A primeira cena do filme Bruiser (George Romero, EUA, 2000) é um close fechado de um copo d'água. O enquadramento tipo "lente de aumento" continua: despertador, chão de madeira, torneira, gota d'água, gilete. A cena cotidiana vira uma sucessão de imagens desconcertantes. O que vai se seguir é uma mistura de crítica social e psicológica, composta com esmero na fotografia e na trilha sonora envolvente.
À primeira vista, Bruiser não parece o filme típico de Romero, o veterano diretor de filmes de horror "cult". A surpresa é só para quem não conhece Romero. Filmes como A Noite dos Mortos-Vivos (68) não são simples fitas de terror. Conflitos sociais e individuais transitam pela tela tanto quanto os zumbis. Romero diz que o ponto de partida de seus filmes é sempre uma idéia que quer discutir. Personagens, enredo e cenário surgem depois, a serviço dessa idéia original.
Bruiser, seu filme mais recente, ainda não lançado em circuito comercial, conta a história de Henry Creedlow (Jason Flemyng), jovem na rota da "vida perfeita": emprego badalado numa revista moderna, mulher bonita, enorme casa de subúrbio tipo Alphaville. Mas Henry ainda não chegou lá. Seu carro é meio velho, e ele tenta, sem sucesso, passar do cartão de crédito "Gold" para o "Platinum" - para satisfazer a mulher, justifica, entre sapos engolidos na redação.
Pressionado, incapaz de corresponder aos modelos pelos quais tenta se definir, Henry perde os traços de sua identidade. Entra em cena o Romero sobrenatural: Henry perde a cara. Suas feições se dissolvem numa máscara branca, inerte, o que dá o sinal para sua mudança (e para uma boa dose de cenas de sangue e ação). Henry reconquista sua identidade quando, em vez de reprimir, deixa extravasar seus impulsos agressivos.
Em Bruiser, o terror é sutil. O pacato Henry está na fila, esperando o trem, quando é atropelado pela massa de pessoas que passam à sua frente. Subitamente, irado, joga uma dessas pessoas sob o trem. Mas o susto repentino não passou de devaneio. Por isso, o terror é maior: o impulso cruel está dentro dele. E se um dia acontecer de verdade? A fronteira entre impulsos reprimidos e realidade vai se romper à revelia do controle consciente de Henry. O terror está no fato de que ele não é um psicopata: Henry é um homem comum, de boa-fé, poderia ser qualquer um de nós.
Vários dos temas de Bruiser haviam aparecido em outros filmes do diretor. A crítica à cultura de consumo está em Zombie, o Despertar dos Mortos (78), em que zumbis aterrorizam um shopping center. O tema da agressividade latente foi explorado em Instinto Fatal (88), em que um macaco capta e concretiza desejos destrutivos de seu dono paraplégico.
O diretor esteve aqui em Rochester (NY), há umas duas semanas, na estréia local do filme. Carismático, de porte alto, cabelos grisalhos compridos - é impossível resistir quando diz, veemente, que seu próximo filme é sobre "ignorar o problema". Ouvi a frase e, com as mazelas do Brasil na cabeça, pensei: "É isso mesmo! Não se pode ignorar o problema!". Romero continuou: "Mas aí os produtores respondem, 'problema? que problema?'". Ocorre que era sobre os sem-teto mesmo que Romero estava falando.
O filme tem um site oficial. E enquanto o filme não chega, recomendo alugar um dos "clássicos" de Romero. Quem sabe, dá para entender por que ele diz que, afinal, a condição social dos seus mortos-vivos não é tão distante assim da dos sem-teto…
É deveras interessante o trabalho de tão notável diretor como George A. Romero.
Sintetiza-se o brilhantismo de Romero, quando no remake de "A noite dos mortos vivos" da década de 80, a personagem principal diz: "Os zumbis somos nós, nós é que somos monstros, eles só querem paz e comida".