resultado, por exemplo, é uma pirâmide social em que matérias como história, filosofia, literatura, história da arte, teologia e antropologia são empurradas para o fundo, punidas com recursos escassos e parcos salários porque não produzem lucros imediatos. (A desigualdade disciplinar e a relação das humanidades com a vida "prática", aliás, é outra polêmica - tema de colunas recentes no Digestivo - em que não vou entrar, pelo menos por enquanto.)
A escolha das palavras
É claro que nem eu, nem meu professor, nem os comitês de seleção dos departamentos acadêmicos somos necessariamente cúmplices deste estado de coisas. Mas a nossa linguagem revela muito mais que a casca das palavras. O problema de adotar o vocabulário mercantil para descrever a busca de emprego universitário não é simplesmente o som dos fonemas ou a sua denotação. A linguagem também forma, sutil e gradualmente, o modo como percebemos o mundo. Repetimos inocentemente a frase "vender a mim mesma", e depois de um tempo estaremos achando natural, pois acostumados, que as pessoas tratem a si próprias como mercadorias.
Qual é a diferença? Se eu vou me candidatar a uma vaga na universidade, espero que o empregador me veja como uma adição valiosa a seu departamento de acordo com o que eu sou, com o que acredito, com o que fiz até agora e com o que planejo fazer. Ou seja, como uma pessoa independente, que irá obviamente cooperar com seu empregador e seguir regras de conduta, mas poderá manter sua individualidade. O que eu não espero é ser vista como uma fonte de serviço que pode ser moldada e usada de acordo com a moda intelectual vigente (o que afeta os temas de minha pesquisa), ou com a corrente política que detém o poder acadêmico (determinando o conteúdo de aulas ou a perspectiva crítica), ou com a sanha de lucro dos administradores (resultando em professores que fazem o trabalho de duas pessoas e recebem o salário de meia).
Quando eu me apresento, ainda que eu possa usar de sedução, propagandear meus méritos com um discurso estudado, melhorar minha embalagem com um terninho novo, dizer as coisas certas na hora certa, ainda assim eu estarei apenas e sempre me colocando à disposição para realizar um trabalho que desejo e posso fazer. Já quando eu me vendo, estou entregando o controle desse mesmo trabalho, do meu desejo e da minha capacidade, a quem quer que esteja me comprando. A mentalidade da "apresentação" comporta defeitos, contingências, imperfeições, tanto quanto arroubos criativos e mudanças de curso. Já a mentalidade da "compra e venda" assume produtos perfeitos, previsíveis e imutáveis, o que, no caso de gente, há de significar apenas ocultar os defeitos. E o produto, quando quebra ou não funciona do jeito que a gente quer, é jogado fora e substituído.
O lugar do mercado
Eu poderia estender esta coluna em comparações. Relações afetivas, por exemplo - a diferença entre me apresentar como sou da melhor maneira possível, ou "market myself" como um ideal feminino (o que, aqui na Califórnia, envolve a lista obrigatória de procedimentos: cabelo tingido, seios de silicone, bronzeado artificial, dentes sobrenaturalmente brancos, etc.). Essa atitude é tão disseminada no cotidiano (e não apenas na praga dos "dating shows" televisivos), que a maneira de se referir a um bar de paquera é dizer "meat market" (mercado de carne).
Concluo dizendo, de novo, que o problema não é o mercado. O mercado tem seu lugar, os publicitários têm seu valor, os anúncios têm sua função e necessidade. O problema é quando um aspecto específico de nossa cultura, de nossa sociedade, de nossa vida individual ou coletiva - neste caso, o mercado - extravasa e domina todos os outros aspectos. Nem todas as relações humanas devem ou podem ser medidas e mediadas por dinheiro. Não quero com isso dizer que ocupações intelectuais estão "acima" das demais. Mas há algo de diferente - nem melhor, nem pior, mas diferente - na atividade de pesquisar e lecionar, algo que justifica seu apartamento do mercado. Em parte porque a produção intelectual (universitária ou não) nos dá a chance de fazer e ler críticas sobre nossa sociedade, incluindo o mercado - críticas necessárias, porque se o mercado estivesse mesmo funcionando não teríamos o descalabro de desigualdade econômica que é o Brasil. O ensino e a pesquisa nos permitem rever e melhorar estruturas sociais, em vez de reproduzi-las e endossá-las automaticamente. Você, leitor, provavelmente não gostaria (aliás, provavelmente se sentiria traído) se meus textos fossem produzidos com o objetivo de vender ou promover alguma coisa, ou promover a mim mesma, em vez de simplesmente expressar minha opinião honesta e descompromissada. E é por isso que eu, seja como acadêmica, seja como colunista, me recuso a aprender a arte de me vender.
Nota do Editor
Este texto foi citado na revista Carta Capital por Thomaz Wood Jr.
Daniela, você poderia ter dito "como me prostituirei para ter um cargo no feldos acadêmicos?" mais do que uma questão de mercado, há outras leis que determinam quem vai ficar com as vagas, muitas vezes já devidamente "reservadas", dos cargos universitários. que seja belo o pupilo e submeta-se à lei (às idéias?) do mais forte!!! abraço, jardel