"Ministro, o senhor está muito político", disse um participante do I Forum Nacional de Cultura e Cidadania Corporativa, realizado no dia 3 de maio. No Fórum, o tema em questão eram as políticas de incentivo fiscal, mais especificamente as mudanças que estão por vir no cenário de investimento em cultura. Em que pese os erros e os acertos das políticas culturais do atual governo, a frase do participante do evento pode ser tomada, sim, como verdade. Mais do que nunca, Gilberto Gil tem se destacado, nos últimos dois anos e meio, como importante personalidade política, tanto nas viagens internacionais como em suas apresentações musicais, como a que ocorreu em Belo Horizonte há pouco mais de uma semana. Segundo relato da coluna "Painel", do jornal Folha de S.Paulo, Gil tentou falar do presidente Lula antes de executar uma música. A tentativa não deu lá muito certo porque cada menção ao presidente era seguida de uma vaia uníssona. O ministro, então, decidiu tocar sem fazer menção à política. Nesse texto, imito Gil. Deixo sua atuação política de lado e volto o foco para o álbum Gil Revisitado, recém lançado pela Dubas.
O disco é uma seleção de um período em que Gilberto Gil era politizado, no máximo, nas letras de suas canções. E aqui o ouvinte verá um apanhado da produção do cantor e compositor num período muito profícuo, mais precisamente entre 1967 e 1977. Ao todo, são 14 faixas. Por ser uma coletânea, seria ingenuidade dizer que as músicas escolhidas não foram os hits. A vantagem, no entanto, em relação às demais coletâneas é que dessa vez parece ter havido uma preocupação maior no que se refere às músicas que entrariam na seleção. O disco abre com "Roda". E não é por acaso que ela soa como uma apresentação, um chamamento: "Meu povo, preste atenção/ Na roda que eu te fiz/ Quero mostrar a quem vem/ Aquilo que o povo diz". Nessa crônica-canção, ele é o autor e intérprete de sua própria obra. Situação um pouco diferente da faixa "Procissão", que conta com a participação de Rita Lee e dos Mutantes, sem contar com o arranjo do teórico tropicalista Rogério Duprat. Nota-se, aqui, um estilo mais "importado" (sempre tendo por base os parâmetros da época). Os instrumentos, em específico a guitarra, remetem aos Beatles. Reparem no riff inicial, uma pérola quase rockabilly.
Na canção anterior, porém, "A rua", Gil permanece num estilo que, quase quarenta anos depois, todos fazem por oportunismo: o forró. Mas engana-se quem imagina que a faixa é apenas o arrasta-pé, desses que fazem a cabeça dos forrós universitários. Em verdade, o que se ouve é uma peça genuinamente regional, fazendo menção a São João e ao Maranhão, porém marcada por um ritmo melódico. Gil canta, de início, acompanhado por flautas e por cordas. Aos poucos, surge o violão e, à medida que o refrão aparece, o forró surge, com triângulo e a percussão que é característica ao gênero. A pontuação é claramente perceptível: na parte da festa, Gil entoa: "É, São João, ê, Pacatuba/ Ê, rua do barrocão". No trecho lento, cabe até um romantismo: "De longe pensando nela/ Meu coração de menino". Há uma combinação e uma coerência notáveis entre letra e música.
Já em "Mamma", tem-se a faixa mais intimista. Gil canta em inglês sem aquele estridente brasileirismo que alguns insistem em manter. Desse modo, a versão fica mais verossímil. "I wanna put my chest against the Wind, mamma/ Give me your blessing right now". Uma balada. Então, como não há espaço para muitos instrumentos, o cantor investe em seu violão, mas conta com o precioso acompanhamento do baixista Chris Bonett, que também faz vocalises.
Talvez o único problema das coletâneas seja a variação drástica de uma canção para outra. Nesse caso, até que há uma certa seqüência temática. A versão de "Chiclete com Banana", embora a letra seja absolutamente brasileira ("Vou misturar chiclete com banana/ Miami com Copacabana"), o ritmo conta uma bateria jazzística, com Tutty Moreno, e o piano de Antonio Perna fazendo intervenções pontuais. Secas, mas que casam muito bem com a "baquetas de vassourinha". No "Canto da Ema", o álbum volta ao forró. No entanto, já é perceptível um acordo entre as influências diversas, unindo o piano e a guitarra à percussão, sem que isso fique fora de tom. Em contrapartida, há um evidente desnível no que se refere à letra. Rimas simples tomam lugar: "A ema gemeu no tronco do juremá/ Me beijar, me beijar/ Dá um beijo, dá um beijo/ Pra esse medo se acabar". E as estrofes se repetem por longos 6 minutos.
Por falar em repetição, "Batmakumba" é o exemplo claro de como, em alguns momentos, o excesso pode ser nocivo. Pertencente ao celebrado disco Tropicália ou Panis et Circenses, a letra se resume ao título da canção. E só. Sem dúvida, é o grande equívoco dessa coletânea. Quando a letra atrapalha, os instrumentos, às vezes, salvam. Assim, a guitarra elétrica é a estrela de "Cérebro Eletrônico", a faixa seguinte. Mais do que acompanhamento, Lanny interpreta a letra não só com os solos, mas principalmente com os pedais, dando um tom psicodélico, de tabela, ao canto de Gil. Ao final, Wilson das Neves, na bateria, entra na "viagem" e completa o som experimental.
Outra canção-crônica, "Vitrines" é marcada pelo violão e, novamente, pelos arranjos de Rogério Duprat. Nota-se o auge do tropicalismo em trechos como o que segue: "Dentro e fora da cabine/ Éter-cosmo-nave-nauta". Letra por letra, é quase impossível a ascensão qualitativa em relação à música seguinte, Refazenda. E não só nos versos. O acordeão de Dominguinhos é reconhecível logo nas primeiras notas. Sai o nonsense, entra a história com metáfora: "Abacateiro/ Serás meu parceiro solitário/ Nesse itinerário/ Da leveza pelo ar". A qualidade é mantida, mais lírica do que nunca, em "Aqui e Agora". Mesmo sendo uma faixa longa, o ouvinte é conduzido ora pelo canto suave, ora pelo toque sutil dos instrumentos - piano, baixo e bateria.
Quase no final do disco, que ao todo tem 14 faixas, cabe destacar "Eu só quero um xodó", de Dominguinhos e Anastácia. Forró autêntico, a música chama a atenção pela ótima harmonia entre os instrumentos. Pois o triângulo só aparece na hora certa, assim como o baixo sabe manter a discrição que lhe é peculiar, sem deixar de marcar posição. Desse modo, há o espaço necessário para Dominguinhos e seu acordeão brilharem. Prestem atenção no solo, que é singular.
A compilação de Leonel Pereda e Bastos é, no geral, muito bem feita. Gil Revisitado apresenta um interessante panorama para os ouvintes que só conhecem o cantor e o compositor dos especiais da televisão, como o acústico da MTV, ou do autor das trilhas de cinema, como Eu, Tu, Eles. Além disso, faz com que esqueçamos - por pouco tempo, é verdade - do homem político que, para o bem e para o mal, o artista se transformou.
Fabio, sou uma apaixonada pela tropicália desde os 5 anos de idade! Agora já nao mais tanto quanto antes, até por algumas decepçoes que tive com alguns membros do tropicalismo, mas isto é um capítulo à parte... Olha, do que voce escreveu, só gostaria de acrescentar uma coisa. Na música "A Rua", as referencias se fazem muito mais à Teresina, no Piauí, do que propriamente ao Maranhao.... A rua, tal como o rio Parnaíba, separa o estado do Piauí do estado do Maranhao... Pacatuba, rua do Barrocao, etc., sao típicas ruas teresinenses, onde viveu Torquato Neto sua infância (para mim, injustiçado quando o tema é tropicalismo; muito pouco lembrado)...