Ninguém é mais pop que o Papa. Jesus Cristo ou os Beatles não foram tão
famosos, nem arrastaram milhões de pessoas em funerais fantásticos como este
que estamos vendo. Penso no corpo deteriorando em dias e dias levado daqui
para lá. Tantos católicos! Nunca se soube que
eram tantos. Presidentes e governantes de joelhos, o povo
atropela-se e sacrifica horas sem fim nas filas, o Vaticano em polvorosa
pelo Papa que virá. Como nos velórios do interior em que o defunto transforma-se em santo, o papa transformou-se no próprio redentor da humanidade, um Cristo de corpo morto, sem possibilidade de ressurreição. Que venha o próximo, precisamos de deuses.
Um dos requisitos para o candidato é a intimidade com a mídia. O futuro papa
deve ter carisma e estar antenado com as novidades da comunicação global. Talvez ter um blog. Com o Cristo crucificado ao fundo e posts em prol da tolerância. Mas,
isto é o de menos. Importantíssimo para chegar a Papa é ser um manancial de
virtudes.
(A exibição das virtudes humanas nos jornais e tevês tem-me estapeado nos
últimos dias, estão em todos os cantos, gritando sua pureza em detrimento de meus
defeitos.)
Perdoem-me as senhoras católicas, aliás, creio que a partir de hoje pedirei a elas perdão em todas as minhas colunas, mas não vejo diferença entre essa agitação
em volta do Papa e de uma santa celebridade criada pela mídia, como o Jean Willys do
Big Brother Brasil. Um cordeiro sacrificado, exposto, como símbolo da
bem-aventurança, da moral e da bondade. Constrói-se um destes com técnicas
publicitárias: o apresentador do telejornal muda discretamente o tom de voz,
transita entre o "também sou humano e estou quase chorando" e o "há pessoas
boas no mundo, vejam, amigos, que exemplo". Um filminho conta vida e as dificuldades passadas. A difícil época da faculdade ao som de "Coração de Estudante", ou seu similar em italiano, inglês ou polonês. Nós, em casa, sentimos um
reconforto, como se houvesse ainda alguma esperança para o mundo cão.
Pessoas boas nos emocionam, confesso que no dia da morte do Papa, tive por
instantes os olhos rasos d'água. A mesma reação que tive quando Jean ganhou
o Big Brother, meu conhecido e vergonhosamente assumido programa de televisão
predileto, exatamente a mesma.
Esgotado, cansado, doente, numa das últimas aparições na janela do hospital, temi que
um dos acessores fosse levantar santa mão papal por algum fio invisível para
que ele abençoasse a multidão. Como temi que Jean Willys fosse dizer em alto
e bom som "quero voltar a ser mortal!" quando, forçado pelo contrato com a
Globo, com olhos submissos, sem encarar a câmera,
precisou fazer uma cena ridícula no programa Casseta e Planeta. Deve ser
duro ser um exemplo para a humanidade. Deve cansar um homem. Convém lembrar: Karol Wojtyla era um homem.
Um dia, oferecerei meu corpo em sacrifício, como exemplo para a humanidade.
Nem sequer peço um palácio no Vaticano para morar, que aqueles me parecem
gelados. Dêem-me um bom homem de marketing, o William Bonner com a
voz embargada e um belo fundo musical. Mostrarão meu negro passado com
drogas, outras lutas internas, meu presente como mãe dedicada e amorosa. Nas televisões, as
cenas de minha vida em que perdoei meus inimigos, intercaladas com as do
Papa perdoando o atirador e o Jean Willys perdoando Sammy. As pessoas todas, sem mais ídolos, me amariam.
Eu não iria tão
longe quanto o Papa, admiro-o pela persistência. Abaixaria os olhos,
sim, como o Jean, quando perguntado "como se sentia em ser um exemplo para o
Brasil e um orgulho para sua mãe". Abaixaria meus olhos, envergonhada de minha
virtude.
Lar, doce lar
"E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto nossa
natureza humana vive banhada em luz ou mergulhada em sombras. Vê! Seres
humanos vivendo em um abrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se abre
para a luz, que a atinge em toda a extensão. Aí sempre viveram, desde
crianças, tendo as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem
mover-se, e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os
impedem de virar a cabeça.
Acima e por trás deles, um fogo arde a certa distância e, entre o fogo e os
prisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olhares bem,
verás uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como se fosse
um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se enquanto
exibem os bonecos.
[...] Pois esses seres são como nós. Vêem apenas suas próprias sombras, ou
as sombras uns dos outros, que o fogo projeta na parede que lhes fica à
frente."
(Platão, República, Livro 7)
(Tateio na escuridão, encontro o elo quebrado. Está da mesma maneira que o
deixei. E a pedra afiada que havia usado para quebrar a corrente, uso para
abrir um novo elo e prender-me novamente. Nada parece ter mudado, eles
continuam assistindo ao teatro das sombras na parede, um pouco anestesiados. Alguns babam. Ajeito a coluna na pedra úmida, estive com saudades daqui. Nada encontrei de diverso entre o teatro das sombras e o mundo das idéias. Na verdade, prefiro as sombras. Dá menos trabalho: é só sentar e assistir.)
- E aí, como foi?
Era Robert Crumb, que também tinha voltado.
- Tá pior, Crumb, agora só há gente virtuosa.
- Triste. E a música?
- Foi-se.
- Agora eles dançam aquelas coisas.
- Chamam a si mesmos de "cena musical". E a você de "ícone da contra-cultura".
- Damn it! E o Bruce Springsteen, morreu?
- Nada. Até se multiplicou. Em George Michael, Lenny Kravitz, Felipe Dylon.
- Quem é Felipe Dylon?
- Deixa pra lá, Crumb... Trouxe o banjo?
- Yeah.
Ele toca Howlin' Wolf, "Driving this Highway", choramos.
Rec, rec, rec.
- Ei, Crumb, você despertou um, parece que está tentando soltar a
corrente.
- Deixa.
- Coitado. Tá indo lá pra fora.
- Ótimo. Estou precisando mesmo de uma corrente extra, nos pés. Sabe como é, melhor prevenir...
Blues, de Robert Crumb
Crumb é impaciente e imoral. Odeia com fervor a dança e a música pop.
O crítico mais ácido da América faz em Blues a definitiva homenagem à velha música negra norte-americana. Os malditos bluesmen que
fizeram pactos com o demônio nas encruzilhadas, um homem negro e alto que afinava os
instrumentos como ninguém, ressuscitam sua vida viciada no traço sujo de Crumb. Charley
Patton, beberrão e violento, morre anônimo e ouvindo a voz da morte em delírios. Mas deixa a
melhor música do mundo para os bons. A edição da Conrad é perfeita: cores, papel e
cheiro que me fizeram fazer uma prece de agradecimento. Não às virtudes de algum Papa, nem à moral inatacável de Jean Willys. À
Crumb, o infernal Crumb.
Olá, Andréa! Estou aqui com meus 44 papagaios cantando "a benção... João de Deus". Suas vozes esganiçadas certificam-me do encantado e católico manto que envolve o mundo por ora. Depois será outra coisa, outro manto ou mantra. E não é que o Ronaldo fez gol no clássico? O filho dele será um tributo. Nada mais perfeito e eu estou cansado disso tudo. Clarice está fazendo 15 anos e continua cortando-se com seu pequeno canivete. Poderia ser muito mais, muito mais... talvez ela se conforme enfim e até espere com ansiedade pelas estréias da TV brasileira. Mas o cigarro apagou e acabou a cerveja. Ninguém esperava que o CD estivesse riscado e a festa teve de parar até encontrarem outro CD legal. Um pouco de falta de originalidade... sempre os mesmos ídolos, o mesmo espetáculo, o CD remasterizado e algum remix... céus, quero meu inferno!!! Desligo a TV no meio do último capítulo da novela. Talvez eu vá ler Crumb ou outro que me agrade. Beijão! Até a próxima! Meus papagaios mandaram avisar que hoje tem festa no meu apê... (urgh...)
Que alívio! Se não houvesse outra utilidade (ôps, olha o utilitarismo consequencialista aí, gente!) para o Digest, eu já estaria muito feliz por perceber que não sou o único que já está farto de ver os noticiários do mundo todo perdendo tempo com o besteirol do Vaticano. Obrigado Andréa, Alessandro e Fernando por compartilharem da fumacinha - negra - que está saindo... da minha cabeça, para não falar coisa pior.
Sei que causa escândalo dizer isso, ao menos por aqui, mas Jesus também era um homem (filho de Deus, como todos nós, segundo ele próprio)... A única diferença é que acho que ele sempre pregou que seguissem suas palavras e não sua imagem... Mas como sempre, este é um espinheiro em que eu não me meto :).