Quando os anos 50 chegaram, encontraram uma Europa tentando se recuperar dos estragos da Segunda Guerra Mundial. Em compensação, os Estados Unidos despontavam como a nação mais importante do planeta. Os americanos conheceram um período de grande prosperidade econômica, que impulsionou o consumo e proporcionou um aumento geral da qualidade de vida (o filme Pleasantville, ou A vida em preto e branco, retrata bem esse período da história dos nossos vizinhos ricos). A pujança econômica, no entanto, não foi acompanhada por uma evolução nos valores sociais. Princípios conservadores tornaram-se cada vez mais arraigados e a constituição familiar consolidou-se como um dos maiores valores americanos. Papai com seu carro do ano e mamãe com seus novos eletrodomésticos usufruindo a prosperidade que o país atravessava.
Esse contexto familiar idílico favoreceu um alto índice de natalidade, o baby boom, que teve grande repercussão mais tarde, na década de 1990. Importantes personalidades dos meios intelectual, econômico e político do final do século foram baby boomers. O ícone mais representativo desse grupo é o ex-presidente americano Bill Clinton. Estudos sobre a época e o contexto familiar em que nasceram creditam grande parte do sucesso dos baby boomers ao crescimento da economia americana nos primeiros anos da segunda metade do século XX.
No início da década de 1970, os baby boomers desbundaram, revoltados com o marasmo de uma vida certinha, moralmente conservadora, tão diferente dos avanços tecnológicos da época. No entanto, eles não foram os únicos a se revoltar. Os desafortunados que vieram ao mundo no início da década de 1950 mas não compartilharam das benesses do desenvolvimento econômico também resolveram manifestar sua raiva contra um sistema do qual não puderam fazer parte. Dee Dee, o baixista da formação original do Ramones, foi um deles.
Douglas Colvin (o nome real de Dee Dee) nasceu em uma família desestruturada, formada por um militar americano e uma berlinense. Teve uma infância tumultuada pelo alcoolismo e pela violência dos pais, passada parte em Berlim, parte em um subúrbio pobre de Nova Iorque. A única influência boa que a família teve na vida de Dee Dee foi o gosto da mãe pelo rock'n'roll.
Dee Dee Ramone, como muitos meninos em situação parecida com a sua, não tinha quase nada de especial: não era inteligente, tinha caráter fraco e começou cedo um contato com drogas que o acompanhou pela vida toda. No entanto, soube transformar tudo isso em letras de músicas que garantiram o sucesso do Ramones.
A versão de Dee Dee para a história da banda e para sua própria história está na biografia escrita em parceria com Verônica Kofman. Coração envenenado: minha vida com os Ramones (2004, Barracuda), é simples, direto e até meio ingênuo. Parece um diário repleto de queixas e auto-piedade, um desabafo meio despeitado por seu sentimento de inferioridade. O conteúdo é válido para se conhecer um pouco mais de Dee Dee e dos podres dos seus companheiros, mas não aborda temas fundamentais quando se fala de Ramones, como o surgimento do punk norte-americano e a sua relação com o contexto da época. No entanto, o relato dá pistas de como as músicas toscas, as letras bobas e os acordes simplórios conseguiram arrebanhar tantos fãs em duas décadas de carreira da banda.
Ao contrário do punk inglês, mais agressivo e distorcido, a versão americana, do Ramones, lembra o estilo new wave que deu o tom da década de 80. É fácil perceber as influências: Beatles, Beach Boys, Bill Haley. Parece uma surf music de caras que moram longe da praia. A leveza da melodia contrasta com a crueza das letras: drogas, tratamentos psiquiátricos, inconformismo social e um despeito por não poder fazer parte do sistema.
Como uma música tão rasteira pôde influenciar tanta gente e colocar o Ramones como ícone do punk rock? Deve haver explicações musicais, sociológicas, antropológicas que eu não domino, mas tenho minhas próprias versões.
Muito moleque deve ter pensado: se eles conseguem fazer sucesso com isso, por que não eu? E aí surgiram milhares de bandas de garagem formadas por garotos que não sabiam nada de música, não tinham repertório para compor letras com algum conteúdo e nem instrumentos decentes para tocar.
Mas toda essa simplicidade tem um caráter muito autêntico. Sem matéria-prima para produzir alguma coisa próxima das formas mais elaboradas de cultura ou com mais habilidades técnicas, o Ramones só podia contar com o que havia dentro dos integrantes da banda. E aí eu preciso mencionar Carl Gustav Jung. Nos seus estudos sobre o inconsciente, Jung mostrou a importância dos mitos e arquétipos que todo ser humano traz consigo. Não tem a ver com época, local ou cultura de nascimento, nem com referências ou aprendizado. É tudo muito instintivo, atávico, tribal. O rock em si tem muito disso. Batidas ritmadas, estruturas musicais simples, trabalho vocal de graves e agudos. E acredito que a mágica do Ramones esteja nesse contato que a música deles faz com algumas coisas que as pessoas têm muito escondidas dentro de si.
Dee Dee conta que eles, assim como músicos de outras bandas, foram incentivados a manter o consumo de drogas e álcool. Talvez fossem os combustíveis necessários para uma produção musical como a deles. O próprio Jung usava substâncias alucinógenas para poder entrar em contato com o seu inconsciente. Ao manter uma produção que atendesse à demanda por mais e mais de Ramones, também se mantinha uma atividade lucrativa para os managers da banda e sustentava o vício e o estilo de vida dos músicos. Pois é, o lado comercial existe mesmo com toda essa rebeldia. Os Ramones não vestiam jeans rasgados, camisetas e jaquetas perfecto porque se sentiam bem assim. Era um uniforme, assim como o cabelo tigelinha. No livro, Dee Dee fala de sua vontade em mudar de visual, como uma criança birrenta querendo contrariar os irmãos mais velhos.
Se estivesse vivo, o Ramones faria 31 anos em 2005. Da formação original, só sobrou Marky. Joey e Johnny morreram de câncer. Dee Dee, de overdose, em 2002, muitos anos depois de ter deixado a banda. Ele estava limpo há bastante tempo, era casado com uma argentina e morou um tempo em Buenos Aires. Um dia, foi encontrado morto em seu apartamento.
Nasci no mesmo ano em que a banda. Também já quis mudar o sistema, mesmo que fosse apenas o establishment das cerimônias de formatura. Quando eu e minha amiga organizamos a nossa, em 1996, todo mundo tocava axé no final da colação de grau. Nós decidimos escolher outra música, sem consultar ninguém. Como Ramones tinha sido a trilha sonora da maioria das nossas farras, nada mais justo do que encerrar aquele período tão bom com uma singela homenagem: quando as cortinas subiram e os papeizinhos começaram a cair, ouviu-se one, two, three, four e os primeiros acordes de "Pet Sematary"...
Marky Ramone entrou no lugar de Tommy, que não tinha a verve necessária para acompanhar o estilo da banda. Marky faz parte da formação mais conhecida do Ramones.
Seu texto está fantástico. Agora, só não concordo com uma coisa: não acho que aquela geração tinha despeito por não fazer parte do sistema, ao contrário, aquele sistema consumia eles. Roberto.