As interfaces do doutor Ladislao | Ana Elisa Ribeiro | Digestivo Cultural

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Quarta-feira, 9/11/2005
As interfaces do doutor Ladislao
Ana Elisa Ribeiro
+ de 4500 Acessos
+ 2 Comentário(s)

Muitos historiadores contam que a Rede, esta que temos hoje, é neta ou bisneta de uma rede militar chamada Arpanet. Já que não havia mais guerra (sei lá onde), podia-se usar aquilo para outra coisa, menos hostil, quem sabe para a comunicação entre civis de paz.

As interfaces são uma invenção tão ou mais inteligente do que "a coisa" em si. Sem a interface, especialmente o design centrado no usuário (e nas reações comuns dele), estaríamos ainda longe do computador.

Alguém aqui lembra do DOS? Era aquela interface de fundo preto, na qual a "navegação" dependia de o usuário saber uma linguagem específica do ambiente digital. Pouca gente se atrevia a aprender a se mover naquilo, e talvez por isso computador fosse "coisa de nerd". Só mesmo quem estudava aquele treco é que poderia se atrever nela.

Com o desenvolvimento da rede, também as interfaces foram sendo desenhadas com mais "inteligência", justamente para que se parecessem amigáveis ao usuário comum, ou seja, às pessoas que não se detinham nos estudos da computação ou das engenharias. O computador só deixou de ser visto como "coisa de nerd" quando as interfaces (essa "cara" que aparece para nós e onde navegamos) se tornaram mais fáceis e mais ajustadas a uma compreensão rápida para o usuário não-especializado.

Como é que um leitor analógico resolve se aproximar da máquina? Como é que ele aprende a lidar com ela? Por que não é mais tão comum alguém ter que gastar dinheiro fazendo um cursinho de Windows em escola especializada? Por que as crianças mal nascem e já são internautas? Por causa da interface, ó pá. Os designers de interface chegaram à conclusão de que, para que o usuário aderisse à máquina, seria bom que ele sentisse alguma coisa familiar nela. A adesão maior de usuários, além de ágil, configura o que se chama de "efeito de rede". E é claro que isso também deu lucro a alguém.

Em 1943, o então presidente da IBM, Thomas J. Watson, foi primoroso ao dizer o seguinte: "Creio que há um mercado mundial para uns cinco computadores". Nem a Mâe Diná faria melhor. O moço não imaginava com que fúria os meninos do Vale do Silício (Bill Gates e Cia.) pensariam e repensariam a máquina de computar (ou de ordenar, como dizem os franceses). Mais tarde, em 1977, Ken Olsen, presidente da Digital Corporation, afirmou: "Não há razão para qualquer indivíduo ter um computador em casa". O que ele não imaginava, então, era que esses eletrodomésticos (o status atual da máquina) se tornariam uma "mão na roda" para qualquer trabalho escolar!

Em geral, para quê as pessoas usam o computador? Que pacote de programas é indispensável? Provavelmente, alguém responderá, com segurança, o Office, que é aquele que vem com Word e Excel. Joguinhos e outros apetrechos costumam ser periféricos, embora também não de todo dispensáveis. O PC virou uma maneira mais econômica e bem-acabada de fazer tudo o que se fazia com lápis, caneta, calculadora e máquina de escrever. Não é? Mas quem continua tendo que pensar é o dono do PC. Ou não?

É aí que entra a internet, essa rede de espaço supostamente infinito, com possibilidade de abrir janelas também infinitas por meio de cada tela de computador logado. A interface WWW, como explicou Julio Daio Borges, aparece fácil e mostra ao usuário as coisas como elas são. Essa foi outra fase das interfaces: estudar uma maneira de o usuário saber que o que ele fez aparece na tela tal como será (a isso deu-se o nome de What you see is what you get, ou, em internetês, WYSIWYG).

Com a WWW popularizada, também ficaram famosos os motores de busca, que ajudam o usuário a encontrar o que ele procura. Antes de tudo, é preciso ter um objetivo e saber lidar com palavras-chave. Tendo esse conhecimento mínimo, os motores vão atrás da informação e oferecem ao leitor listas de possibilidades mais ou menos precisas. Nesse ponto, é necessária uma educação para o uso da rede. Não é incomum encontrar pessoas (especialmente as mais jovens) que acham que não precisam mais pensar porque o Google resolve tudo. Pesquisa na internet virou sinônimo de copiar-colar-imprimir-fazer uma capinha-entregar para a professora. Já deparei com descerebrados que não sabiam fazer uma pesquisa se não fosse pela palavra que ele tinha na cabeça. Vejam: se o menino queria saber sobre "bruxaria", ele só conseguia pesquisar pela palavra "bruxaria". Quando bloqueei o uso da internet e pedi a ele que pesquisasse em livros (dentro de uma biblioteca), ele rodou, rodou, fez cara de perdido e não soube navegar naquele ambiente real. Mexeu em estantes que nada tinham a ver com o assunto e veio me perguntar como poderia manipular uma enciclopédia. Respondi com uma paciente aula de interfaces inteligentes e antigos motores de busca: ordem alfabética, sumário, índice, paginação e procura. Se não há "bruxaria", é necessário pensar uma palavra-chave mais ampla ou menos ampla, conforme a estratégia de busca. Ok? Não, não está nada Ok.

Quando tive contato com a Internet, em 1996, só consegui perceber algum uso daquilo em salas de bate-papo. Mesmo chats podem ser bacanas se se souber fazer uso deles, ao menos para conhecer gente interessante. Depois disso, à medida que usei a máquina, aprendi mais coisas úteis, inclusive os motores de busca mais rápidos do que os de papel. Mas pensar, procurar, ter objetivos e agir com inteligência ainda são coisas que a máquina não faz pelo usuário. As interfaces são projetadas para aproximá-lo, mas não fazem por ele o que apenas uma boa relação de ensino/aprendizagem pode fazer.

Durante algum tempo, os apocalípticos resolveram soltar o boato de que a internet iria acabar com o livro e com outros impressos. Mas em vez de fazer na história um corte vertical, é só beber um pouquinho na fonte da História que a gente nota certas manobras que o homem não previu. O filósofo do virtual Pierre Lévy, um francês empolgadíssimo com a Rede, argumenta que quando Grahan Bell inventou o telefone, deu nos jornais que as pessoas não se visitariam mais e as redes sociais seriam desfeitas. Ah, que tolice. O mesmo filósofo aponta o crescimento em proporções geométricas do turismo no mundo, mesmo depois do telefone. Qualquer um de nós pode notar que a internet facilitou a formação de redes sociais (especialmente ligadas por interesses comuns) e o celular pode ser usado até no lugar da campainha estragada na hora de uma visita!

Olavo Bilac, aquele poeta brasileiro famoso por seus poemas calculados e certinhos, dizia, em 1901, que as revistas acabariam com os jornais. Talvez pelo tamanho mais cômodo, o papel melhor, a legibilidade. Mas não é necessário comentar nada para que fique claro que isso não aconteceu. Olavo Bilac, como adivinhão, é um ótimo poeta.

E assim se sucedem as trajetórias dos meios e dos sistemas de comunicação em relação aos seus criadores. E estão aí os livros, incontavelmente lançados; o mercado editorial a todo vapor; a internet cada vez mais alimentada e vitaminada.

Mas há que ficar claro que o princípio que guia designers e engenheiros já orientava os iluministas franceses de séculos atrás. Novidade, sim, são a interface, a eletricidade, a rapidez. O resto já estava aí, esperando para ser guarnecido de outras tantas tecnologias em stand-by. Diderot e Dalambert, os coordenadores da Enciclopédia, queriam fazer um livro que ajuntasse todo o conhecimento do mundo. Muito antes, a idéia de existir uma biblioteca universal já fazia aniversário. Não faltam contistas que mencionam lugares fantásticos onde se armazenam os saberes. Mas, para fazer alguma coisa boa com isso, é preciso saber buscar, saber pensar, saber procurar. Isso a gente aprende lidando com a interface e lidando com pessoas que nos ensinam.

A Internet, de certa forma, realiza, em parte, a idéia dos enciclopedistas. As interfaces amigáveis que conhecemos trabalham, todas, na "metáfora do livro". Tudo é ainda dentro do referencial do papel: as "páginas", a escrita, os formatos. E isso permite que um leitor não-usuário se sente diante da tela a tenha a sensação de que pode navegar. Tudo se parece com algo conhecido. Esse é o "efeito de rede", e é para o bem. Quando um engenheiro pensou a área de trabalho do Windows, o fez de forma a dar ao usuário a sensação de estar num escritório, com lixeirinha e tudo. Quer coisa mais fofa?

Também o poeta Décio Pignatari, num livro dificil de ler, conta da sucessão das artes e das culpas. Cada vez que surge algo novo, os boateiros disparam seus temores e põem culpas nas desgraças sobre as vilãs mais moderninhas. A fotografia deixou a pintura quase morta. Para quê pintar se é possível tirar um retrato, era o que diziam os toscos de plantão. Ora, pá, até eu, que não sou pintora, sei que tirar foto é outro lance, mesmo quando a foto é artística. Mas reconhecer a fotografia como arte foi outra história.

Quando a televisão pintou por aí, tudo o que existia antes seria arruinado, inclusive as pessoas. Em alguma medida, isso pode até ser verdade, dependendo do programa a que se assiste. No entanto, as tecnologias co-ocorrem, nem sempre concorrendo, certo? Por analogia, talvez a internet não acabe com o mundo.

E quando se fala em tecnologia, não é de se pensar apenas em coisas que se ligam na tomada. Antes da eletricidade também havia tecnologia, tchê. Friccionar uns pauzinhos para obter fogo é tecnológico pra caramba. A mudança que isso acarretou foi sentida logo. A história da caneta esferográfica (o bolígrafo) foi uma batalha insistente de Ladislao Biro, que vendeu a patente para os americanos Bic. Mas é tudo tecnologia, de ponta.

A internet faz 10 anos neste momento. Os princípios dela têm idade mais avançada. Nosso bebê virtual ainda tem muito que aprender. É preciso entender o seguinte: que estamos no início, apenas no início, da história desta nova tecnologia, se pensarmos em uma história de longa duração para melhor análise (como quer Roger Chartier, um historiador francês do peru!). E ainda precisamos aprender a conviver com a Rede e a educar as próximas gerações para que façam dela alguma coisa positiva, como aconteceu com o livro, o jornal, a revista, o telefone, a caneta esferográfica e outros aparatos. Bom lembrar que invenções bacanas e mal-empregadas viram facas de dois gumes. Não é? De qualquer maneira, bom saber que a WWW não foi feita para parecer um bicho de 7 cabeças. Basta olhar em volta e explorar.


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 9/11/2005

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
10/11/2005
17h32min
Amei, Ana. Fantástico!
[Leia outros Comentários de DaniCast]
11/11/2005
13h02min
Ana Elisa, te vi no Terça Poética no Palácio das Artes. Amei,em especial,o poema da lei da física, que já havia ouvido, falado por você, no Salão do Livro. Abraços.
[Leia outros Comentários de juliana]
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