Nelson Freire e João Moreira Sales. Dois virtuosos formam a mais perfeita dupla cine-musical dos últimos tempos. O DVD Nelson Freire, lançado em 2004 pela própria produtora do filme, a Vídeo Filmes, é dividido em 32 partes e mais 12 itens extras inéditos que não estavam no longa exibido nas salas.
Longe da estética da miséria - da qual o cinema nacional não consegue se desvencilhar e que tenta nos emocionar, advertindo com certa arrogância para "os problemas sociais" -, o filme de João Moreira Salles nos indica outros caminhos, também reais, para nosso cinema vernáculo. No meio deste ambiente injusto a que nos auto-condenamos a viver, existem belezas, sonhos e êxtases aos que têm o desejo de vivenciá-los sem culpas. Sim, há vidas paralelas que permitem nos humanizar e nos deixar suaves e serenos (e, de vez em quando no escuro de uma sala de cinema, sentimos que nossa alma vai por outros caminhos que não o das armas, da violência e dos escrachos..). Com uma linguagem inédita em nosso cinema, eficiente e aparentemente inatingível, Nelson Freire é um grande passo na construção da cinematografia nacional. Um filme de perfil internacional e que outros públicos (em especial, o europeu) verão com agrado.
Li por aí, numa reportagem, que o João Moreira Salles e o Nelson Freire - enquanto rodavam o filme - pensavam e comentavam que agradariam um público pagante cujo número não passaria de 5 mil espectadores (era um número otimista, para eles). A seu ver, estariam sentados na platéia os mais eruditos e os curtidores de música clássica - enfim, os eleitos. Felizmente os dois se enganaram. O filme ficou em cartaz mais de 6 meses contando com o prazer unânime do público que o assistia. O que é um dado importante, afinal, poucas vezes um filme consegue essa unanimidade de gosto sem ser piegas ou idiotamente básico. O sucesso de público de Nelson Freire nos alimenta a esperança de que um dia teremos outras opções de cinema nacional além do cinema-favela.
Sei que muitos jovens, por exemplo, assistiram e ouviram, graças ao filme, seu primeiro concerto. É que Nelson Freire tem o poder de induzir no público uma espécie de êxtase musical (tanto no conhecedor quanto no iniciante).
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Num lento traveling, quase no inicio, a câmera lentamente vai descobrindo os personagens, Nelson Freire e Martha Argerich ensaiando a quatro mãos a Valsa para Piano de Rachmaninoff, na residência dele em Bruxelas. Nesta sala-de-estar onde cabem apertados dois pianos de cauda, se passa grande parte do filme.
O espectador se delicia com Argerich e Freire na intimidade doméstica: seja nos incansáveis ensaios ou em tarefas engraçadas como procurar uma partitura de Tchaikovsky perdida no meio da bagunça de papeis; ou quando Argerich limpa o teclado com 4711, a clássica água-de-colônia. Nesses detalhes, é que entra a sensibilidade de Moreira Salles, como revelador de pequenos atos do cotidiano que encantam ao espectador...
Vemos no filme um Nelson Freire de poucas palavras e grandes emoções, que aparecem quando fala de sua admiração pelos pianistas de jazz, em especial Errol Garner. Mais adiante, quando recorda Guiomar Novais ou na lembrança da sua professora de piano no Rio, que surge na vida do jovem prodígio com a mesma sorte de quem encontra a última esperança para continuar seus estudos no Brasil. Nise Obino é sua professora-fundamental, a mesma pela qual o jovem Nelson Freire sente uma grande paixão e admiração. Nise inicia a escultura do grande solista de Chopin e Schuman, que anos depois ele continuaria sendo na Europa...
Freire não é só de poucas palavras, é também de poucos amigos: solitário por opção, avesso à exibição fácil, relata noutro momento emocionante em sua eterna amizade com Martha Argerich (a pianista argentina de quem é contemporâneo). Num determinado instante do filme, a já consagrada Argerich diz para o Nelson Freire: "Vai, faz a primeira leitura do El bailecito do Guastavino; você lê melhor do que eu..."
Nas seqüências do solista em concerto podemos ver e sentir a identificação do público com a música e a interpretação em uma cumplicidade lúdica entre concertista e a platéia onde se pode "ouvir o silêncio". É outro grande momento do filme, que João Moreira Salles consegue fixar brilhantemente: a relação do pianista com seu público quando executa o "seu bis", a Melodia de Gluck-Sgambati, voando com todas notas - da Sala São Paulo para São Petersburgo, passando pelo Municipal do Rio e indo ao interior de uma catedral gótica na França. Públicos tão diferentes e tão iguais no êxtase ante a verdade musical!
Assim, Nelson Freire entra para a memória do cinema nacional com a certeza de indicar novos caminhos e uma nova linguagem, que nasce de dentro para fora e vai atingindo a todos de forma igualmente encantadora. O filme é um grande momento do cinema brasileiro nestes anos, onde se destaca a ética e a verdade.
Pequenas Memórias:
Um Encontro em Pindaré-Mirim
O sol era escaldante naquela manhã de abril de 1963. Estávamos, Pedro Rovai e eu, filmando um documentário no meio de uma enorme clareira na selva amazônica, perto de Pindaré-Mirim, lá onde estão as botas de Judas em pleno Maranhão. Filmávamos nesse momento dois caboclos do local debulhando o arroz a pauladas.
Tinham feito a queimada, plantado o arroz para sobrevivência e agora o estavam batendo de maneira primitiva. Debaixo de uma grade de pau, havia um saco que recolhia o arroz debulhado, metade se perdia e ficava esparramada no chão.
De repente, três senhores vestidos como nós - isto é, com calças e camisas sem remendos e usando sapatos - nos deram sinais de que também não eram do local. Eles se aproximaram devagar e sem querer interromper a filmagem. Dado o clássico "corta!", Pedro Rovai e eu nos viramos para os visitantes e vimos entre eles a afável figura do Celso Furtado. Explicamos que estávamos filmando um documentário para a Sudene, que ele presidia na época. Ele olhou fixo pra mim e comentou:
- Eles estão batendo o arroz como faziam os egípcios com o trigo. Só que os egípcios estavam usando o melhor instrumento da sua época. Essa batedeira deve ter cerca de quatro mil anos...
E, logo em seguida, emendou: - O senhor não é brasileiro. Expliquei-lhe que tinha emigrado há pouco tempo e que aquele era meu primeiro trabalho no Brasil (fazer a fotografia de três documentários). Então reencontramos nossos conhecidos comuns e ele me disse:
- Sou amigo do Saulo Benavente. Chegamos a morar no mesmo apartamento em Paris.
- Pois ele foi meu professor de cenografia na Escola de Cine - completei.
Assim começou, no meio da Amazônia, nossa amizade e minha admiração pelo Dr. Celso Furtado - um homem de modos suaves e elegantes, despojado da arrogância típica dos que exercem o poder. Ele se destacava e magnetizava as pessoas sempre pelo enorme conhecimento. Era um humanista no mais puro sentido da palavra. Naquela época já falava em "multiculturalismo", quando ainda nem sequer existia a expressão...
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Em duas outras ocasiões voltei a me encontrar com ele. A primeira delas a poucos dias depois desse primeiro encontro na Amazônia. Foi no Aeroporto de Recife. De longe, ele me acenou e perguntou quando poderia ver o tal documentário. Marcamos para assisti-lo no Rio, na moviola do laboratório (era assim que se assistia em primeira mão os filmes da época)...
A segunda ocasião teve lugar muitos anos depois, em 1986. Foi na Bienal do Livro de São Paulo, no estande da Anistia Internacional. Dessa vez, ele era Ministro da Cultura. Veio até nosso estande para nos visitar e colocar a sua assinatura numa petição em que solicitávamos a abertura de processos judiciários para prisioneiros de consciência cubanos.
Lembrei, nessa ocasião, do nosso encontro amazônico. Com um amplo sorriso de quem faz a descoberta na memória de algo que tinha ficado pra trás, ele me perguntou assim, diretamente:
- Quer dizer que você decidiu ficar por aqui?
- Sim, Dr. Celso. Decidi há muito tempo. Agora sou, inclusive, cidadão brasileiro e nessas próximas eleições vou votar pela primeira vez, igual a todo o povo. O Paulo Brossard, Ministro da Justiça, acabou de assinar o decreto com a minha naturalização. Ou seja, escolhi o lugar onde vou a morrer.
Conversamos bastante nessa noite. Nunca mas vi o Dr. Celso Furtado, mas sempre acompanhei sua inquietação pelo Brasil.
Do encontro amazônico, ficou uma fotografia em slide colorido, que deve estar no fundo de meus guardados... Pedro Rovai, com prolixidade sistemática, me cobra essa foto.
Um dia, tomarei coragem e afundarei nesse poço de guardados. Vai ver tem muitas outras fotos e surpresas...
Nota do Editor
Rodolfo Felipe Neder é diretor do site Millôr Online.