Se 2005 não foi um ano espetacular para o teatro em São Paulo, tampouco pode-se afirmar que ele deixou a desejar. Peças consagradas (e por vezes batidas) dividiram espaço com o experimental. Novos nomes, tanto nos palcos como por trás deles, começaram a ficar familiares ao público. Em suma, foi um ano bom.
A análise, em linhas gerais, é de que o papel do dramaturgo ganhou algum gás neste ano de 2005. Ocorre que existe no Brasil, há mais de 40 anos (e sobretudo nos últimos 20), um culto à figura do encenador. Culto, por vezes, exacerbado.
À exceção de alguns notáveis bastiões de resistência - e não me canso de citar neste aspecto o corajoso grupo TAPA, sob o punho forte do diretor Eduardo Tolentino -, pode-se perceber uma tímida porém crescente tendência de equilíbrio deste jogo. Em bom "economês": o cenário é de baixa, mas o viés é de alta.
Vamos, enfim, à lista do que de melhor aconteceu por aqui em 2005.
A tragédia das tragédias - Eis que o diretor Antunes Filho, depois de fazer um belíssimo trabalho com a Medéia, de Eurípedes, resolveu encarar outro monstro sagrado da tragédia grega: Antígona, de Sófocles. E ele, de novo, acertou em cheio.
Com um elenco afinadíssimo, capitaneado pelas atrizes Juliana Galdino e Arieta Corrêa, Antunes fez uma leitura particular e extremamente honesta do texto, que por si só já tem uma força que não encontra muitos paralelos na literatura dramática. A atualidade de Sófocles impressiona.
Alma russa - Muito bem-vinda foi a volta do ator Celso Frateschi aos palcos, depois de uma experiência à frente da Secretaria Municipal de Cultura. Frateschi respira teatro, e é muito bom no que faz. Sua volta não poderia ter sido melhor.
Ele encarnou um difícil monólogo, Sonho de um homem ridículo, baseado em um conto homônimo do escritor russo Fiodór Dostoievski. Nas mãos do sempre competente diretor Roberto Lage, Frateschi pôde dar asas a todo o seu talento - que não é pouco.
Vale ressaltar a coragem de escolher este texto, de uma relevância ímpar frente ao momento que o país atravessa. E festejar a inauguração de mais um palco preocupado com a qualidade e a não obviedade de seus espetáculos: o Instituto Cultural Capobianco.
Sensibilidade pernambucana - Este foi o ano para o público paulistano conhecer a fundo a obra de um dos mais talentosos dramaturgos brasileiros da atualidade: o jovem pernambucano Newton Moreno.
Para começar, sua obra-prima Agreste, que já havia arrebatado o APCA, permaneceu em cartaz na cidade por um bom tempo. Depois, ele estreou, com a Cia. Os Fofos Encenam, a ótima Assombrações do Recife Velho, baseada em livro homônimo do sociólogo Gilberto Freyre.
Por fim, a mesma companhia realizou uma mostra de seus trabalhos, que de Moreno incluíam a peça Deus sabia de tudo e não fez nada e mais leituras de outros dois textos.
Moreno tem um olhar sensível e aguçado para as indissiocrasias do ser humano. Seus textos têm uma poesia que comove e uma ironia cortante, sem nunca perderem de vista seu alvo: as contradições humanas.
Violência latente - Monique Gardenberg foi corajosa ao assumir a direção da peça Baque, de Neil LaBute. Depois de seu fragoroso sucesso no comando de Os Sete Afluentes do Rio Ota, resolveu encarar este difícil desafio. E deu certo.
Embora a grande estrela do espetáculo seja o próprio texto, de uma qualidade ímpar, quem rouba a cena é o ator Emílio de Melo. Ele encarna o executivo neurastênico da primeira das três histórias. Seu talento é arrebatador, vale por si só o ingresso.
Foco na atualidade - Dramaturgos modernos, que estão fazendo barulho lá fora, começam a ganhar espaço por aqui. É o caso de Kenneth Lonergan, autor de Essa Nossa Juventude. Uma "peça de formação". Ótimo trabalho da diretora Laís Bodanzky e do ator Gustavo Machado.
Outro bom (e inédito) dramaturgo que foi montado por aqui é Eric Bogosian. Prego na testa, do parlapatão Hugo Possolo e do diretor Aimar Labaki, é um verdadeiro soco no estômago. Teatro para incomodar.
A praça maldita - Os Satyros continuam seu corajoso trabalho de resistência na Praça Roosevelt. Agora com dois espaços (um ocupando o antigo Teatro Xis), são referência para quem quer um teatro diferente, fora dos padrões convencionais.
Os dois grandes espetáculos do ano ali foram Cosmogonia no. 1, de Rodolfo García Vasquez, e A Vida na Praça Roosevelt, de Dea Loher. O primeiro pela beleza e pela simplicidade, o segundo pela força do conjunto. É a tradição satyriana de dar voz aos excluídos.
Mais do mesmo - Outro ponto alto de 2005 foram os grandes espetáculos de anos anteriores que voltaram a ficar em cartaz na cidade. É triste ver montagens de excelente qualidade que saem depois de três ou quatro meses e não voltam mais.
Alguns destaques:
Aldeotas, de Gero Camilo, para mostrar que bom teatro é contar boas histórias. Mais simples, impossível.
Os Sete Afluentes do Rio Ota, que impressiona pela grandiosidade, pelo ótimo texto e pela interpretação pra lá de talentosa da atriz Maria Luísa Mendoça.
Avenida Dropsie, da Sutil Companhia de Teatro. Belíssima homenagem ao mestre dos quadrinhos Will Eisner.
Mire Veja, da Companhia do Feijão, baseado no livro homônimo de Luiz Ruffato. Pequenas grandes histórias de gente comum. Grandes atores.
Agreste, já citado, de Newton Moreno. Porque falar de amor nunca deixa de ser importante.
O também citado TAPA, além da mostra do início do ano, seguiu com dois excelentes espetáculos: A Mandrágora, de Maquiavel, e A Importância de Ser Fiel, de Oscar Wilde. Elegante, correto, belo. Além da temporada-relâmpago da ótima Major Bárbara, de Bernard Shaw.
Falando em mostras, duas boas e duas excelentes passaram pela cidade. O Cemitério de Automóveis mostrou diversas faces do trabalho de Mário Bortolotto. Já a Cia. Fraternal deu corpo e voz ao caipira, e destaco a peça Eh, Turtuvia!.
A Cia. do Latão mostrou que é um dos principais grupos de teatro em atividade por aqui. O ponto alto foi a peça Visões Siamesas, baseada em um conto de Machado de Assis. A grande mostra do ano, porém, foi do Grupo LUME, de Campinas. Me arrisco a dizer que o LUME é o maior grupo de teatro deste país. Com um trabalho exaustivo de pesquisa e um treinamento rigorosíssimo, o resultado atingido pelo grupo é algo impressionante. Café com queijo é tão belo quanto notável pelas atuações.
Destaco outros dois belos espetáculos que passaram por aqui. Por Elise, com a talentosa Grace Passô. Um retrato intimista e profundamente poético. Rara beleza - não levou o APCA à toa. E de Natal veio o grupo Clowns de Shakespeare com Muito barulho por quase nada. A alegria de se fazer teatro.
A corrosão do humano - O grande espetáculo do ano, na modesta opinião deste que vos escreve, foi Estação Terminal América, do grupo Volksbühne, de Hamburgo, sob a batuta do polêmico Frank Castorf.
O espetáculo é baseado em Um bonde chamado desejo, clássico de Tenessee Williams. Lamentavelmente, foram só duas apresentações em São Paulo, depois de fazer barulho no Festival de Porto Alegre. Simplesmente lindo, um desbunde.
Castorf conseguiu arrancar de seus excelentes atores as menores sutilezas do texto de Williams. Risos, choro, incômodo, afeição - o diretor, com o espetáculo na mão, conseguiu tocar fundo na platéia. Inesquecível.
A grande atriz do ano foi Juliana Galdino, por sua brilhante atuação em Antígona, com o CPT e Antunes Filho. O crítico Jefferson Del Rios deu a melhor definição sobre Juliana: é de um "talento assustador". Impressiona pela força que imprime ao personagem. Arranca lágrimas.
Mas a escolha da APCA, que premiou Denise Weiberg por Oração a um pé-de-chinelo, não pode ser considerada injusta. Denise também é brilhante. E Marília Pêra também passou por aqui.
E o grande ator é Marco Nanini, que fez miséria com Um circo de rins e fígados, de Gerald Thomas. O texto é fraco, quase chato. Mas Nanini brilha, engraçadíssimo. Não é à toa que Gerald, um grande diretor, o escolheu. E fez a peça para ele. É, hoje, o maior ator do teatro brasileiro.
Ok, justiça seja feita. Paulo Autran também mostrou seu talento de sobra em Adivinhe quem vem para rezar. E Luís Melo trouxe sua Daqui a duzentos anos, baseada em Tchekov.
Termino, o ano e a coluna, felicitando mais uma vez a Fundação Nobel pela escolha de Harold Pinter para o Prêmio Nobel de literatura. O velho Pinter merece.
É, meu caro Guilherme, se o teatro do Rio de Janeiro não tomar rumo, ficará conhecido só pelo besteirol comumente! As pérolas vieram das plagas paulistanas.