Não sei o que se pode fazer para ensinar alguém a escrever. Não sei mesmo. E pode ser um fracasso essa conclusão partir de uma professora de jovens e de adultos. Podem me demitir amanhã, ou hoje mesmo. Essa moça não acredita no próprio taco. Mas não é isso. Eu realmente sei lá o que pode fazer com que alguém escreva bem, se não for o esforço pessoal e a vontade de aprender e melhorar.
Quem já aprendeu a tocar um instrumento sabe: é preciso treinar, repetir, ouvir, rever, reler, mexer, mudar, tocar de novo, tocar pela milésima vez, ouvir pela duocentésima vez, chamar outro para ouvir junto e emitir opinião, escutar opiniões, percepções, avaliar, rejeitar ou aceitar, mudar, transformar, treinar mais e, muito importante: jamais achar que está perfeito. Se não for assim, o instrumentista pára de aprender, pára de se aperfeiçoar e vira uma estrela congelada num céu cheio de cometas.
Escrever é assim. Num sentido pedagógico-curricular, uma professora chamada Fátima me ensinou a escrever. Deu para mim um manual em que eu aprendi a juntar letras e palavras e então comecei a ler. Juntei letras e palavras com minhas próprias mãos e comecei a escrever. No fundo, ainda era tudo a mesma coisa: juntar letras e palavras. Sentido era alguma coisa rara. Principalmente naqueles manuais cheios de assonâncias e outras figuras para criança achar linguagem algo bonitinho e sonoro. Mas sentido era artigo de luxo.
Mais tarde, descobri os sentidos quando passei a insistir nos textos, principalmente nos que eu lia do lado de fora da escola. E os literários vieram em seguida, como um oásis proibido no meio de um deserto de opções paradidáticas.
A experiência estética da literatura eu só fui descobrir nas barras da saia da minha avó ou na biblioteca da escola pública, onde eu podia colher os livros dos cachos, sem me preocupar com o "para casa" ou com a lista do vestibular. Ainda assim, observando os concursos vestibulares longínquos (eu ainda era uma criança) é que conheci Carlos Herculano Lopes, Rubem Fonseca e João Ubaldo. Também descobri que os autores podiam estar vivos!
A graça dos textos literários só me apareceu porque aprendi, comigo mesma, um certo apetite por coisas gostosas. Inclusive as de ler. E então eu fiz reviver um costume medieval: o de ler em voz alta. Não porque os textos fossem cheios de emendas e sem parágrafos, mas porque eram saborosos.
Cansei os ouvidos de mãe e irmãos com meus anoiteceres de ladainha incansável. Não foram nem a professora Fátima nem o professor Reis que me mostraram os sabores dos textos literários, muito menos eles me fizeram gostar de escrever. Isso foi mesmo por minha conta.
Aprendi como juntar letras e sons e palavras na escola. Li livros que o colégio pediu. Fiz provas e montei esquemas. Perdi a conta dos resumos de obras e me desgastei lendo a interpretação dos outros sobre Machado e Rosa. Conferi nem sei quantos gabaritos e revi não sei que número de redações. Mas não foi dentro desse esquema tenebroso que conheci Bandeira e seus pneumotórax, as mulheres do sabonete Araxá ou a tabacaria de Fernando Pessoa. Lembro da primeira vez em que li "Poema em linha reta". O impacto me lançou na obra inteira do poeta e de seus heterônimos, para mim, àquela altura, um mistério.
A primeira vez que li um poema de Leminski, essa, sim, devo à apostila do colégio. Li bemóis e sustenidos e não me contive. Entrei em transe, transa, apaguei. Fui correr atrás dos livros dele nas lojas. Fiz a coleção. Pensei: mas isso pode? Podia. E ele nem havia ainda caído no vestibular ou nas graças da academia. Faltava pouco. Vestibular dissecou o poeta.
Li um poema dele e disparei os meus por todo lado. Me achei. Num haicai, eu me achei. Li até não cansar. E leio até hoje minha coleção de suspiros em lugar de honra na estante da sala. Mas o que o professor havia feito com a apostila? Mandou pular aquela página. Eu li de teimosa que sou. E se ele pulou, é porque deve ser bom. E era.
Escrevi pelos mais breves impulsos. Era um amor fracassado aqui, outro, acolá. Um dia entediado, um mormaço, uma tristeza. Uma alegriazinha em pílula. E dava poema. Mas ninguém me levava a sério. Até que um dia levaram. E então eu tive ainda mais vontade de escrever. E descobri: eu aprendi a ler lendo; a escrever, escrevendo. E escrever pedia leitor, daí a publicação. E era gostoso saber que o texto foi lido. Eu aprendi a gostar de ler e escrever quando descobri que não era para a professora, para ter nota, para fazer esquema e resumo. Eu aprendi a gostar quando aprendi que aquele prazer era só meu, e era qualidade, não era quantidade. Aprendi a gostar de ler, não apenas a ter o hábito, quando não precisava conferir o gabarito, a leitura era só minha e pronto. Gostosa de fazer. Escrever também: sem nota, sem protocolo, sem rasura. Eu e minhas tentativas.
Eu sei lá como posso fazer isso com meus alunos! Talvez levando-os ao mesmo percurso, ou parecido ao menos. Talvez contando esta história. Enquanto a maioria não percebe, sigo na frente tocando a flauta mágica.
Li seu texto na tentativa de encontrar uma definição de devir humano para um trabalho de pós graduação, mas encontrei muito mais. Gostaria de lhe parabenizar pela profundidade da mensagem contida num texto aparentemente simples, com ela aprendi e refleti sobre muito mais do que eu procurava.
Aprendi a gostar de ler porque em minha casa meus pais gostavam. E se dava tanto prazer a eles, devia ser algo mesmo muito bom; então quis fazer o mesmo. O prazer da leitura já era tão arraigado em mim que quando chegou minha vez de redigir os tais resumos de obras, e a estudar interpretações que outros haviam escrito e me cabia estudar, nada podia mais destruir esse prazer. E foi lendo que aprendi a escrever, e também, como você diz, treinando, repetindo, relendo e corrigindo, disposta a mudar o que não me parecesse bom o suficiente, mas sabendo que jamais conseguiria algo perfeito.
Meu pai usou um truque interessante para que eu criasse interesse por ler. Eu ainda não sabia ler, meu pai lia para mim todas as noites pedaços da história de Narizinho, do Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Eu tinha uns quatro anos de idade. Fiquei ansiosa em saber a história completa, olhava a coleção na estante e concluí que, no ritmo que meu pai lia para mim, ia levar uma eternidade até eu saber a história toda. Pedi, então, para aprender a ler e fui atendida. Aprendi a ler com cinco anos de idade e saí lendo a coleção completa de Monteiro Lobato. Nunca mais parei de ler - nem de escrever. Vejo hoje a minha irmã repetindo a mesma história com meu sobrinho. Eu mesma já dei de presente para ele dois livros, que ele adora, folheia e quer ler. Minha irmã e eu já lemos para ele as histórias, mas ele já quer ler - e ele tem 3 anos apenas. Ele também já "finge" que escreve em um caderno. Viu um desenho animado em uma TV educativa onde o personagem principal é um menino que tem um diário e pediu para a minha irmã comprar um para ele, onde ele desenha e rabisca. Já vi que vai ser mais um na família a aprender a ler precocemente e que será apaixonado por livros e pela escrita. A mim parece que é essa a fase decisória: antes da criança entrar para a escola. O problema é que poucos pais tem conhecimento desse contexto, poucos pais alimentam nos filhos a vontade de ler - e posteriormente, de escrever. Abraço, Ana!
As pessoas se soubessem como é importante decodificar a leitura teriam esse hábito diariamente. Adorei o seu texto. Fico triste quando uma pessoa chega e me diz que não gosta de ler. É uma pena, pois vivemos em plena era da informação, onde o conhecimento faz total diferença. Forte abraço.
Gostei muito desse texto. Leio jornais, revistas e romances. Mas agora estou fazendo faculdade de direito e preciso desenvolver o hábito para esse tipo de leitura, com palavras às vezes mais difíceis. Mas eu chego lá.
Fui ler seu texto por achar que haveria referência a uma antiga coleção chamada "Para Gostar de Ler", onde havia contos de autores consagrados como Rubem Braga, Drummond, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, voltados para leitores adolescentes. E foi através desta coleção que eu realmente comecei a "gostar de ler"... Você descobriu a poesia, eu, os contos. Onde foram parar essas pequenas joias que iluminaram minha infância/adolescência? Será que só eu sinto falta delas?