COLUNAS
Quarta-feira,
18/5/2005
Muitos amores ao mesmo tempo
Fabrício Carpinejar
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Uma biblioteca desarrumada não significa que é menor. Estantes com filas duplas não sinalizam desordem. Um livro que não se encontra não está perdido. Não achar alguma coisa é mexer em obras esquecidas e ler o que não se esperava. Não sou contra a catalogação. Nada disso. É que livros lidos são naturalmente livros fora de ordem. Escapam do crivo, deitam em dormitório alheio, se misturam com ansiedade. Duvido de uma biblioteca ordenada em excesso, impecável, limpa. Parece que a única leitora é a traça. A vida não deixa nada em seu lugar. Como ler sem contrariar o rumor alfabético? Como viver sem contradição? O mesmo posso pensar dos amores. Desejamos ao longo dos dias ter um casamento regulado, com todos os volumes cadastrados e que sirva mais como um móvel para decoração do que uma escada de leitura. Amor, como uma biblioteca, não é posse, mas despertence. Quanto mais leio mais perco as certezas do começo. Quanto mais amo mais apresso o final. Um livro não dirá onde estamos, uma paixão não consola, ambos apontarão para onde podemos ir dentro do corpo. É possível viver dois amores ao mesmo tempo? Sim, é possível viver até três amores ao mesmo tempo, porém o esgotamento nervoso chega junto. Desde que um amor não seja a migalha do outro. Desde que o amor não seja a falta de solidão, e sim a solidão assumida. Desde que o amor não seja a segurança do egoísmo e sim a insegurança do diálogo. Desde que um amor não seja o complemento do outro. Pois amores não se completam, se bastam. Não adianta somar duas carências para gerar uma terceira. Dois amores são possíveis no início, para se desentenderem logo em seguida. O amor que é forte, luminoso, não permite concorrência. Amor é naufrágio, nem todos encontram madeira boiando para voltar a si. Dois amores são possíveis ao mesmo tempo porque um deles será o proibido. Porém, o proibido pode ser transar com a esposa, não a amante, e quem dançará sozinha depois é a amante. Difícil de compreender? Permanecer no casamento ou na estabilidade, desde que se amem, é hoje a mais alta transgressão. Aventurar-se fora de seus domínios cheira a regra. Não existe roteiro pronto. Assim como o marido pode segurar a vela de seu enterro e as duas arranjarem coisa melhor pela frente. O amor não está em uma instituição, mas na capacidade de suplantá-la.
Amor não se mede, se confunde. É impraticável comparar relacionamentos como ofertas de lojas. Um amor que não pode ser comparado é difícil de esquecer (ainda que a separação aconteça). Aquele que já permite comparação demonstra ser pouco consistente (ainda que os dois fiquem juntos). A gente ama para quê? Para não avaliar o amor. Não conseguir acompanhá-lo é quando vai bem. Quando se começa a ter consciência do certo ou do errado é aviso prévio. Sintomático que os casais peçam conselhos aos amigos para fazer em seguida tudo diferente. Amor muda as regras de propósito, muda o telefone, muda o endereço. Quem não está jogando não entenderá. É feito somente para jogar, não ser assistido. O mistério é não entendê-lo a ponto de preveni-lo. Prevenir o amor é matar a capacidade de aprender com suas conseqüências.
* * *
Não existe pai de primeira viagem. Todo pai faz, no mínimo, uma viagem de ida e volta. Uma para levar o filho e outra para buscá-lo. Sou pai de dois filhos, Vicente, 3 anos, e Mariana, 11. Vicente mora comigo e Mariana com sua mãe. Minha vida pessoal é cheia de explicações, a mãe da Mariana não é a mesma de Vicente, com quem vivo. E sempre estou a conciliar o que a mãe da Mariana pensa, o que a minha mulher pensa, o que Vicente pensa, o que a Mariana pensa. Isso sem contar o apelo das avós. Difícil? Não conheço vida fácil e nem quero. Os problemas estimulam e exercitam o afeto. Essa confusão só tem me ajudado. Não falta gente se importando e prestando atenção nas crianças, opinando e dando dicas. Sou conhecido em casa como "pai maluco". Ser chamado de pai maluco pode ser motivo de ofensa para alguns. Para mim, é orgulho. Pois confio no humor e na alegria como a verdadeira filiação. Desejo que meus filhos não sejam somente meus filhos, mas filhos da alegria que passa por mim. A paternidade está associada à severidade, à censura e ao controle. Paternidade pode ser engraçada, solta e, ainda assim, ser didática. Ser pai não é um sacrifício, um trabalho, mas um dom, uma possibilidade que recebi para amadurecer e calibrar os olhos. É receber a infância de volta com juros e correção monetária. Há algo melhor? De manhã, levo sempre Vicente na escola. Faço questão. Brincamos muito no caminho. Faço de conta que preciso de combustível de beijos para chegar até lá. E dá-lhe receber beijos no trajeto, coisa não tão fácil, que consigo com facilidade quando está dormindo e não pode reclamar da barba. Depois sou o elevador para ele apertar o interfone da escolinha. Em dez minutos, realizamos uma vinda inteira de cumplicidade. Não vou dizer aqui que troquei fraldas, dei banho, virei a madrugada controlando sua febre, e tudo o que possa cheirar a prestação de contas. Erro muito, mas sempre que erro digo que errei e me desculpo. O amor não tem tempo para arrogância. Autoridade e paternidade não são sinônimos, talvez antônimos, paternidade é compreensão, não deve julgar, muito menos condenar. Não bato em meus filhos em situações de descomportamento. Converso. Conversa cansa e eles logo perdem a resistência.
Ao pai, não bastar contar histórias, é necessário ser a própria história ao filho. Não canso de inventar personagens e aparecer de repente na sala, cheio de trejeitos e manias. Teatro não falta para demonstrar carinho. Mariana foi alfabetizada pelo professor "Caramujo", que significa eu de chapéu e sem mãos. Crio personagens para lidar com possíveis dificuldades das crianças. Quando minha filha estava dispersiva, dei a luz ao "Canal", um guri insuportável, que mudava de conversa a toda hora (como um zapping da tevê) e não terminava sequer um assunto. Depois de conversar com o "Canal", Mariana ficou bem mais concentrada. Outros vieram: "Sapato de Gente", para colocar os pequenos na cama, espécie de ônibus gratuito, em que eles andam em cima dos meus pés; "Noturno", que surgia de noite e não podia receber a luz do sol em demasia; "Tristinho", que somente reclamava e não sabia valorizar os bons momentos, entre tantos. O último que surgiu, "Professor Prendedor", vem ensinando pronúncia ao Vicente. Ele usa prendedores de varal pela roupa e sua pedagogia é transformar cada palavra em música. Meu filho falava "tutu", que é uma comida, ao invés de "tatu", um bichinho. Agora fala ta-tu, separando para não errar, com a mesma fome. Minha galeria de protagonistas ajuda que eles entendam e possam organizar o temperamento a partir da contraposição e do confronto. Ser pai é se inventar.
* * *
Se eu pudesse falar com os meus mortos, não sentiria curiosidade pelo passado e pelo futuro. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não me atreveria a esclarecer boatos. Nem aos suicidas perguntaria algo a respeito das vontades inacabadas. Se eu pudesse falar com os meus mortos, falaria do tempo, da chuva e do frio, como faria com qualquer um na rua, falaria de assuntos gerais e recentes. Não me arriscaria a criar intimidade fora das roupas. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não seria trágico, ajudaria a franja descuidada a montar nos ouvidos. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não pediria perdão. As coisas não se desculpam em trânsito. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não sofreria pena e compaixão, que os mortos já não sofrem nada, a não ser a morte que lhes foi dada. Se eu pudesse falar com os meus mortos, comentaria o jogo de futebol, o azul de um telhado, uma açucena ainda cheirando o mundo antes de vir. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não daria notícia de mim, pois contar é perder a lembrança. Se eu pudesse falar com os meus mortos, trocaria um aceno cordial com a cabeça, como a respiração sigilosa entre o cocheiro e seu cavalo. Se eu pudesse falar com os meus mortos, teria vontade de limpar a caspa de seus capotes ou alisar a chuva na lã. Um gesto intuitivo, próprio dos cuidados dos vivos, que os mortos sentem falta. Se eu pudesse falar com os meus mortos, tomaria uma café com açúcar para escutar o metal raspando o fundo da porcelana. Se eu pudesse falar com os meus mortos, mostraria as fotos 3x4 dos filhos na carteira, sei que os mortos conhecem meus filhos, devem conhecer até os netos que ainda não nasceram, mas não conhecem o jeito como os rostos são protegidos pelos dedos. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não tocaria em religião ou política, a opinião e o voto dos mortos não são obrigatórios. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não colheria a alface crespa da horta dos pecados ou uma palavra para magoar. Se eu pudesse falar com os meus mortos, mexeria no bolso conferindo a chave de casa. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não teria a angústia de nascer, de prender a atenção. Se eu pudesse falar com os meus mortos, não resolveria nada, o mundo deles está cumprido, pago e não há a possibilidade de mudar sequer a gola de uma letra. Se eu pudesse falar com os meus mortos, escutaria uma música que me fosse especial, uma música sem letra para confundir. Se pudesse falar com os meus mortos, teria preguiça de acordar a língua. Se eu pudesse falar com meus mortos, não haveria pânico e medo, meus mortos não são perigosos, talvez tristes, talvez caseiros, até brincaria de fantoche com as mangas da camisa. Se eu pudesse falar com os meus mortos, lembraria de comprar pão. Se eu pudesse falar com os meus mortos, teria maior interesse em não ter interesse. Acho que os esqueceria no dia seguinte.
Nota do Editor
Fabrício Carpinejar é poeta, autor de sete livros: entre eles, Como no céu/Livro de visitas (2005), Cinco Marias (2004) e Caixa de Sapatos (2003). Estes textos foram originalmente publicados em seu blog e reproduzidos aqui com sua autorização.
Fabrício Carpinejar
São Leopoldo,
18/5/2005
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