"Diferem contudo dos grandes poetas, isto é, dos regulares, porque os grandes fizeram versos com palavras e arte regular; êstes, porém, por acaso, como se disse. Portanto, quanto mais de perto os imitarmos (os grandes), tanto mais perfeitamente faremos versos. (...) E por isso, confessem a própria estultice aquêles que privados de arte e de ciência, confiados únicamente no próprio engenho, se põem a cantar de modo sumo, coisas supremas; desistam de tão grande presunção e se pela preguiça natural, são gansos, não queiram imitar a águia que vôa nas alturas" (Dante Alighieri, De Vulgari Eloquentia, Livro Segundo)
Foi obra de Servius Tulius, sexto rei de Roma, a divisão do povo em cinco classes de acordo com a riqueza, profissão e estirpe de cada cidadão. Segundo a tradição, o termo classicus identificava os membros da classe mais alta. O uso ampliou gradativamente a abrangência e o adjetivo passou a referir-se ao resultado de toda arte ou técnica empregada com excelência. Já na antiguidade romana chamava-se "clássico" ao trabalho do poeta, do pintor, do escultor, ou do arquiteto cujo esmero fosse patente. A realização d'um exame rigoroso e a eleição da obra como "clássica" implicava não só em reconhecer-lhe a perfeição, mas também elegê-la como modelo. O que o artista fez para obter uma obra excelente transformava-se em princípio a ser obedecido pelos neófitos. Séculos passaram e a palavra foi usada para opor a arte da antiguidade greco-romana à da Idade Média, considerada então menos perfeita. Conhece-se a fartar o emprego pejorativo da expressão "Idade Média", tida como um mero período entre uma época de grandeza artística e outra de renascimento d'esta grandeza. Avancemos ainda mais no tempo e "clássico" torna-se a qualificação das melhores obras de determinado período, país ou movimento artístico.
Se a Eneida pode ser chamada simplesmente de obra clássica, o emprego moderno clama maiores cuidados. "Madame Bovary é um clássico do século XIX". Clássico de qual idioma? Do francês? Mas de qual movimento? Do Romantismo, do Realismo ou do Simbolismo? É o significado moderno do termo "clássico" que primeiro deseja-se exprimir ao assim nomear determinada obra. Corrente a classificação - a organização em classes - mas não suficiente. Dostoievski e Turguiêniev são clássicos da Literatura Russa do século XIX, mas não convém confundir a escrita tempestuosa do primeiro com os cuidados estilísticos do segundo.
O mundo é vasto e antigo, o sentido dilui-se. Pode-se falar, sem grande alteração de sentido, em obras capitais ou máximas. Contudo, nunca ouvi falar em "música capital". Se pergunto à vendedora a localização da estante de música "clássica", ela encaminhar-me-á à seção onde alguém reuniu nomes e estilos tão diferentes quanto Mahler e Vivaldi, rococó e vanguardas do século XX. Ultimamente, ao vê-lo mencionado, noto apegada uma idéia acessória que torna o conhecimento um dever. O clássico passa a ser o monumento d'aqui ou d'ali a ser necessariamente conhecido pelo estudioso. Se interesso-me pela Literatura Brasileira, eu devo ler Dom Casmurro. Pode ser um meio de constranger o escolar, mas pessoalmente causa-me antipatia. Enfim, a seleção empírica de várias obras significativas resultou n'um monte indefinível e variável que se sói chamar "clássicos": estou ouvindo um clássico, n'estas férias lerei alguns clássicos, irei ao museu contemplar um clássico do impressionismo.
Quem são clássicos: os autores ou as obras? Se os autores, que dizer das anônimas? Quais os autores e quais as obras clássicas? Variam. Se os nomes gozam de certa estabilidade nos cânones publicados, as obras têm posição inconstante. Platão fatalmente será citado, mas qual de suas obras o leitor não deve morrer sem ler? A República ou As Leis; O Banquete ou Fédon? O brasileiro sequer lembra-se de quem foi Theophille Gautier, mas experimente-se não o citar, na França, n'uma seleta de clássicos franceses. As Mil E Uma Noites foi tudo o que o Oriente produziu? A Bíblia pode ser também considerada um clássico literário ou deve ser reservada exclusivamente à esfera religiosa? Ateus e agnósticos vê-la-ão como literatura, religiosos hesitarão em responder. O Alcorão é literatura n'um país, fonte de religiosidade n'outro e texto legal n'um terceiro, uma vez que estabelece direitos e obrigações.
Escrevo ouvindo a Missa Solene, de Beethoven, que além de peça sacra traz embutida no Benedictus um suabilíssimo duo para violino e voz. Por que ela é menos "clássica" que as sinfonias, sonatas e trios? Os especialistas arrolarão vários pontos, entretanto costumo deixá-los praguejando sozinhos. Não é o leigo nem a academia quem define a obra clássica, mas ela mesma. Impõe-se sozinha e por isso merece atenção. Se o Decameron alcança-nos séculos depois, algum mérito possui. O conceito de clássico esfarelou-se de tal forma que arrisca o leitor impaciente. Se eu lesse Balzac a partir da famigerada A Mulher de Trinta Anos dificilmente voltaria a ele e mesmo nem o cumprimentaria na rua.
Moby Dick permanece, mas deixo-o para mais tarde. O mesmo faz a escritora Ana Miranda com Gargântua e Pantagruel. Por vezes o espírito demora a acolher uma d'estas obras máximas. Desconfio do moleque espinhento a vangloriar-se da leitura completa de Em Busca Do Tempo Perdido. Se elaboradas por escritores maduros, exigem leitores maduros. Sabe o que digo quem leu o livro certo na idade certa e apreendeu mais. Confesso ter retido menos do oferecido por À Sombra Das Raparigas Em Flor. É n'este ponto que se dá razão à Nelson Rodrigues e Jorge Luis Borges quando acentuam a importância da releitura. Todos gritam a importância da leitura, mas poucos lembram de recomendar o retorno ao texto. Decifrar letras difere do trabalho maior de abarcar o espírito. Uma obra que lerei novamente em alguns anos é Guerra e Paz. A quase santa princesa Maria, inspirada na esposa de Tolstoi, a beleza pérfida de Helena, o angustiado André Bolkonski, o intelectualmente inquieto Pedro, entre muitos outros: parece cinismo afirmar merecerem nova atenção.
Na coluna anterior eu argumentei propondo a distinção entre clássicos locais e clássicos estrangeiros. Buscando a coerência e atento ao relevo da releitura, este ano eu relerei Os Lusíadas. Tenho para mim que nenhum lusófono deve por de lado a obra máxima da língua portuguesa. Quero expor sem ranços de nacionalismo ou vício semelhante e espero conseguir. Enfada-me o pretenso cosmopolitismo de quem não conhece sequer a rua da própria casa. Ulysses é lido obrigatoriamente, até no município de Nhecolândia celebra-se o Bloom's Day e esquece-se quem foi Adamastor, despreza-se a conciliação camoniana entre os mitos antigos e a religião católica e sua exposição da história de Portugal da origem até perto d'um século de muito interesse para os brasileiros.
Retrato III
Dona Quequé de Viana Moura
Há vinte anos Dona Quequé de Viana Moura está morrendo. Nascida Maria Raquel de Azevedo Viana, é filha do finado coronel Bartolomeu Erasmo de Azevedo Viana, último Barão de Azevedo Viana, e de sua esposa, a também finada Eudóxia Bruckner de Azevedo Viana. O barão destacou-se por ser de início contra a abolição da escravatura e depois, ante a próxima intervenção monárquica no assunto, conceder voluntariamente a alforria aos cativos. Quem decide o que fazer com os meus pretos sou eu, não o imperador nem a moça filha d'ele. De sua parte, Dona Quequé nada fez que acrescentasse aos nomes de seus antepassados nem cuidou da continuação da dignidade da estirpe. Renome foi um capital pequeno do qual ela extraiu o máximo de juros. Dos cinco filhos que teve, um morreu antes de completar o primeiro semestre. O trauma incubado no orgulho impediu-a de levantar a mão ou falar rispidamente com os demais. Somente quem já passou sabe o que é isso. Resultou que Dona Quequé não educou quatro filhos, e sim, criou quatro tarados. O importante é que estão todos com saúde.
Atualmente Dona Quequé vive entre a sala, o quarto e a cozinha da casa germinada construída no exato terreno onde um dia elevou-se o casarão da família. Suas lembranças estão literalmente sepultadas n'aquele solo, e só abandoná-lo-á morta. Dona Quequé conhece o estado de imundície atual de sua residência, envergonha-se e não recebe ninguém. Contudo não admite reformas, engolindo com relutância a menor melhoria. A sala tem cortinas novas pois as antigas estavam podres e a Italiana, pobre do seu filho, rasgou-as todas quando providenciou a troca. Os trapos foram cuidadosamente lavados e guardados para o caso de precisar. Reformar implicar em gastar dinheiro e quando a casa esvaziar-se de sua última moradora, o gasto revelar-se-á inútil.
Para esta singular senhora, o mundo termina nos limites de Sant'Ana do Jecoaba. Não os limites atuais, porém os de sua meninice e juventude. Ficaria indignada se visse bairros inteiros construídos onde estendiam-se os cafezais do barão, terras hipotecadas e depois perdidas por seu irmão. O mesmo irmão que na revolução de 1.932 fugiu do alistamento vestido de mulher e retornou trazendo pela mão uma criança inexplicável. Em sua mente, Jecoaba foi adquirindo a forma d'um disco irregular a gravitar em torno d'um planeta de confusa lembrança. Aos seus recomenda não irem além dos limites pois é perigoso despencar.
A queda é um medo constante. Há muitos anos que Dona Quequé não sai às ruas, pois ainda lembra do dia em que sua irmã Leontina caiu na calçada e foi socorrida por estranhos. Jamais este papel seria admitido consigo. Se há risco em andar pelas calçadas e repetir a gracinha de Tintina, então melhor ficar em casa. Ironicamente, ela não freqüenta o próprio quintal desde quando foi buscar a gaiola d'um passarinho, escorregou no degrau e tombou quebrando o braço. Evite-se, pois, ir até lá. Já considerou humilhação suficiente seu neto Leopoldo falar para o ortopedista e suas enfermeiras que ela estava de fogo. No ano seguinte, Dona Quequé teve a desventura de ser internada às pressas devido a um edema pulmonar agudo. Recebendo alta, seu alívio foi maior por voltar à casa do que por melhorar. Manda a Prudência que se não saia ao jardim, pois uma corrente de ar pode trazer novamente o mal. Esta lição serve para o banho: bem quente, com um pano, semanal e rápido. Como morrerá quem nunca viveu, eis o enigma que cabe a ela Quequé decifrar.
Clássico, popular, erudito, vanguarda, toda essa classi-ficação não parece coisa de quem está mais preocupado em classi-ficar do que em sentir, experimentar ou experienciar mesmo a obra?
Relembremos Calvino: "Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos".