Londres pode ser resumida na Speaker's Corner, no Hyde Park:
como a cidade mais cosmopolita, intelectualmente estimulante
e engraçada do mundo. Não era permitido, em 1872, que se
falasse mal da rainha em solo britânico: alguns espertinhos,
então, descobriram uma solução: e, num canto do Hyde Park,
subiam numa caixa de madeira, para - descolados do chão - falarem livre e impunemente. É a típica tradição britânica,
que, por mais estranha que seja, pegou: e continuam lá, aos domingos, uma audiência e oradores com as mais diversas origens e das mais variadas categorias, conversando sobre os assuntos mais básicos e os mais exóticos.
Não existe programa mais divertido em Londres. E arrisco
dizer, portanto: no mundo. A Speaker's Corner é, ao mesmo
tempo, um símbolo do debate civilizado, o reflexo de um
planeta segmentado e uma alternativa para comediantes
desconhecidos. Em cada canto se reune, em volta de um orador,
o público interessado pelo assunto. Que podem ser dos mais
engraçados - como o de um senhor convencido de que e a
reencarnação de Jesus Cristo - como os mais pretensiosos -
querendo explicar, em poucas horas, toda a engrenarem
do "sistema em que vivemos", do mercado financeiro ao tráfico
de drogas.
Passei um domingo, recentemente, ouvindo uma discussão entre
mais ou menos cinco pessoas - com o orador, neste caso,
fazendo mais o papel de moderador, comentarista do debate. Um
estudante de literatura estava convencido de que o comunismo
ainda não havia sido experimentado da forma como Marx previu;
um outro dizia que nunca ia ser, porque nenhuma ideologia se
aplica, na prática, com a mesma facilidade que é descrita na
teoria. Um gordinho, aparentemente membro do sindicato dos
caminhoneiros, concordava com os dois, indeciso. Um irlandês,
diretor de uma empresa de tecnologia, dizia que a experiência
do Zimbabwe, com Mobuto - assumidamente comunista -, nunca
iria civilizar o país, e é preciso entender como o mesmo
conceito pode ser bonito e flexível, e nunca resolver nada.
O moderador - com um topete parecido com o de Chistopher
Hitchens - acalmava os mais animados. Era impressionante o
seu equilíbrio em cima de duas caixas de plástico. Estava sempre
quase caindo, mas não ia cair nunca; como o debate que -
quase sempre virando confusão - se manteve numa linha
civilizada. E todos se divertiam.
Na platéia, havia uma senhora elegante, que passeava no
parque com o seu cachorro; um estudante de letras clássicas
de Cambridge, que costuma ir ao Hyde Park aos domingos; um
negro de gorro e cachecol, com a Economist embaixo do braço; um palestino engraçado, que fazia piadas de todos os
comentários; uma menina loira e linda, que, depois de correr
pela manhã, de tênis e walkman, juntou-se à discussão. A
platéia não poderia ser mais colorida e, em certo sentido,
confusa. Assim como é colorida hoje a população de Londres, e
confusa como os debates internacionais. Naquele domingo na
Speaker's Corner, pelo menos, nada foi resolvido na porrada.
Aventuras no Brasil
Assisti, no auditório do Magdalen College, aos dois
documentários sobre Lula lançados recentemente no Brasil:
Peões e Entreatos, de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles. Foi a primeira apresentação dos dois filmes fora do Brasil, organizada pelo Centre for Brazilian Studies da Universidade de Oxford. A versão internacional das fitas inclui uma curta introdução histórica, e, em Entreatos, a filmagem de uma entrevista coletiva para a imprensa estrangeira, concedida por Lula e a sua equipe. Nessa entrevista, um jornalista - aparentemente espanhol - perguntou a José Dirceu o que ele aprendeu em Cuba que poderia aproveitar se Lula ganhasse as eleições. Dirceu ficou paralisado, e Lula rapidamente pegou o
microfone e, com a simpatia que se esforçou para manter durante toda a campanha, respondeu: "Nós também queremos saber". Todos caíram na risada, e Dirceu, quando começou a falar, desviou a conversa para assuntos completamente diferentes.
Esse clima de descontração vazia, orquestrada por Duda Mendonça, é o que domina as cenas de Entreatos. Nós não vemos preocupações sinceras nem propostas sérias, e a campanha, em conversas reservadas ou discursos para a televisão, parece sempre uma pequena conspiração para enganar o Brasil. Todas as campanhas, de perto, talvez sejam assim. E o programa do qual participei, assistindo aos dois documentários no mesmo dia, deve reforçar essa impressão. Porque em Peões os personagens - os companheiros de anônimos de Lula nas greves sindicais no inicio dos anos 80 - estão, em contraste, perdidos entre ilusões marxistas e presos a uma rotina pequeno-burguesa, que negam quase alucinadamente. Esse é, em grande parte, o perfil do eleitorado de Lula. E é compreensível que, para eles, Lula tenha se transformado num ídolo: num modelo de proletário que confessa ter conquistado a esposa com seu fusca azul-turqueza - e, hoje, num presidente de esquerda que conquista o mundo a jato.
Os piores momentos dos documentários são os supostamente mais
inteligentes. Quando Lula, por exemplo, diz que o PT é um
partido único no mundo, porque nasceu dentro do movimento
operário, e não da "proletarização de intelectuais",
reparamos na sua equipe e nos seus amigos - Dirceu,
Mercadante, Suplicy, Graziano, Frei Beto, etc. -, e nos
perguntamos: em qual fábrica essas pessoas trabalharam? Lula
pode até ter perdido o mindinho; mas, hoje, é o único da
turma - e não pode ser usado para justificar uma
generalização agora falsa. Como ficou claro em Peões, o PT não é mais o partido deles.
Aventuras em Oxford
As referências literárias em Oxford são inesgotáveis. E a
vida que se leva aqui, tranqüila e bonita, pode ainda ser
muito próxima de um capitulo de Evelyn Waugh - e imaginamos
se existe alguém como a Julia Flyte, escondida numa casa de campo. Em todos os lugares, em qualquer passeio, esbarramos com um
de nossos escritores favoritos. Num dos últimos exemplares do
Oxford Student, aliás, um dos textos comentava justamente
essa impressão mágica quando se chega na cidade: que é como
se entrássemos num livro, num filme.
Descobri, nesta semana, que J.R.R. Tolkien morou no mesmo
quarteirão em que estou hospedado. Quando fui ao Magdalen
College, na semana passada, para assistir a dois
documentários sobre o Lula, atravessei os jardins do Christ
Church e o Jardim Botânico: o mesmo percurso que Sebastian e
Charles fizeram, em Brideshead Revisited, enquanto
conversavam sobre seus planos para o futuro. No Christ
Church - onde foi, aliás, filmado Harry Potter - estudaram de Lewis Carroll a Gilberto Freyre: e os personagens de Alice no País das Maravilhas, discretos e simpáticos, estão nos vitrais do dinning room, onde Carroll se encantava com a beleza da filha de outro fellow do Christh Church. A lista de poetas e escritores - let alone cientistas, atores, politicos, músicos, etc. - que passaram por aqui é interminável: Aldous Huxley, Willian Goldwin, P. B. Shelley, W. H. Auden, Oscar Wilde, Thomas Quincey, Graham Greene, John Ruskin...
Acabei de me formar em administração de empresas, em São
Paulo, e a comparação é inevitável. A FGV, onde estudei, é muito parecida com a London School of Economics - os alunos,
os prédios, os assuntos estudados, etc. -, mas é, em todos os
sentidos, completamente diferente de Oxford. E a USP,
onde estudei seis meses, não seviria para comparação. O estudante em
Oxford é acompanhado individualmente por um tutor, mas tem
também total liberdade para ir - ou não - às aulas que
quiser. O fundamental é que se estude muito - e sozinho. Numa
lecture que fui nesta semana, de Laurence Withehead, sobre democracia em países subdesenvolvidos, fiquei maravilhado com o discurso racional e fluente do professor, enquanto
comentava questões especificas de Belize a Coréia do Norte,
com uma erudição fabulosa em assuntos políticos e econômicos.
A aula se deu numa espécie de sala de estar, equipada com
televisão de tela de plasma e lareira, com os professores
sentados em poltronas e os alunos em cadeiras e sofás.
Os eventos sociais em Oxford podem também parecer estranhos a um estudante brasileiro. Fui, nesta semana, a uma homenagem ao poeta escocês Roberto Burns, organizada pelo Middle Commom Room do Queen's College - que está completando 700 anos. O pessoal declama um poema e toma uísque, para despois descer ao bar do college. No jantar no dinning room, os estudantes - pelo menos duas vezes por semana - jantam de smoking. E depois saem assim pela cidade. É engraçado como se gosta de black-tie em Oxford. Neste sábado, para um hunting dinner no Town Hall, precisarei também vestir minha gavata borboleta. Aliás, antes que esses eventos acabem, ou mudem de nome: a caça à raposa - que, junto com a Guerra do Iraque, dominou a agenda política inglesa no ano passado - provavelmente será proibida.
Quando, à noite, depois do jantar, tomamos um café enquanto os sinos de Oxford tocam, entendemos por que Gilberto Freyre e Vinicius de Moraes se encantaram com a cidade. Nenhum dos dois - que me conste - morou durante muito tempo em Oxford. Gilberto Freyre veio para um programa de três meses, e Vinicius - interrompido, quando estava em Paris, pela Segunda Guerra - não conseguiu ficar um ano na cidade. Mas Vinicius, entre leituras, cervejas e namoros, disse que sua passagem por Oxford "foi talvez o período mais fecundo de minha vida de poeta".
E de Gilberto Freyre: "Esta velha Oxford, onde de fato estive durante algum tempo de inesquecíveis aventuras intelectuais e psicológicas", para completar em outro artigo: "a melhor temporada da minha vida". E outro trecho de Gilberto Freyre - também estampado numa placa no Centre for Brazilain Studies, onde passei este mês - me parece ideal como despedida: "Justamente agora que eu me sentia tão de Oxford como se isto fosse o meu ambiente ideal. Tudo o mais, depois de Oxford, me parecerá mesquinho".
Fala, Edu! Parabens pelo texto. Este ano mochilei na Europa e me perguntei "Por que fui tantas vezes aos EUA?" Europa é muita historia, muita inspiração e muita cultura.
Fala, garoto! Acabei de ler sua coluna. Já está voltando? Pelo jeito, você tem tirado muitos aprendizados por aí. Tenho uma dúvida: e você, anda também discursando por essas esquinas?
Vamos nos reunir na sua volta e tramar uma viagem em que tudo depois também parecerá mesquinho... Praias na Venezuela? Muchachas prontas a ouvir nossas inquietudes e tudo mais!
Abraço
E aí Edu, que vida, hein! Aulas com lareira, gravata borboleta... precisas de um assistente?? Sinceramente acho que deves "dedicartes" mais a escrita! Parabéns! Um abraço e aproveite o quanto der e não der!
Speakers corner, aventuras intelectuais e psicológicas, Hyde Park... sabe, meu caro, seu texto me deixou até com saudades de odiar Londres de novo. Another pint, mate! E outros textos, com a bela serenidade de costume!