Tenho certeza de que passaram em branco à maior parte do público-alvo os excelentes lançamentos em quadrinhos de 2004, ano agitado para quem se propôs a acompanhar o mercado: profusão de títulos mensais, inesperada volta à carga da editora Abril Jovem, a Companhia das Letras, sim!, a queridinha dos intelectuais reivindicou sua fatia do bolo e a Devir e a Conrad ampliaram notavelmente seus catálogos. Sem ordem de preferência, - sempre acho que o leitor deve ler de tudo - privilegiei ineditismo, raridade, edições de luxo e, só depois, relevância, nesta lista.
Tomorrow Stories - a prova irrefutável de é possível a vida inteligente em revistas de super-herói mensais, mesmo que o segredo seja apelar seriamente ao pastiche e à sátira. Alan Moore reuniu-se a antigos parceiros de crime como Rick Veitch e Kevin Nowlan e criou um irresistível elenco de personagens novos com jeito de velhos amigos: GreyShirt, Splash Braningham, Top Ten, Cobweb e o melhor de todos, Jack B. Quick, o genial garoto-inventor em uma cidade de interior. Teve histórias fracas, mas as melhores eram verdadeiras aulas de uso de cada elemento da linguagem dos quadrinhos: timming, narrativa, diagramação, diálogo.
Os Maiores Clássicos do Demolidor - a primeira da série "nunca imaginei que isso sairia no Brasil". Dividindo em mais volumes, para reduzir o preço final, a editora Panini mandou para as bancas as versões nacionais da extraordinárias edições Marvel: Visionaries dedicadas a Frank Miller. Quem se regozija com a merreca de páginas em preto e branco feitas que Miller faz para Sin City hoje mal sabe que, há vinte anos, ele dava conta de escrever e desenhar 22 páginas por mês para o Demolidor (ao menos até Klaus Janson assumir o lápis), isso quando não se empolgava e jogava na rua uma edição especial de 40 páginas, como quando matou Elektra. Ler essas histórias no formato e cores originais, com nova tradução, é entender porque ele subiu tão rápido ao panteão dos quadrinhos, porque nem mesmo Dave Sim com Cerebus, Alan Moore com Monstro do Pântano ou Howard Chaykin com American Flagg foram capazes de igualá-lo em diagramação & narrativa nos anos 80.
Concreto - depois de muito bater cabeça, outro dos melhores quadrinhos da década de 80 enfim ganhou edição decente, encadernando as primeiras histórias longas (o álbum original da Dark Horse com todas as histórias longas tem pra lá de 300 páginas). Quer saber como se faz o leitor enxergar cores numa arte em preto e branco? Quer saber como se faz para agregar influências ao seu traço sem desvirtuá-lo? Quer entender como se constrói uma narrativa verossímil com alienígenas que aprisionam gente em corpos de pedra? Quer ver como se mistura histórias de aventura com sutis mensagens políticas e delicada crítica de comportamento? Leia Concreto, de Paul Chadwick.
O Melhor da Disney: As Obras Completas de Carl Barks - mais uma séria candidata ao troféu "nunca imaginei que isso sairia no Brasil", categoria "e ainda menos pela Abril Jovem". Sabe aquelas historinhas divertidíssimas com o Donald, o Tio Patinhas, os sobrinhos e o Gastão que você adorava no Almanaque Disney? Quando é que alguém iria esperar que elas seriam reimpressas em papel couché e formato grande, colecionadas em álbuns com capas pintadas por Carl Barks, com tradução nova, cores refeitas e em ordem cronológica? Só mesmo o aniversário de 70 anos do pato mais irascível dos quadrinhos explica um milagre desses. Para guardar na estante.
Noites sem Fim (Sandman) - o lançamento graficamente mais luxuoso do ano. A volta de Neil Gaiman aos Perpétuos não seria um caça-níquel de luxo, como a mini-série 1602; restava confirmar se ele ainda sabia o que colocar na boca de cada personagem. Eis que numa edição em capa dura, com uma história dedicada a cada um dos 7 irmãos, ilustradas pelo time dos sonhos do quadrinho mundial (Milo Manara, Bill Sienkiewicz, Miguelanxo Prado, P. Craig Russel, Frank Quitely e mais), Gaiman ainda se dá ao luxo de inventar uma ou duas surpresas relativas ao passado, para a alegria dos fãs mais aguerridos. Só a história da Morte, passada numa das ilhas de Veneza, já vale a edição. Que tem capa de Dave McKean e letras de Todd Klein, como de costume.
Aninha Bonita e Gostosa - vamos parar com essa brincadeira e entregar de uma vez o troféu "nunca imaginei que isso sairia no Brasil". E a ganhadora foi Little Annie Fanny. Para quem não sabe, Hugh Hefner não revolucionou o mercado de revistas só ao revelar que haviam mamilos no meio dos seios femininos; o charme da Playboy estava em vender um estilo de vida ousado como as confissões das suas entrevistas, elegante como os editoriais de moda e sofisticado como os excertos literários e as sátiras no quadrinho mais picante que se houvera feito. O criador era o homem que, dez anos antes, concebera a Mad: Harvey Kurtzman e os ilustradores eram gente do quilate de Bill Elder, Wally Wood, Jack Davis, John Severin e até um iniciante Frank Frazetta, fazendo arte totalmente pintada, isso no começo dos anos 60, muito, mas muito antes da Heavy Metal. A maioria das piadas e referências culturais da época poderiam ficar perdidas, não fossem as cuidadosas notas ao final do volume. Até agora, difícil de acreditar.
The Fabulous Furry Freak Brothers - a editora Conrad andou se travestindo de Fantagraphics brasileira ao publicar coletâneas de histórias do Crumb, como América ou Mr. Natural (tremendamente mal lidas pelo público, que chegou a compará-lo com Michael Moore), e artistas do underground, como Zap Comix, hoje relevante mais pelo valor histórico. Por essas e por outras é que se afirma sem medo que os irmãos Marx de Gilbert Shelton foram os quadrinhos que melhor envelheceram da turma da Haigh-Ashbury. O humor está fresco como o do episódio do sitcom de ontem; o desenho é um catálogo de soluções visuais cômicas, hachuras e peso das linhas de contorno e o senso de tempo de humor é inigualável. Um daqueles estranhos casos em que o tempo transforma o udigrudi em clássico.
À Sombra das Torres Ausentes - tudo indicava que seria preciso uma hecatombe para Art Spiegelman voltar à prancheta, mas com vontade, não para as 3 páginas finais da New Yorker. Essa hecatombe aconteceu quando as torres gêmeas de Nova Iorque caíram, elevando aos píncaros suas neuroses. Um raro documento de uma mente confusa, desesperada e impotente, evocando em imagens a desorientação dos cidadãos após o ataque, com direito a referências aos quadrinhos do começo do século.
Persépolis - publicada antes do 11 de setembro na França, aposto que surfou na onda de "conhecer a cultura islâmica" que se ergueu no mar do Ocidente após o massacre - se não para reconciliar, ao menos para tentar entender o tipo de caldo que alimenta terroristas em série, ganhando edição em vários países. No Brasil, foi bancado pela Companhia das Letras, em rara incursão ao mundo dos quadrinhos. Persépolis é o primeira de quatro partes da memória de Marjane Satrapi, descendente da dinastia Qadjar, derrubada pelo Xá Rezha em 1925, Marjane completou 10 anos em 1980, e acompanhou o processo da revolução islâmica no Irã. Os conflitos entre política e religião, as interferências de ocidentais na região, relações familiares complicadas, a perda da inocência, tudo isso coube entre as páginas de Persépolis. E foi só o primeiro tomo.
Sopa de Gran Peña - no aniversário de 20 anos de Love & Rockets, a editora Via Lettera traz de novo, num volume só, a história que desvelou para o mundo o talento de Gilbert Hernandez. Comparada a Gabriel Garcia Márquez, Jorge Amado e Vargas Llosa, elogiada por Moebius, citada por Frank Miller como o que havia de mais original nos anos 80, Beto não precisava da chancela de nenhum deles para, discreta e silenciosamente, se candidatar a autor da melhor história daquela década. Quem não leu as edições da Record entre 1991 e 92 agora pode tirar a prova dos nove e ver que Heartbreak Soup não é literatura ilustrada, é narrativa em quadrinhos vibrante, bem humorada, envolvente e, esse elogio não é exagero, original.
Revista F. - num ano cheio de novidades independentes de Fábio Moon e Gabriel Bá, da brava revista de quadrinhos e rock'n'roll Mosh!, de Tarja Preta e Preto no Branco, escolhi mencionar a revista F. porque: tem formato generoso, é gostosa de folhear (embora incômoda de carregar), veio sem slogans, palavras de ordem ou manifestos, tudo varrido do caminho que poderia congestionar o humor. Espera-se que se torne periódica.
Nota do Editor
Rafael Lima assina hoje o blog Na Cara do Gol.