COLUNAS
Quinta-feira,
5/1/2006
A dicotomia do pop erudito português
Andre de Abreu
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Tão mal divulgado quando o aniversário de morte de Tom Jobim, ofuscado pelas lembranças à morte de John Lennon, pensei encontrar um Via Funchal vazio na noite de 8 de dezembro. Mas, não. Nesta ocasião, uma casa praticamente lotada veria a única apresentação em São Paulo do quinteto português Madredeus, após três anos ausentes de nosso país.
Com um cenário simples restrito a uma cortina com a capa do penúltimo álbum, Um Amor Infinito (2004), a apresentação ganhava ares de um recital erudito dada a sobriedade do ambiente. Mas as semelhanças com a música erudita não se restringiam ao palco do grupo que já se intitulou como uma "orquestra de bolso". Assim como depois do primeiro movimento vem o segundo, em 1h30 de show o grupo seguiu praticamente à risca a ordem das músicas dos dois últimos trabalhos lançados pelo quinteto, o já mencionado Um Amor Infinito e Faluas do Tejo (2005).
Após 40 minutos de apresentação, um intervalo serviu para os músicos se recomporem e também para dividir conceitualmente o espetáculo, já que na segunda parte foram executadas apenas as canções de Faluas do Tejo. Com músicas exaltando Lisboa, a cidade-mãe do Madredeus, este trabalho marca simbolicamente um retorno às origens e uma resposta ao álbum anterior, que não agradou muito os fãs e a mídia especializada, talvez pelo excesso de sintetizadores em detrimento das cordas dos tradicionais violões, que agora voltaram em pleno vapor.
O repertório do álbum, e, consequentemente, do show, é de um lirismo para alguns até celestial, clima este reproduzido fielmente em cima do palco com ajuda de um trabalho de iluminação bastante apurado. Destaque para "O Canto da Saudade", uma legítima bossa lusitana. Aliás, o grupo não esconde a admiração pelo estilo brasileiro. Nesta vinda ao Brasil, Pedro Ayres, o líder da trupe, classificou a bossa como "a música mais bonita de todo o repertório cantado em português". Isso prova o porquê de tanta consideração com o nosso país; já em 1987, o primeiro álbum do quinteto, Os Dias da Madredeus, contava com uma canção intitulada "O Brasil". Além disso, o site oficial do grupo deu um destaque todo especial para as datas da turnê (ou digressão, como é utilizado em Portugal) brasileira com direito a um pequeno hot site, que foi praticamente a única fonte de informação para os fãs do grupo, já que poucos veículos da grande imprensa noticiaram a vinda do quinteto.
Sempre comentando o processo de criação antes de executar as músicas, Teresa Salgueiro, a voz do Madredeus, encantou a todos com sua simpatia e delicadeza. Apesar de já terem se passado quase 20 anos desde que foi descoberta por Pedro Ayres em uma tasca de Lisboa, Teresa ainda mantém a timidez e a presença de uma jovem iniciante. Mas bastam apenas poucos minutos de sua voz para termos certeza de que estamos diante de uma voz que em nada decepcionaria a falecida Amália Rodrigues.
Diversidade de ponta a ponta
A diversidade é um dilema que acompanha o grupo lisboeta desde sua criação, em 1985. Os fundadores do grupo, Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão, egressos de bandas do pop lusitano dos anos 80, acrescentaram a essas raízes na música pop o fado, o jazz e a bossa nova. O resultado disso é uma música praticamente impossível de se classificar, tanto é que os álbuns do quinteto são normalmente encontrados nas seções de world music das lojas de disco, principal destino dos grupos e bandas inclassificáveis. Uma rápida olhadela no público diversificado que preenchia a casa de espetáculos paulistana é uma prova disto. Era possível distinguir desde luso-descendentes a jovens "modernos", de senhoras portuguesas e crianças.
O que aparentemente poderia ser uma qualidade, às vezes não é. Uma amostra disso é como o Madredeus é visto pelos próprios portugueses. Os puristas do fado os consideram muito pop enquanto os fãs do pop os consideram eruditos demais. Essa dicotomia também atingiu a apresentação de São Paulo. Aqueles que foram em busca de uma apresentação de música pop se decepcionaram, pois a apresentação seguiu uma rigidez típica dos concertos eruditos. Apesar da ausência de partituras, todo o restante estava lá, músicos em trajes sociais, iluminação sóbria e canções executadas com a mesma perfeição e fidelidade das gravações originais. Improvisos, bises e a execução de sucessos antigos não tiveram lugar na apresentação do grupo, desapontando aqueles que esperavam ouvir um set de hits após tantos anos fora dos palcos tupiniquins.
A saudade em forma de música
Contradições à parte, o Madredeus conseguiu o feito de levar ao mundo o que há de melhor no fado português: o lirismo na voz suave e potente de Teresa Salgueiro, os belos e perfeitamente executados violões de Pedro Ayres e José Peixoto e a letras recheadas de melancolia, nostalgia e o culto aos heróis de outrora. Além do trio básico, a formação que esteve no Brasil ainda contou com o apoio do contrabaixo acústico de Fernando Júdice e dos teclados de Carlos Maria Trindade.
Aplaudidos de pé por longos minutos ao final da apresentação, o Madredeus cumpriu sua missão enquanto músicos, mas decepcionou toda uma audiência não acostumada a este tipo de show. Culpa da dicotomia do título deste artigo. O grupo atrai uma audiência popular e lhes entrega um concerto erudito.
Nota do Editor
Andre de Abreu é jornalista. Colabora quinzenalmente com o Jornal do Brasil, entre outras publicações.
Andre de Abreu
São Paulo,
5/1/2006
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