"É por isso que se lê romance: para viver por empréstimo, e nesta vida emprestada aprender a viver". (Marisa Lajolo)
O interessante ensaio Como E Por Que Ler O Romance Brasileiro participa da coleção Como E Por Que Ler. Foi escrito por Marisa Lajolo, professora titular de Literatura da Universidade Estadual de Campinas, também autora de Monteiro Lobato, Um Brasileiro Sob Medida, A Formação Da Leitura No Brasil e Literatura: Leitores e Leitura. Com relação à série, os demais títulos são Como E Por Que Ler Os Clássicos Universais Desde Cedo, de Ana Maria Machado e Como E Por Que Ler A Poesia Brasileira Do Século XX, de Ítalo Moriconi.
A competência e o conhecimento de Marisa Lajolo são indisfarçáveis. Mesmo se o livro fosse ruim, sua leitura valeria pelos escritores e títulos que faz o leitor descobrir ou redescobrir. Há um eixo de orientação seguido por ela, que é a história específica do romance no Brasil. Em torno d'este eixo serpenteia uma saudável inquietude, indo e vindo a autora no tempo, mesclando estilos e comparando escritores e obras. Ela não deixa de alongar-se sobre Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, porém praticamente resgata Teresa Margarida da Silva Orta, Ana Luísa de Azevedo Castro e Coelho Neto, entre vários outros. Preferências pessoais são sugeridas: elogia bastante Capão Pecado, de Férrez, e mal menciona Cidade de Deus, de Paulo Lins.
Uma das características mais notáveis do gracioso Da Dificuldade De Ser Cão é o entrosamento de Roger Grenier com os escritores de seu país, evocados aqui e ali para ilustrar seu texto. Também é reconhecível sua falta de preconceitos. Não lhe importa o destaque do autor ou da obra diante da crítica ou do gosto dominante e sim o que respeita ao tema, no caso o amor aos cães. A mesma virtude pode ser encontrada no ensaio de Lajolo, pois discorre despreocupadamente e acolhe obras e nomes nem sempre apreciados, como O Xangô de Baker Street e Josué Montello.
Por sorte, Lajolo impediu exageros de entusiasmo. Derramá-lo causaria prejuízo imediato ao seu trabalho e mediato ao objeto defendido. Basta um exemplo. Ela diz preferir os romances brasileiros aos ingleses porque n'estes ninguém anda de jangada, faz oferendas a Iemanjá nem beija de tirar o fôlego na esquina da avenida Ipiranga com a São João. Ora, eu leio o romance brasileiro para conhecer a cultura do meu país. Conhecer a produção literária e o que foi apresentado através d'ela. O trecho citado pode ser emotivo, laudatório, mas pouco esclarece. Duvido que Capitão Rodrigo ou Lucas Procópio tenham andado de jangada ou feito oferendas.
Como ler o romance brasileiro e por que fazê-lo são perguntas melhor respondidas com a integralidade do texto. As respostas diretas são pouco satisfatórias: a ser lido de muitos jeitos, de qualquer jeito, por esta ou aquela razão mas, sobretudo, sempre com a perspectiva de uma excelente leitura.
Anos atrás comecei a ler As Seis Doenças Do Espírito Contemporâneo escrito pelo filósofo romeno Constantin Noica e reparei que eu ainda não havia lido algumas das obras mencionadas e estudadas por ele. Faltava-me ler Os Demônios - só agora traduzido diretamente do russo -, o Don Juan de Moliére, Guerra e Paz, Esperando Godot, etc. Percebendo lacunas no conhecimento pessoal dos chamados "clássicos", deixei de lado as "todetites" e "acatolias", algumas das doenças que Noica diagnosticou no espírito contemporâneo e nomeou, e dediquei-me a eles com atenção maior, ainda que variável no tempo.
Simultaneamente, lembrei-me de obras e escritores brasileiros merecedores de reparo. Há clássicos universais e clássicos "locais", ambos dignos de atenção. Em verdade, não considero vantajoso ser profundo conhecedor da literatura norueguesa do século XIII, se mal sei o que foi criado aqui no século XIX. Falando nos autores nacionais, logo vêm à mente os nomes de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Mário de Andrade. São nomes de indiscutível importância, mas deveríamos reacostumar-nos com tantos outros lembrados apenas por consideração didática: Visconde de Taunay, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Rosário Fusco, Autran Dourado. A obra adulta de Monteiro Lobato, eclipsada pela infantil. Os atuais pretensos escritores, principalmente, deveriam caprichar n'esta busca e conhecer bastante os escritores nacionais antes de criar obsessões e copiar um ou dois estrangeiros. Creio que um bom escritor não deve dar as costas àqueles do seu país que exerceram o mesmo ofício no passado. Prova d'isto é encontrada no já comentado artigo Como Se Deveria Ler Um Livro? escrito por Virgínia Woolf.
Títulos há em profusão na biblioteca brasileira a serem lidos por quem quiser conhecer o que já se escreveu por estas terras. É correto alegar a distância qualitativa de alguns em relação aos clássicos estrangeiros, e mesmo aos locais. Todavia, dizem-nos respeito mais de perto. Devemos dedicar-nos tanto à leitura de Memórias De Um Sargento De Milícias, O Presidente Negro e Mongólia, quanto de Dom Quixote, Os Irmãos Karamázov, Gargântua e Germinal. Ao leitor brasileiro em especial deve ser lembrada a existência de três círculos concêntricos nos quais se lhe aconselha a perambular com desenvoltura: o círculo da literatura nacional, o da literatura escrita em língua portuguesa e o da literatura mundial. Falta de boas obras não há. O difícil é o espírito médio afastar-se de modismos e preconceitos, abandonar sua visão tacanha e conhecer o máximo. Este ano, o primeiro romance brasileiro que leio é Luzia-Homem, do cearense Domingos Olímpio (1.850/1.906).
Díptico: General Semprônio e Maria Cachorra
(para Cigana, 07/04/94 - 27/12/04)
I
Depois da reforma em 1.990, o General Semprônio assumiu o comando do exército de cães, pombos e aposentados assentado na praça central de Sant'Ana do Jecoaba. Somente a chuva impede-o de assumir diariamente seu posto, mesmo assim se não houver algo sério ocorrendo ou a ser providenciado. Vestindo camisa engomada, bermudão com cinta e meias na canela; calçando mocassim folgado; cabelos rigorosamente penteados para trás e óculos escuros: eis o General saindo de sua casa na Rua das Oliveiras e dirigindo-se ao "quartel". As mãos estão cruzadas nas costas um pouco abauladas pela idade. O assovio executa o Cisne Branco, melodia a qual ele tornou-se surdo pelo hábito. Tal a severidade em questões de harmonia e disciplina, que um de seus "soldados" jura tê-lo ouvido gritar com um curió engaiolado: acerte este compasso, nem parece que é homem!
Poderia compartilhar o jornal que circula entre o regimento, mas prefere adquirir seu próprio exemplar. Nem é sintoma de egoísmo, todos sabem que o periódico lido pela manhã servirá de forro para as gaiolas dos passarinhos. Aproveita para obter detalhes sobre a vida do dono da banca e sua esposa nas últimas 24 horas. Passa em revista a cachorrada, estalando os dedos e fazendo festa. Tira do bolso um saquinho de quirera e espalha-a para os pombos. Cumprimenta seus subordinados individualmente, retomando assuntos pendentes a fim de certificar-se da evolução ou estagnação dos casos. A este inquire: sua senhora melhorou da bicheira no pé? Aplicou a pomada que eu recomendei? Mantenha-me informado. Àquele questiona: resolveu o problema da aposentadoria? Descobriram do que se tratava? Mantenha-me informado. Escolhe um banco aquecido pelo Sol e senta-se para ler todas as notícias. Alguém chega à praça, dirige-se a ele com cuidado e cumprimenta-o. O General interrompe a leitura, sem levantar-se responde à saudação e faz seu breve interrogatório: seu filho já arrumou emprego? Está procurando todos os dias? Mantenha-me informado. Uma vez por semana sobe na cadeira alta do engraxate e com imponência examina do alto o campo de treinamento de ócio. Emburra-se ao ver o bispo na porta da catedral. Suas rusgas começaram no dia do falecimento da generala, quando Semprônio não obteve permissão de enterrá-la dentro da nave como era costume de sua família.
O General acompanhava com sincero interesse a execução de obras da Municipalidade na praça. Nos problemas de tubulação, por duas vezes desconcertou os operários com suas perguntas sobre hidráulica - ele é engenheiro por formação. Primeiro porque eles não sabiam responder; segundo, porque pensavam tratar-se do responsável técnico da prefeitura. Quando descobriam ser aquele senhor um cidadão como os demais, xingavam-no em pensamentos e depois em murmúrios. Certa vez, cavaram um buraco no meio da praça, mas o trabalho não pôde ser realizado no mesmo dia. Devolveram a terra sem recolocar as lajotas. Como era cova mais comprida que larga, e como a terra mal devolvida formou pequena elevação, algum gaiato notívago teve a idéia de improvisar uma cruz de madeira e uma coroa de flores para o túmulo de fantasia. O General encabeçou um destacamento para desfazer a gracinha e escreveu um ofício exigindo providências. Não foi atendido, pois não o levam a sério desde que voltou d'uma viagem ao interior da Alemanha e sugeriu a troca do nome da cidade. Queria que o atual "Sant'Ana do Jecoaba" fosse substituído por "Sant'Ana Sobre o Jecoaba". Meses depois, quando o prefeito lembrou-se de mandar terminar o serviço, Semprônio infernizou a vida de todos querendo saber se a continuidade da obra era resultado de seu ofício e o motivo da demora. Os operários respondiam-lhe tudo, soubessem ou não a resposta. Quanto mais detalhes o General pedia, mais ativava-se a imaginação zombeteira d'eles.
II
Maria Cachorra não tem pais, irmãos, marido ou filhos. Sua casa situa-se para as bandas do bairro industrial, mas não se conhece o endereço preciso. Sequer chama-se Maria, e sim, Alcina. Entretanto, se for perguntado na praça central se a "Dona Alcina" já veio, todos ficarão confusos. Mude-se para a pergunta "a Maria Cachorra já passou?" e então a compreensão será total. De onde saem seus rendimentos mensais, ninguém descobriu. Não é difícil vê-la de cabelos molhados e roupas limpas, concluindo os freqüentadores que ela é bem de vida.
Nada mais faz a pobre mulher além de tratar os cães da praça. Alimenta-os, dá-lhes água, desmonta caixas de papelão para deitarem. Por isso ela é vista revirando sacos de lixo. Procura latas, potes de plástico, panos velhos, etc. Aplica-lhes vermífugo periodicamente - ontem a cachorrada "tava" piriricando na hora que a Maria Cachorra chegou com o remédio d'eles. Ampara as cadelas prenhes no pré-natal e após o parto, bem como socorre as vítimas de atropelamento ou vandalismo. Empenha-se na busca de donos. Consola os moribundos e enterra os mortos. É vista principalmente de noite, quando a matilha festeja-lhe a chegada com latidos, uivos e tumulto. Chega bem depois de fechado o comércio e não tem prazo para sair. É hilário descobri-la atrás do banco onde namora um casal, sua cabeça aparecendo atrás do encosto. A interferência, contudo, é a mesma do óleo na água. Como a praça situa-se defronte a matriz, logo os desocupados espalharam que ela aguarda o horário sem movimento para transformar-se em lobisomem.
N'uma extraordinária perambulação noturna, o General resolveu abordá-la. Aproximou-se do canteiro onde ela encontrava-se agachada com um cachorrinho no colo e foi recebido com frieza e desconfiança: Que foi? O visitante começou a falar dos animais, mostrando conhecer alguns. Perguntou do paradeiro d'este e d'aquele e elogiou um dos recém chegados. Ela só respondeu com um pouco mais de desenvoltura quando o filhote saltou do seu colo, aproximou-se do intruso e foi bem recebido. O contentamento d'ela foi perceptível, mas não escancarado. Enganou-se quem entendeu que este regozijo referia-se ao estranho e ao afeto demonstrado. Referia-se, sim, à vitalidade da criaturinha que de tão amigável logo encontraria um lar. O General levantou-se, despediu-se e saiu. Sabe reconhecer quando certo território é de incursão inviável.
Caro Ricardo, este é um debate espinhoso. por que ler romances nacionais se temos tantos e tão bons romances internacionais? apenas por causa da "cor local"? mas quem disse que procuramos a literatura apenas para conhecermos nossa história, nosso país? o que buscamos é o fato estético significativo, o resto é ilustração. e o que nos interessa é o que é universal no drama humano e não o particular. só boas obras de arte conseguem nos levar a abismos desconhecidos e abismos de nós mesmos.
sem querer depreciar Machado e Clarice (tão pequena perto de uma Hilda Hilst), apenas creio que o que tem valor é a obra de arte que tem seu poder estético de produzir aquele "je ne sais quoi", que nos leva para dentro dela nos captando num sequestro sem saída. abraço, parabéns pelo texto, jardel
Assunto inesgotável, onde o perigo é: soterrados por obras valiosas, ou ao menos dignas de certa atenção, acabarmos por transformar qualquer comentário apaixonado (como é o caso do meu) num mero catalogar de títulos - tantos, tantos... Pondo de lado a polêmica (não estou a fim!) que M.L. levanta de imediato com a citada comparação literatura inglesa (minha paixão) vs. literatura brasileira, há que dizer-se que resgatar autores brasileiros "fora de moda" se faz urgente, necessário, vital... E ler na fonte um José de Alencar (subestimado pela crítica a meu ver, como verdadeiro desbravador que foi; só Antonio Candido chega perto de dar-lhe justo valor), olhar atento às "inovações" que ele estabelecia então, valeria a pena pra qualquer leitor que aspirasse a ler melhor, mais profundamente, a nossa literatura. Sem falar em tantos escritores e obras dos quais só se conhece trechos repetidamente postos em antologias (sempre questionáveis) e aqueles mencionados só de passagem em obras didáticas, em geral mantenedoras do "status quo" em história/crítica literária... Ler, ler sempre; ler resenhas, referências, "guias", sim, porém cruzando indicações de todo tipo possível, pois no final só o leitor crítico & amante de literatura pode julgar, por si, o que é bom... Ler, ler sempre, o máximo possível, preenchendo lacunas, sim, revisando "pré-conceitos"... Texto difícil para se fazer justiça num comentário, Ricardo... Demais!