Há dois meses não publico minha coluna. Os leitores reclamam. Devo uma explicação. Tenho várias. E várias boas notícias também.
O semestre passado foi exigente e estimulante. Precisei acabar as últimas matérias da faculdade. Apareceram, ao mesmo tempo, várias novidades no estágio. Planejei, além disso, uma temporada na Universidade de Oxford, onde estou agora. Esses três fatores, acumulados, nem sempre me deixaram dormir bem. E ainda temos as obrigações normais de, como dizem, um bom filho, que me esforcei para manter: vários esportes, pequenas viagens, muitos jantares.
Mesmo com pouco sono, porém, acordei bem. Minha formatura está marcada para março. Deixo, assim, meu período universitário, que durou mais do que devia. Mas valeu a pena: principalmente pelos momentos que vivi longe da faculdade. Foram muitos: em Cuiabá, em Havana, em Vancouver, em Moscou, no Tocantins, no Alasca, em Roma, em Nova York, em Varsóvia, etc. E em São Paulo, claro, também. Afinal, acabei descobrindo, nos lugares mais distantes - nas piores estradas e nos mais agradáveis restaurantes -, que sempre carrego eu comigo mesmo. Melhor que a bagagem seja leve, portanto.
Carregando pouco peso, então, cheguei na Bélgica, há quinze dias. Em Knokke, para ser preciso: uma cidade que está fora do roteiro de qualquer turista brasileiro. A cidade, quase uma vila, à beira do mar do Norte, é uma espécie de Beverly Hills belga. O que, portanto, significa que não é cafona como Bervely Hills, apesar de van Dame estar lá todo verão. As casas tem nomes inesperados: como Dom Quixote e Peer Gynt, personagens favoritos de quem se interessa por literatura. Quase todos os restaurantes da cidade são excelentes, mas, ainda assim, é bom você ter alguma recomendação confiável, se quiser experimentar a culinária local: uma mariscada gigantesca.
Os melhores lugares de Knokke - ou os mais engraçados, pelo menos - estão escondidos. Como um restaurante perto da floresta, onde, depois da meia noite, a música começa a tocar: e o público local - de, na média, quarenta anos - começa a dançar. O Ministro de Interiores da Belgica, quando eu estava la, só observava o movimento. Não é exatamente o tipo de lugar em que pretendo estar, daqui a vinte anos, numa terça-feira à noite, mas o ambiente, pelo menos, é curioso.
É curioso também que a Bélgica, além de Bruxelas, seja desconhecida por brasileiros. Não deveria. Brugges e Genth, por exemplo, estão entre as cidades mais bonitas da Europa. Tem, aliás, todas as qualidades de Amsterdam - arquitetura medieval, canais abertos e limpos, museus excelentes -, sem os defeitos de Amsterdam: turismo trash, principalmente. E são menores, mais simpáticas, mais charmosas. Brugges - que está entre as minhas cidades favoritas - tem bares e restaurantes maravilhosos. Não me perguntem os nomes: estão até na praça principal, ou escondidos em becos, em ruas estreitas - como o menor bar da cidade, uma preciosidade apertada e engraçada, onde fui num aniversário. E Genth, neste Natal, estava especialmente decorada e iluminada. A impressão, numa noite de inverno - quando pais passeiam com carrinhos de criança e meninos correm pelas ruas - é a de que o mundo não tem problemas. E tem?
II
Estou em Oxford há quatro dias. Passei o ano-novo em Antuérpia, na Bélgica, ancorado no porto - com os fogos estourando em nossa volta - e passei quase uma semana, depois, em Paris. Mas todo mundo sabe como é Paris: ou já foi ou já leu sobre, e é aquilo mesmo. Assisti, no boulevard St. Germain, a Dias no Campo, de Raul Ruiz: um filme bonito, de um diretor que, depois de O Tempo Redescoberto, não precisa fazer mais nada. É divertido ver que ainda existe, em Paris, esses intelectuais típicos, com jaqueta de couro e cabeludos, que se escondem na cadeira de um cinema escuro - como se isso lhes turbinasse o pensamento. Mas as meninas interessadas por filmes delicados, sensíveis, também estavam lá. Foi mais uma escala, essa passagem por Paris, para rever a cidade e me preparar, espiritualmente, para os estudos em Oxford - onde passarei, a partir de agora, mais ou menos um mês.
O St. Cross College, onde estou hospedado, fica no centro de Oxford. No meu quarteirão estão, em uma esquina, o Ashmoleam Museum, uma atração imperdível para estudantes de civilizações clássicas - com várias peças, por exemplo, coletadas e doadas por Lawrence da Arábia, que também estudou aqui; ao lado esquerdo do meu prédio, a três casas, está o pub The Eagle and the Child, onde o grupo de C.S. Lewis e J.R.R. Tolkien se reunia para conversar sobre a Idade Média - conversas que estimularam a imaginação de Tolkien, enquanto escrevia O Senhor dos Anéis.
A vista do apartamento em que estou hospedado é a fachada do St. Johns College, o mais rico da Universidade. As janelas do meu apartamento, em formato de vitral de igreja barroca, são parcialmente encobertas, no meu quarto, pelos retângulos que decoram a fachada do St. Cross, como em um castelo medieval. Duas capelas, de aproximadamente quatrocentos anos, estão dentro de St. Cross, e tenho quase que atravessá-las quando chego no college.
A Universidade de Oxford tem quase 900 anos. Os 35 colleges que a compõe foram fundados em diferentes períodos - mas existe, entre a maioria dos prédios, uma harmonia, uma certa unidade entre suas diferentes fachadas. O St. Cross é um college pequeno, e está instalado num prédio relativamente novo - de quase trezentos anos, no estilo convencional da Universidade: com seus tijolos cor de mel e uma porta pesada e enorme, de madeira, sempre fechada. Para quem já assistiu ao Inspetor Morse, filmado em Oxford, o ambiente pode ser assustador. Eu nunca assisti. Quando chego no college, à noite, abro, com um chip, essa porta de uma tonelada, e subo uma escada de pedra. Atravesso corredores labirínticos, com gravuras da Universidade nas paredes, e fotos de estudantes antigos, e as luzes, enquanto ando, se acendem automaticamente.
Os jardins de Oxford - especialmente dentro dos colleges - são impecáveis. O de St. Cross, por exemplo, é dividido por arcos, em duas partes, no centro do college, para onde a sala de estar e os escritórios têm vista. Os jardins mais bonitos de Oxford, aliás, devem ser os do Magdalen College, onde estudaram Oscar Wilde e Vinicius de Moraes, à beira do Rio Cherwell e em frente ao Jardim Botânico da Universidade. Num passeio pela beira do rio, atrás da residência dos estudantes, lembramos de Vinicius, aos 24 anos, pulando a janela do seu quarto, à noite, para se encontrar com a Tati, que veio lhe visitar.
Oxford, para um estudante, é talvez o melhor ambiente do mundo. Você anda pelas ruas, e parece que todos os habitantes têm entre 20 e 30 anos - exceto os professores, que, aliás, têm normalmente a cara e o estilo de um professor de Oxford, incluindo a bengala. Você olha, pelas janelas, o interior das salas dos colleges, e estão todas cheias de livros, do chão ao teto. Oxford oferece, ao mesmo tempo, um ambiente vibrante e aconchegante. No bistrô em que janto às vezes, por exemplo, como pelo menos tão bem quanto nos melhores de Paris - e ainda ouço, por acaso, trechos de conversas extremamente interessantes, como o futuro dos semicondutores ou a nova tendência na arquitetura japonesa.
Bill Clinton, que estudou no University College, disse que, deslumbrado com a cidade, andou 14 horas por dia em suas primeiras duas semanas aqui. É compreensível. Eu cheguei em Oxford há quatro dias. Ainda não andei tudo isso. Andarei, talvez. Mas, ainda assim, a gente desenvolve, depois de várias viagens, uma postura menos assustada, menos deslumbrada com novos lugares - como se todos fossem, afinal, uma extensão da nossa casa.
Essa postura nos ajuda inclusive a aproveitar melhor outros lugares. Voce não visita outro planeta nem se transforma em outra pessoa. Viajar não é uma experiencia intergaláctica nem transcedental. Aprendemos que - em Oxford ou em Osasco - o importante é, sempre, carregar pouco peso: e levar apenas o que é especial, essencial. E um bom espírito não pesa nada.
Aproveita essa viagem! Depois de todo esse passeio, trabalhar em Oxford por um tempo foi uma ótima escolha e oportunidade. Você está em uma das melhores cidades do mundo! Seu texto está muito bem escrito; continue expondo suas idéias e experiências no Digestivo, pois você, como todo colunista, também tem aqueles leitores que o acompanham e, quando deixa de escrever, sentem sua falta. Boa viagem, divirta-se! Beijos.
Estava com saudades, acredite, apesar de eu não ter reclamado, sempre procurava por sua coluna. Fiquei feliz em saber como vc está e quanto vai aproveitar este momento! Vc sabe como, disso eu não tenho dúvidas! Vera Lúcia
Essa coluna foi bem inspiradora! Você sabe aproveitar muito bem suas viagens, e enxergar coisas interessantíssimas em pontos que muitos de nós nem percebem. Seu último parágrafo foi particularmente sugestivo. Abraços!
Como voce escreve bem, nao esquece de ver algumas historias minhas, viu? Temos coisas em comum e eu vou pra la no oxford um dia! Boa sorte q vc merece, bjs
Sua coluna e seu comentário sobre o filme Tempo Redescoberto me fazem pensar que, sobretudo em suas viagens, você ultrapassa o mero deslumbramento com o encanto aparente das coisas. Não olha apenas, radiografa - "(...) mesmo jantando em sociedade não via os presentes, pois quando acreditava olhá-los eu os radiografava (...)", Marcel Proust.
Isso transparece em seu texto, em outros também. Continue escrevendo!