Clichê é um termo não tão conhecido entre o público em geral, mas um conceito absorvido por qualquer leitor, espectador ou ouvinte razoavelmente atento. O garoto que vai num filme de ação já sabe que o herói musculoso vai apanhar muito, mas não morrerá. A senhora entra na fila da comédia romântica da hora com a certeza de um final feliz. E assim a indústria cultural se realimenta com milhares e milhares de histórias que, na verdade, são a mesma história. Até que haja o esgotamento dos clichês. Ou o revezamento deles. Filmes de bangue-bangue com índios bandidos ficaram décadas atrás. Seriados de guerras estrelares só voltam às telas como déjà-vu. Músicas de dupla sertaneja pararam no fim dos anos 90. E assim vai.
Todo este nariz de cera para tentar compreender a Globo e suas centenas ou milhares de novelas. Imagine você ter de produzir tantas e tantas histórias iguais e diferentes ao mesmo tempo. Iguais porque se trata de um gênero específico, uma fórmula conhecida, testada e aprovada por milhões de brasileiros. Diferente porque precisa reatrair a atenção dos que ficaram pelo capítulo cem da novela anterior, precisa pôr na vitrine novos rostos e vender novas ideologias.
É exatamente no diferente que pode surgir algo interessante. Sim, há novelas (ou pelo menos aspectos de algumas novelas) interessantíssimas mesmo para quem já trocou a superficialidade da TV pelo cinema e/ou pelo livro. O Clone nos tirou o medo do islã, Vale Tudo traduziu o sentimento de uma época collorida, Laços de Família narrou com algum bom gosto o dia-a-dia da nova burguesia carioca, Malhação, na sua primeira fase, surpreendeu ao revelar novos valores da juventude multifacetada, Vamp deu uma cara brasileira aos mitos nórdicos, e isso sem falar naquelas novelas que conheço de ouvir falar, como Escrava Isaura, O Bravo, etc.
Aí surgem as vinhetas de Bang Bang, com a promessa de ser mais uma igual-diferente. Por que uma igual-diferente? Primeiro, pelos atores. Segundo, pela proposta narrativa.
(Pra não dizer que não falei dos atores, fiquei no mínimo curioso para ver o que Fernanda Lima e Sidnei Magal eram capazes de fazer na nova função e por que Paulo Miklos se exporia tanto.)
Mas o que interessa aqui é a proposta narrativa. Há tempos a Globo universaliza os temas e, mais recentemente, os cenários. Não são visitas eventuais do elenco a algum cartão postal. Não. É a simulação de que a história se passa no Marrocos (O Clone), nos Estados Unidos (a recente América) ou mesmo num país fictício (Kubanakan). Só que Bang Bang pegaria emprestado não apenas o cenário do oeste norte-americano como a cultura, os clichês e os valores do oeste norte-americano, provavelmente parodiando a clássica luta dos mocinhos e bandidos.
Montada a cena, atores curiosos, cenário inédito, vamos ao jogo. E aí os clichês se acotovelam.
Apesar de parodiar os clichês dos filmes de bangue-bangue, em vez de repeti-los, a novela não se preocupa em usar a exaustão os próprios clichês das novelas. Há o protagonista-mocinho com sede de vingança que encontra na filha do vilão um grande amor. Há homens se fazendo de mulheres. Há um amor mal resolvido entre a viúva do detetive e o malvado fundador da cidade. Há prostitutas lindas, alegres e coloridas. E assim por diante.
Para fazermos justiça com o criador da trama, Mario Prata (foi o autor da novela até pouco tempo atrás), é preciso pensar na sua tentativa de parodiar os próprios clichês dramatúrgicos. Nesse caso, a inclusão de tantos elementos óbvios na novela seria, também, uma forma de parodiar. Mas aí o espectador será o gato correndo atrás do rabo. Porque a novela se propõe um fim em si mesmo, uma comédia da própria história. Como alguns filmes hollywoodianos têm feito, e talvez Shrek seja o mais bem resolvido deles.
Acontece que, ao não se levar a sério, a novela perde o que John Gaarder, escritor e teórico da literatura, chama de sonho ficcional. Nem o menos exigente telespectador agüenta que Diana se apaixone por Ben apenas porque o rapaz foi macho o suficiente para exigir que lhe dessem carona na diligência. Nem que dois moribundos, à beira da morte, se levantem da cama para matar um ao outro com as próprias mãos, e acabem morrendo ali, juntos, abraçados.
De certo a novela vai adiante nesse ritmo frenético. Kubanacan e O Beijo do Vampiro já foram assim, não se levavam a sério. No caso de Bang Bang ficam, pelo menos, algumas tentativas curiosas, como a de mostrar a invenção do presente: a cena em que o médico local faz a primeira transfusão de sangue deve ter muito de impropério médico, mas é divertida. A "abdução" do personagem Zorro para dentro da novela também é algo novo e que pode funcionar, assim como a figura emblemática de Paulo Miklos se esforçando em fazer caretas.
Resta saber quando as novelas irão evoluir além da narratividade. Quando, além de dinâmicas e bem produzidas, serão minimamente profundas. Quando irão parar de vender as mesmas ideologias do tempo da vovó e da mamãe. Ou quando, de tão repetitivas e iguais a si mesmas, farão o milagre de mandar crianças, adolescentes e adultos para fora da sala, gritando: "ora, vão ler um livro e não me encham!".
Resta saber qual de nós sacará primeiro a arma e vai disparar contra o televisor.
Gostei do seu texto. Já assisti várias novelas brasileiras, algumas excepcionais como O Bem Amado, Roque Santeiro. Não acho que o papel da novela seja levar o cidadão ao livro. Na verdade não acho lógico que uma emissora de tevê seja o caminho para a educação das pessoas... Já faz tempo que os valores, que são pregados na teve, são justamente o contrário daqueles de pessoas curiosas e inteligentes. Mas tem uma razão: o objetivo da teve é ter público e vender produto. Como o Brasil é cada vez menos formalmente educado, fica difícil atingir um mercado maior sem começar a reduzir a "qualidade" dos programas... Mesmo assim, quando Jorge Amado foi levado para tevê, eu não vi nenhum programa ou entrevista em que o cidadão dissesse: li Tieta e é tão bom quanto a novela... Quem tem o papel de educar o cidadão é a escola e a família. Agora imagine só, no Brasil de hoje, Lula se orgulha ao dizer que nunca leu um só livro de ponta a ponta... Mas que já bebeu muito goró. Num país assim, conhecimento e inteligência acabam em último lugar. Televisão é só reflexo de uma sociedade e jamais o motor por trás dela... Vide os EUA onde qualquer pessoa semi-sã evita assistir tevê antes das 8 da noite, pois os programas são podres. E ah, tem audiência. E, crime dos crimes, neste país as pessoas leêm muito, muito mesmo.
Olá, Ram, concordo com a maioria das ponderações. Só não disse que a TV incentiva o cidadão ao livro, e sim que a TV se abstém de ir além dos clichês de uma forma tão evidente que parece dizer: quer algo além, vá ler um livro. Como ironia, decerto. Porque o máximo que a maioria das nossas produções televisivas faz é pegar um texto literário, jogá-lo no liquidificador da indústria cultural e, depois de simplificá-lo, apresentar em horários tardios. Alguns funcionam, vide Os Maias. Outros são tristes adaptações.
Marcelo Spalding. Aprecio seu texto. Muito bom. Só que ultimamente muitas dúvidas andam me rondando a respeito de "repetição". Será que a maioria (totalidade?) dos escritores não escrevem sempre os mesmos livros? Os diretores de cinema (Woody Allen por exemplo) não fazem sempre o mesmo filme? Qual o caminho para buscar coisas diferentes? Talvez estudar história e ler biografias de pessoas interessantes. As novelas brasileiras me parecem que não saem muito desse padrão...
"O objetivo da teve é ter público e vender produto". Será q li direito isso, senhor Ram? Se essa for mesmo a lógica, Deus nos Acuda. TV não serve pra mais nada mesmo... Bom o texto, Marcelo. Bang-bang, q tento acompanhar na medida do possível, inova por trazer o faroeste para a novela, mas de fato o Prata encheu de clichês, invertendo alguns, reforçando outros. Mas com sua saída o q se pode esperar é uma decadência e intensificação da mesmice. TV pode e deve buscar o novo, como Hoje é dia de Maria, do LF Carvalho. Uma das poucas cabeças pensantes e q sabe filmar o diferente na TV brasileira.
Parabéns e abraço
Bela análise: os artistas estão se repetindo. Não sei se a arte, mas os artistas, sem dúvida. Talvez eu possa compreender isso como uma tentativa de afirmar identidade, marcar presença. Um filme do Woody Allen já é uma característica, uma marca. Sabemos o que esperar. Isso é bom ou ruim? Boa pergunta. Talvez se o Jô Soares parasse de se repetir, fizesse um belo romance. Então é ruim. Mas para que Saramago mudará seu jeito? Enfim, creio que a Globo poderia parar de se repetir porque pode --- isso pode ---, fazer belos trabalhos dramatúrgicos. Como tem feito bons filmes.