Fico com algum receio quando leio as avaliações de jornais e revistas a respeito do cinema brasileiro em 2004. Em todos os textos a chamada principal (a idéia que os autores quiseram passar aos leitores) é que o nosso cinema perdeu espaço, perdeu público e voltou a estar em baixa - fechou o ano com 15% de participação. Não dizem exatamente que o cinema tupiniquim está em baixa, mas a conclusão que fica no ar é essa: voltamos a cair depois de quatro anos de crescimento e um 2003 inesquecível, quando se atingiu 22% do mercado nacional de cinema (22% dos ingressos vendidos em 2003 foram para algum filme nacional).
Quem não entende bem o mercado ou não acompanha os lançamentos, não sabe quem distribuiu certo filme, quantas salas exibiram etc. - coisas que fazem parte do estudo para lançamento de um filme (cada vez mais os trâmites extracinematográficos devem ser levados em conta) - vai com certeza ver nessas manchetes uma informação negativa e pessimista. Não será difícil alguns pensarem: "Tá vendo, voltou a ficar ruim nosso cinema". Mas o fato é que tal elucubração não equivale à realidade, pois não tivemos um filme arrebatador de público como foi Carandiru em 2003, mas no geral tivemos muito bons filmes com público singelo. Deixar se levar por números não é a melhor posição em se tratando de cinema.
Tenho este como um dos melhores filmes nacionais da última década e um dos mais injustiçados (em termos de público e de repercussão crítica). Quem não viu no cinema corra urgentemente para a locadora pegar o DVD. Uma história simples, protagonizada por gente simples numa empreitada quixotesca de salvar um povoado do alagamento por uma represa. É a luta da natureza contra o progresso, com esta necessariamente prevalecendo. Mas o grande lance de Narradores é que seu povo não perde jamais, inventa histórias e mesmo na tragédia é capaz de permanecer e reiniciar.
Menção também recebe De Passagem, de Ricardo Elias.
Diretor: Carlos Reichenbach
Carlão estava fora do circuito desde Dois Córregos, quando fez uma viagem ao seu passado e recriou sua convivência com um tio comunista na época da ditadura. Em Garotas do ABC, do qual também escreveu o roteiro, ele visita o universo das operárias do ABC paulista e seu cotidiano. Namoros, paixões, diversões, trabalho, são mulheres tentando sobreviver no meio rude tipicamente masculino do trabalho industrial que marca a região. Reichenbach sabe filmar como poucos e Garotas surge nas telas quase como uma homenagem ao cinema, com referências a diversos clássicos do século 20 e discussões de temas atuais nacionais, como o do neonazismo que vira e mexe reaparece no ABC. Carlão está cada vez mais maduro e filma o mundo feminino com a sensibilidade de poucos.
Ator: José Dumont e Daniel de Oliveira
Não tem o que falar de José Dumont. Tem é que se assistir a Narradores de Javé e rir com sua atuação fantástica como Antônio Biá. Outro que mereceu destaque em 2004 foi Daniel de Oliveira, o rostinho que surgiu para ser Cazuza nas telas... Pegue a cena inicial em que ele chega na casa de Frejat e vai logo cantando improvisadamente uma música. Desses pequenos lances que vive o cinema e faz de um ator um ator de verdade.
Atriz: Camila Morgado
Aqui indico a heroína do filme de Jayme Monjardim mais por falta de opção do que por uma excepcional atuação. Podia ter colocado aqui a Fernanda Montenegro de O Outro Lado da Rua, mas aí seria chover no molhado. Não agüento mais ler falando bem dela, elogiando sua atuação para qualquer coisa que faça. Admiro seu trabalho, mas ela já é uma unanimidade.
Roteiro: Narradores de Javé
O melhor filme do ano sem dúvida teve o melhor roteiro. Não dá pra falar, tem de ver.
Fotografia: Filme de Amor
A obra de Júlio Bressane é das mais herméticas e pouco compreendidas do cinema brasileiro. Filme de Amor parece fugir desse rótulo, sendo compreensível, mas não deixando de lado o toque Bressane de filmar. Neste, quase um tratado sobre o sexo, a fotografia é parte da narrativa. Cenas em cores, outras em preto e branco, enquadramentos baseados em pinturas, tudo neste filme tem uma razão de ser, cada plano foi desenhado e planejado com rigor.
Documentário: O Prisioneiro da Grade de Ferro
No ano que tanto se falou nos documentários, este foi sem dúvida o melhor deles, com um retrato (ou auto-retrato) do Carandiru nunca visto antes.
Ator coadjuvante: Os moradores de Javé
Aqui está difícil de escolher um, portanto, elejo todos os moradores de Javé como os melhores coadjuvantes do ano. Entre atores profissionais (como Gero Camilo) e pessoas da própria região, eles completaram magnificamente esse filme, com a exata pitada de humor, regionalismo e ingenuidade.
Atriz coadjuvante: Suely Franco
Roma, a mulher do personagem de Daniel Filho no filme Querido Estranho, baseado em obra de Maria Adelaide Amaral, merece destaque por seu papel dramático de mulher dedicada e apaixonada que só leva patada do marido no dia do aniversário deste. Sua dedicação é retribuída com ofensas, e transmitir ao espectador a dor moral é algo nada simples de fazer.
Trilha Sonora: Cazuza
Num ano em que não se destacou nenhuma trilha em especial, a música de Cazuza foi de fato o que de melhor acompanhou as imagens produzidas pelos nossos cineastas.
Surpresa positiva: Redentor
Um filme que une uma idéia original, um roteiro bem amarrado, humor inteligente e é o reflexo da própria brasilidade, tanto no que se vê nas telas como na saga que foi para Cláudio Torres realizar o filme - 8 anos desde que começou a escrever o roteiro.
Revelação: Heitor Dhalia e Marcos Bernstein
Neste ano, dois novos diretores apareceram ao cenário nacional em longas. O primeiro fez Nina, uma obra inspirada em Crime e Castigo que traz Guta Stresser (a Bebel de A Grande Família) como Nina, uma mente atormentada vivendo o esmagamento psicológico da vida urbana de São Paulo. A fotografia um tanto expressionista reflete o lado subjetivo que o diretor quis imprimir ao filme.
Já Bernstein tem experiência anterior como roteirista, sendo Central do Brasil seu mais famoso trabalho. Em O Outro Lado da Rua, ele dirige Fernanda Montenegro, que interpreta uma mulher solitária que se envolve com um homem que ela acredita ter matado a própria esposa. Da solidão ela passa a reencontrar a paixão e o amor na maturidade.
Filme estrangeiro
Claro que não vi todos os filmes, portanto só poderei selecionar entre aqueles que eu assisti. Entre eles, os melhores foram Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, de Michel Gondry e com Jim Carrey, e Whisky (foto acima), dos uruguaios Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll. Outros belos filmes que devem constar no topo da lista são Dogville, de Lars von Trier, e 21 Gramas, do mexicano Alejandro González Iñárritu.
Fico impressionado como o cinema e a arte em geral no Brasil depende de incentivos do governo. Precisamos mudar essa realidade, acredito que temos boas idéias, mas a maioria dos artistas não podem realizá-las pois não temos investimentos suficientes. A falta de investimento é principalmente em virtude de limitações do governo sobre a quantidade de renúncia fiscal que as empresas podem realizar, mas deveríamos criar outras formas de investimento em artes que independense de ações do governo. Tenho ciência que em outros países, principalmente os desenvolvidos, as empresas investem idependentemente da ação do governo pois olham a artes como uma forma de divulgação de sua marca/produto. Outra forma de captação de recurso nesses países é a doação e a participação do cidadão comum, que realiza de forma simples e prática a renúncia fiscal. Para as empresas renunciarem também é simples e ao proponente os processos não são muito burocráticos como no Brasil. Acredito que ações neste sentido deveriam ser realizadas para aumentar os recursos captados, diminuir burocracias para minimisar os custos e podermos voltar a ter um crescimento não somente na área de cinema, mas também a outras áreas das artes. Acredito, por fim, que estes investimentos devem garantir mais acesso aos recursos artísticos, de preferência os de qualidade e os eruditos, à população de baixa renda e o desenvolvimento em cidades do Brasil, que estão fora do cirquito culural Rio/São Paulo, para que um quantidade maior da população brasileira possa ter acesso.
Ode ao desincentivo do Governo. Se hay governo, soy contra. O governo atual não pensa na cultura e quando pensa, caga. Veja os exemplos do Gilberto Gil. Quando estava fora do governo, era
muito mais antivo como militante cultural do que agora. Não se vê inventivo cultural para a população de baixa renda. São tantos artistas sem amparo, tentando custear seus sonhos e projetos com o suor dos seus esforços. Falta uma politica cultural eficiente. O PT não tem uma politica cultural. Muito se discutiu mas não se chegou a lugar nenhum.Desde os primeiros passos discutidos em Diadema, nos primeiros esncontros de cultura do partido. Lá estava eu, esperançoso e acreditando que alguma coisa iria mudar. Tudo está como antes no País de abrantes. Merda. Clovis Ribeiro