Não tomei cerveja com o meu pai. Não conversei sobre mulheres com o meu pai. Não fui ao cinema com o meu pai. Não visitamos a Expointer. O máximo de aventura que enfrentamos juntos foi quando ele estacionava em local proibido na rodoviária ao pegar os jornais e me deixava esperando no carro. Suportava a seqüência de tormentos: as buzinadas de quem vinha atrás, o pisca ligado eternamente e o pavor da multa do guardinha. Não tive nenhum papo adulto ou cabeça com ele. Ele não me indicou caminhos, não reprimiu escolhas. Não assinava meu boletim. Não autorizava minhas viagens escolares. Não me ensinou história, literatura, português. Não me explicou o sexo, a única vez que chegamos perto do assunto foi quando comentei que seria pai e já era tarde demais. Ele saiu cedo de casa (ao menos para mim), quando tinha oito anos. Não joguei futebol com meu pai e seus colegas contaram que atuava de centroavante. Queria ter jogado ao lado dele, mesmo que seja para reclamar da falta de passe. Ele escrevia muito e o escritório vivia trancado, impraticável para corridas e pega-pega entre os irmãos. Não podíamos entrar pela frente da residência. É óbvio que arrumava uma escada para espiar o que ele anotava pela janela. É óbvio que não enxergava nada de diferente.
Quando caminhava pela calçada, meu pai andava com as mãos atrás. Como é sábio andar com as mãos atrás! Tudo o que falam dele, eu paro para escutar como quem necessita reconstituir a vida que não teve. Amigos, inimigos, amores e desamores. Ouço qualquer história dele com ardor e paciência. Compraria histórias e palavras de meu pai. Meu pai é uma agenda que não foi usada. Por isso, não reclamo quando recolho os brinquedos de meus filhos pelos corredores. A maioria xinga a bagunça, não eu. Eu me alegro. Posso estar cansado, acabado, sem reservas e arrecadarei um por um dos brinquedos com dedicação. É noite alta, vou recolhendo os destroços e colocando os bonecos na prateleira. Faço um altar, distribuindo os anjos de madeira, de palha e de pano nos degraus das arquibancadas. Dobro as roupas nas gavetas. Organizo os carrinhos, sou capaz de escutar as vozes dos livros, esbarro em algum brinquedo eletrônico que quase acorda a vizinhança. Às vezes me perco em admiração pelos filhos. Entro em um transe, acionado por uma expressão nova, um fraseado diferente, uma pergunta esperta. Permaneço quietinho diante deles, mexo seus cabelos, como que colorindo desenhos dentro dos traços. Eles pensam que estou distraído. Ah se soubessem que presto atenção, tanta atenção que me disperso de mim. Só neles. Ausente enfim de mim.
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Sofro de uma mania imperdoável. Peço para a minha mulher telefonar e passo a gritar atrás o que deve dizer. Sou um chato. Não deixo ela falar, cheio de idéias e detalhes repentinos. É desgastante passar a informação, raciocinar e ouvir o que acontece ao telefone e suportar um outro perto de si, despejando dicas, incomodando e corrigindo. Não é possível assistir dois canais ao mesmo tempo. A vontade é desabafar: "quer falar? então toma!" E meter o gancho goela abaixo do marmanjo. Há momentos que só Tom e Jerry explicam nossa vida. Qualquer mulher fica louca. O homem tem o insólito hábito de pedir um favor, meter-se drasticamente no meio da conversa, inspecionar o serviço e apontar somente observações negativas. Deixa de ser um favor para virar uma ordem, deixa de ser um carinho para virar uma disputa, deixa de ser uma gentileza para virar agressão. Os exemplos são simples. Ele não deseja ligar para sua mãe (conhece toda a incomodação que virá pela frente), mas precisa passar um recado urgente. A mulher decide generosamente fazer a ligação. Tem que agüentar o relato minucioso do dia da sogra e mais o marido soprando novas fofocas, detalhes e perguntas ao seu lado. Não há maior tragédia do que ser uma linha cruzada entre o marido e a sogra. É o mesmo que ser convidada para o próprio velório e ainda agradecer. Ou pode ser a encomenda de uma tele-entrega. Lá vai o marido listar o jeito que deseja a comida durante a ligação, com pedidos inúteis e caprichos intoleráveis. Nem sabe o que o atendente está dizendo e responde de forma paralela, com a naturalidade de um viva-voz. O cara não cala a boca: matraqueando letras para acelerar sua narração de turfe. É um cavalo nomeando cavalos. Assim que ela disca, o homem abandona a preguiça que não o fez telefonar, pula da cama, ganha uma disposição e eloqüência em instantes, entra em surto e se dispõe a comentar sem parar o assunto. Segue sua mulher pela casa, como uma sombra pegajosa e arrogante. Corre em círculos, uma criança abrindo a porta com os dentes. "Não esquece de pedir", sugere a cada dez segundos, para depois cobrar: "não pediste, né?" Demonstra um talento inato para provocar. Emerge o espírito brigão que o mantinha elétrico na infância. Se o homem reclama com insistência da co-piloto no carro ou tece piadas sobre a mulher no volante, não se dá conta que ele é o pior co-piloto que existe ao telefone.
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Não se tem como adivinhar o que vem depois, não se tem como suportar o que veio antes, o que faz concluir que não se tem opção. A infelicidade de um casamento de 15 anos, de um namoro de cinco, de um emprego de dez. E não se muda nada, apesar da prisão e do desconforto, porque se botou na cabeça: não tenho opção. E se segue adiante com uma vaga expectativa de melhorar o ânimo, ou ao menos o cardápio do almoço. Com a vaga emoção de alterar o trajeto. Com a vaga noção de desentendimento. E se dorme e não se podia mudar pois os filhos estavam pequenos e se dorme e não se podia mudar pois os filhos estavam crescidos e se dorme e não se podia mudar pois os filhos estavam casando e se dorme e se esquece por oito horas, mas não é abafado o desânimo: a ferroada volta a arder e se cogita ter vivido à toa. Volta a suspeita de desperdiçar mais um dia da única eternidade que se conhece. E o corpo lembra um livro emprestado que se precisa devolver à biblioteca. Um livro que não foi lido, nem folheado pela curiosidade. E a multa aumenta e a vontade de ler diminui. E se botou na cabeça em alguma data indefinida: não tenho opção; em alguma latitude indefinida: não tenho opção; em algum aceno da cabeça, quando não suportava o silêncio tremer como uma boca chorando, quando não suportava os segredos escurecerem de mofo, quando não suportava a madeira nobre do armário perder as lascas da quina: não tenho opção. E se permanece num casamento triste, cego, morno, como se a luz fosse forte o suficiente para derrubar o telhado. A luz não fala alto. E se queria mais e se quer mais, e a resignação faz varrer as gavetas para queimar as pistas da inexistência. Não se acredita em mais ninguém, deixando a mão correr sem margens. Não se acredita em si, concordando para terminar logo o assunto. E se cala para não provocar briga e se desculpa por não conseguir vencer a timidez da falta de opção.
Quem diz que não tem opção ainda tem opção. Mesmo que seja para mudar de idéia, mesmo que seja para gostar novamente do que deixou para trás. Todos temos opção, sorrir ou ficar sério, brigar ou fazer as pazes, fugir ou pedir o divórcio, viajar ou pedalar o mar. Ao atravessar a rua, tenho a opção de olhar para a esquerda ou para a direita, para a amizade ou para sedução. Há opção na falta de opção. Há opção até depois da morte. Não admito essa covardia de escrever a própria vida sem assinar.
Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de seis livros: entre eles, Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização.