- Amor? Amor?
- Que é?! Você não vê que eu tô dormindo? Que
horas são, homem de Deus?
- Sei lá. Umas seis horas.
- Seis horas? Você tá maluco? Hoje é Domingo! Por que você está me
acordando a essa hora?
- Eu tô escrevendo aquele artigo...
- Que artigo?
- Aquele que eu prometi pro Julio.
- Tá, tá. Então, vai lá, escreve e me deixa dormir.
- Mas, amor, eu tô com umas dúvidas.
- Dúvidas? Que dúvidas?
- Que filmes a gente viu no cinema esse ano?
- Sei lá. Não me lembro.
- Nem eu.
- E daí? Isso lá interessa?
- Interessa. O artigo é sobre os dez melhores de 2004.
- Os melhores o quê de 2004?
- Os melhores filmes, CDs, livros, essas coisas.
- Então põe lá o você gostou esse ano e pronto.
- Que isso, amor? As coisas não são assim.
- Não são?
- Não, uma lista de dez mais é uma espécie de manifesto.
Uma indicação do que as pessoas devem ler, ver, ouvir ou, pelo
menos, lembrar desse ano.
- Que coisa pretensiosa, hein? E você se ofereceu pra fazer isso?
- Pois é. Eu não tinha idéia aonde estava me metendo. Agora eu tô com
o maior pepino e não
sei o que escrever. Dá para você me ajudar?
- Tá bom, tá bom. O que eu posso fazer para te ajudar?
- Diz aí uns filmes que a gente viu esse ano.
- Bom, a gente viu o Cazuza.
- Pô, Cazuza? Fala sério, diz alguma coisa boa.
- Você não gostou do Cazuza?
- Não odiei, mas também não é merecedor de entrar
nos dez mais. Toda aquela situação edipiana com sexo, drogas
e pouco rock'n'roll... sei lá, é quase
um Boogie Nights ao contrário.
- Tá, então fala do Senhor dos Anéis.
- Ah, do Senhor dos Anéis não dá.
- Por que não? Você não amou o filme?
- Amei, mas aí é passar atestado de nerd.
- E aqueles outros que você gostou? Antes
do Pôr do Sol, American
Splendor, Adeus
Lenin?
- Esses, sim, foram bons filmes, mas...
- Mas o quê?
- A lista ia parecer coisa de moderninho.
- Ô, homem chato. Fala, então, dos DVDs que você gostou.
- Dos DVDs? Você tá falando da caixa
dos Irmãos Marx e da coleção do Super
Homem? Não dá mesmo. Eu tô falando
dos melhores de 2004, não de 84 ou 34.
- Então fala de outra coisa. Que tal livros? Você vive lendo. O que
você leu
esse ano e gostou?
- Bom, eu gostei de As
Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay ,
do Wisdom for Others do George
Mikes...
- Pronto. Pode começar daí.
- Não dá, esses livros não foram lançados esse
ano.
- Não teve nenhum livro lançado esse ano que você tenha
gostado?
- O novo do Alexandre
Soares Silva é o máximo, mas vão
dizer que eu tô usando
o artigo para falar bem dos meus amigos.
- E música?
- Música? Fala sério. Esse ano eu só comprei vinil. O
mais recente deve ter sido um dos Smiths.
- Mas você foi no show do Kraftwerk.
- É, o show foi o máximo, mas o público...
- Olha, são seis da manhã de domingo, eu tô morrendo de sono e, vou te dizer,
não
sei mais como eu posso te ajudar. O melhor é você desistir desse artigo e mandar
um e-mail para o Julio dizendo que não teve tempo pra escrever.
- É, tá brabo. Acho que não tem jeito. Vou ser obrigado a fazer
isso.
- Viu, tá tudo resolvido. Agora, vem, deita e vamos dormir um pouquinho.
- (...)
- Fica chateado, não. Ano que vem vai ter coisa melhor para você comentar.
- Tomara.
- Ou você, pelo menos, vê se aprende uma lição e
não
se mete mais nessas roubadas.
- Tem razão. Eu não devia ter me oferecido. Esse negócio
de fazer lista de dez mais é uma coisa que te expõe
muito.
Nota do Editor
Lisandro Gaertner assina o blog Atematica.
Ótimo texto. Parabéns pela criatividade. O engraçado é que tive dificuldades semelhantes ao escrever o meu texto para o Digestivo. Algumas da melhores obras de que me lembrava não eram de 2004...
Olá, Lisandro! Fazendo uma busca no google sobre o George Mikes acabei caindo aqui no Digestivo Cultural por acaso. Dei de cara com esse seu texto – muito engraçado, diga-se de passagem – e não saí mais daqui... vou fuçar mais um pouco. Parabéns, abraço.