Você se lembra de Corra, Lola, Corra? A mesma dupla - o diretor Tom Tykwer e a atriz Franka Potente - está em A Princesa e o Guerreiro (Alemanha, 2000), em cartaz aqui nos Estados Unidos. Com Tykwer não dá para usar o clássico "se você gostou de..., não perca este...". Não é que a obra do cineasta não tenha a sua marca. Muito ao contrário - o acento do diretor sempre está lá, para quem quiser ver: no rigor compositivo, na sensibilidade e atenção às minúcias emocionais dos personagens, na obsessão por temas como destino, coincidências e acaso. No entanto, a maioria das pessoas ainda associa Lola ao grafismo das cenas, à estética pop-quadrinhos e ao humor quase histérico. Ainda bem, no entanto, que Tykwer não se prende a fórmulas - nem às próprias.
Mantendo a identidade criativa do diretor, cada um de seus filmes explora temas e estéticas diversas, de modo sempre surpreendente. Foi assim com Wintersleepers - Inverno Quente, a história delicada e emocionante de um grupo de pessoas que têm suas vidas subitamente interligadas por um acidente de carro numa gelada cidadezinha de montanha. Nesse filme, a estilização que é óbvia em Corra, Lola, Corra aparece em registro sutil - por exemplo, na identificação de cada personagem com uma cor básica. A garota passional e afetuosa só veste vermelho; sua amiga séria e sensível só usa verde; o homem misterioso com problemas de memória só usa preto... o recurso é tão bem utilizado que um amigo meu, que assistiu ao filme comigo, nem percebeu. O mesmo fenômeno ocorre agora com A Princesa e o Guerreiro, em que vários temas e modos dos filmes anteriores aparecem transformados.
De uma certa forma, dá até para dizer que A Princesa... é um cruzamento entre Lola (1998) e Wintersleepers (1997). Corra, Lola, Corra é um filme frenético e estimulante, em que até mesmo a morte aparece com leveza, não apenas pelo recurso narrativo dos três finais diferentes como também pelo tratamento formal. Wintersleepers, por sua vez, é denso, suave, lento; triste e esperançoso ao mesmo tempo. Wintersleepers destila dor e encantamento; em Corra, Lola, Corra não há tempo para sentir nada que não a vertigem "montanha-russa" do filme. Em A Princesa e o Guerreiro, há ação de sobra, seqüências vertiginosas, socos no estômago (do espectador e dos personagens). As pessoas da platéia cravam as mãos no braço da poltrona, tensas; algumas não contêm o grito de susto ou espanto. No entanto, a história do filme é uma história de amor: de dor e de encantamento, costurada com fios sutis mas certeiros. E quanto mais se pensa na história, mais bonita e sensível ela parece.
Em suma: é filme de deixar as pernas bambas de tanta ação, mas ao mesmo tempo é filme de fazer pensar depois que a sessão acaba.
A admirável Franka Potente, a ruiva Lola, agora é chamada Simone e está de cabelos loiros. Seus traços fortes e sua interpretação intensa carregam um pouco da Lola para este filme, mas a sensação de familiaridade inicial logo se dissolve diante de mais uma caracterização forte. Simone, ou Sissi, como é chamada (não há de escapar a associação com os filmes sobre a princesa Sissi, que virou imperatriz, interpretada por Romy Schneider), é enfermeira num manicômio. Sissi é afetuosa, atenciosa, magnética, rodeada pela corte de pacientes que a adoram.
De novo, Tykwer fala de destino. Em Corra, Lola, Corra, era a especulação sobre o acaso e sobre as "conjunções de fatores" necessárias à ocorrência de um evento. Por um lado, um questionamento do destino - como se o evento final, resultado de pura chance, não tivesse maior importância que os demais possíveis desfechos. Por outro lado, a confirmação da "força" do destino: afinal, o desfecho não estava nas mãos de Lola nem ao alcance de uma decisão racional, mas determinado por uma conjuntura maior que vontades e indivíduos. Já Wintersleepers era estruturado pela coincidência - pelo fio tortuoso e inesperado que ligava as vidas dos vários personagens. Poderia parecer um simples elogio do acaso - o destino das pessoas, no entanto, engendrava-se tanto por fatos externos como por suas decisões pessoais e sua conduta.
A Princesa e o Guerreiro ecoa esses temas: acaso versus coincidência versus vontade autônoma. Um ato aparentemente isolado e sem conseqüência acaba por transformar a vida de Sissi e por ligá-la indelevelmente à vida de Bodo (o guerreiro). Esse ato, no entanto - a mão do acaso, a chance - não teria seu efeito se não fosse potencializado por uma série de coincidências e pela intervenção decidida e voluntariosa de Sissi.
O ato está no começo do filme - uma carta que Sissi recebe de Meike, uma moça misteriosa (não dá para saber se é amiga, namorada ou parente de Sissi) que mora numa mansão encastelada num penhasco à beira-mar. Se o título do filme sugere romantismo medieval, a imagem confirma a impressão... como sempre, porém, a estilização é sutil, e, como nas cores de Wintersleepers, o tom épico e cavalheiresco pode passar despercebido sob a roupagem naturalista e discreta do filme.
Vou resistir à tentação de contar o que acontece depois - a surpresa dos fatos e cenas é sempre uma das delícias de um filme. Digo este tanto: Tykwer mistura situações delicadas e comoventes com cenas chocantes e violentas; trata os personagens, inclusive sua Sissi, de forma quase impiedosa (e, se você tem estômago sensível, prepare-se para uma aflitiva cena de traqueostomia); e acaba até enfiando uma cena em que um personagem corre no meio do trânsito pesado (citando seu próprio Lola...). A Princesa e o Guerreiro funde conto-de-fadas e filme policial; a mistura, longe de indigesta, funciona. Mesmo porque os contos-de-fadas originais - estórias populares européias - primam tanto pela fantasia romântica quanto pelo terror e violência.
De todo modo, a platéia torce pela heroína, que, além de princesa, revela-se a verdadeira guerreira da história. Não adianta destino, coincidência ou ser "feito um para o outro" se não houver esforço e luta. Os apaixonados que assistirem ao filme hão de sair convencidos de que, sim, devem lutar e dar a cara a bater...