Era início de uma madrugada qualquer de setembro de 1998. Eu e dois grandes e queridos amigos — Ram Rajagopal e Daniel Malaguti — havíamos ido ao cinema, como fazíamos religiosamente todas as semanas, e sentado, a seguir, para degustar os inigualáveis sanduíches do Cervantes, tradicional bar-restaurante situado no começo de Copacabana, quase na fronteira com o Leme. Naquela noite, nossas conversas gravitaram em torno de um único tema: éramos pessoas cheias de idéias e sentíamos falta de um canal para expô-las e debatê-las. Como fazer isso? A princípio, chegamos a cogitar publicar um fanzine, mas a proposta foi automaticamente abortada por razões inúmeras, dentre as quais a inviabilidade do projeto, que requeria uma logística que nós desconhecíamos e um investimento que não sabíamos ao certo se estávamos dispostos a fazer. No entanto, o desejo de organizar as nossas idéias e dar-lhes uma vida além da mera oralidade coloquial, persistia. E, foi então, que Ram aventou a possibilidade de criarmos um site na internet com esse propósito.
Vivíamos, então, os primórdios da internet, o célebre período de euforia que precedeu o estouro da "bolha", no ano 2000. Era um momento chave no Brasil, em que a rede mundial de computadores começava a se popularizar e a estar cada vez mais presente nos lares e empresas do país. Foi, precisamente nessa ocasião — final de 1998 — e de forma coincidente e quase simultânea que tanto eu como a maioria dos meus amigos e muitos dos meus familiares aderimos à internet. Aos poucos pude descobrir os encantos desse mundo novo, que a cada semana parecia maior e mais rico. Os novos sites pipocavam. Jornais abriam ou aprimoravam suas edições on-line e o e-mail consolidava-se como um poderoso e eficiente meio de comunicação. Abrir um site "nosso", portanto, parecia a opção mais viável, além de estar em total conformidade com as demandas deste notável e promissor novo meio de comunicação. Foi naquela mesma noite, enquanto caminhávamos pela noite fria da rua Barata Ribeiro em direção a um ponto de ônibus após sairmos do Cervantes, que fechamos questão quanto à abertura do site e, imediatamente, decidimos como ele se chamaria: Os Estertores da Razão. Nascia, naquele momento, o que viria a se tornar, a meu juízo, uma das mais vibrantes comunidades da internet, que acabou indo muito além do site, convertendo-se num rico e efervescente fórum de debates.
A idéia de batizar com esse nome um tanto excêntrico a nascente confraria, teve dupla motivação. "Estertores da Razão" tanto pode sugerir uma crítica à nossa atual sociedade, dominada pela barbárie, pela ignorância e pela irracionalidade quanto evidenciar o precário estado mental dos seus associados, que estariam nos limites da sanidade, isto é, com a razão nos estertores. Convenhamos, a segunda opção é bem mais divertida.
O site foi ao ar em outubro de 1998, mês de eleições presidenciais e a maioria dos primeiros artigos acabaram focados na corrida eleitoral. Hospedados num domínio da Geocities, os Estertores da Razão tiveram a sua primeira edição dividida em cinco colunas, que eram assinadas por mim, Ram Rajagopal, Rafael Lima, Daniel Malaguti e Luis Arthur "Zarthur" Pinto. Havia, também, a campanha "Exporte-se", em que conclamávamos os leitores a mandar sugestões sobre personalidades brasileiras que eles gostariam que fossem "exportadas", ou seja, expulsas para bem longe do Brasil. Logo depois, Ram mudou-se para os Estados Unidos, onde foi fazer sua pós-graduação e, por conta disso, passamos todos a usar mais freqüentemente o e-mail para nos comunicar. As mensagens coletivas, assinadas por um e endereçadas a todos tornaram-se comuns, muitas delas levantando alguma questão que era imediatamente motivo de debates virulentos. A essa altura, o site havia sido deixado em segundo plano e os "estertores" concentravam-se mais nas discussões virtuais, que cresciam em quantidade e na profundidade dos temas abordados.
Em abril de 1999, durante a IX Bienal do Livro do Rio de Janeiro, reencontrei por acaso o amigo Rafael "Gaúcho" Castro, que me passou seu e-mail e foi instantaneamente incorporado ao fórum. Logo a seguir sua namorada e futura esposa, Milene Costa também aderiu aos Estertores. O ano de 1999 marcou a consolidação dos debates. Os e-mails eram, a cada mês, mais numerosos. Os assuntos pareciam inesgotáveis: iam de filosofia à informática, passando por política, literatura e costumes. No segundo semestre de 1999, dada a necessidade de se ordenar o fórum, resolvemos, de comum acordo, cadastrá-lo no Egroups que, mais tarde, tornou-se Yahoo Groups. Foi também nesse período de 1999, que novos membros, como Alexandre Barreiro, Loris Schuchmann, Iriel Bueno e Silva Filho e Regina Mas juntaram-se a nós. Na virada de 1999 para 2000 o fórum recebia uma média de oitocentas mensagens por mês e era responsável pelo surgimento de um "jeito 'estertor' de ser". Ser um membro dos Estertores da Razão era, por exemplo, valer-se de um vocabulário próprio que incluía termos como "ego não-individuado" e "redutor de velocidade" para se referir a certas situações do cotidiano. Pura maluquice, pensariam alguns. Do mesmo modo, os "estertores" promoviam animadíssimos encontros mensais no Rio de Janeiro, que eram (e ainda são) chamados de "Rodadas Reais", uma alusão ao caráter "virtual" da comunidade. Ao menos uma vez por mês as conversas aconteciam ao vivo, ou seja, eram "reais", fora do ambiente da internet.
Foi, no entanto, no ano 2000, que os Estertores da Razão conheceram o seu auge. 2000 marcou o ingresso no time de debatedores, da agente literária Ana Maria Santeiro e dos escritores Zé Rodrix e Marcia Frazão. Em junho de 2000, os Estertores da Razão, cuja formação original era de cinco pessoas, contavam com vinte e um membros e recebiam mais de cem mensagens por dia, mais de três mil por mês. Os debates consumiam horas diárias e multiplicavam-se de uma maneira assustadora. Onde arrumávamos tanto assunto? Os Estertores da Razão tinham-se transformado numa máquina de e-mails e desligar-se das discussões não era fácil. Lembro-me de uma viagem que fiz à Europa naquela época e por mais de uma vez flagrei-me em franco desespero por não contar com um computador por perto para acompanhar e participar dos debates. As Rodadas Reais tinham-se tornado ainda mais freqüentes e a cada quinze dias, havia um encontro num local diferente, que podia ser uma jam session no finado Satchmo Bar, uma pizza casual na Cobal do Humaitá, um solene chá das cinco à moda inglesa na tradicional Confeitaria Colombo ou um jantar requintado no restaurante Bazzar, de frente para a Lagoa Rodrigo de Freitas. Àquela altura, o site com os primeiros artigos já havia saído do ar. Os debates pegavam fogo e estendiam-se também às Rodadas Reais. Para dar um exemplo, uma discussão acalorada sobre pedofilia, inspirada no namoro entre um ator conhecido e uma modelo que era, na época, menor de idade (embora, visualmente, fosse uma mulher feita) prolongou-se por cerca de cinco semanas consecutivas, sem que, ao cabo, se tivesse chegado sequer próximo de um consenso. Também o eterno embate ideológico entre direita e esquerda (e, qual o significado e o sentido de uma e outra tendência nos dias atuais) e temas como política internacional, indústria cultural e religião foram abordados exaustivamente e, volta e meia, retornavam à arena de debates, antes mesmo de terem saído dela. A maioria das mensagens tinha o humor, a acidez e o embasamento teórico como marca. Dificilmente uma questão era posta no ar sem que estivesse muitíssimo bem fundamentada e algumas respostas pareciam verdadeiros tratados, de tão extensas e detalhadas. E o "estertor" que se levasse muito a sério e não soubesse rir de si mesmo e das circunstâncias, não tardava a virar alvo da mordacidade e do sarcasmo dos demais. Além de tudo, o fórum nos deu a todos, creio, um razoável aprendizado sobre a realidade e nos ajudou a identificar a fronteira entre o sério e o ridículo, mostrando-nos que poucas coisas na vida são realmente importantes a ponto de nos incomodarmos com elas.
Após o extraordinário apogeu de 2000, os Estertores da Razão experimentaram um declínio a partir de meados de 2001. Pouco a pouco as mensagens foram diminuindo em quantidade, até que em 2002 o fórum viu-se esvaziado, apesar de muitos dos membros permanecerem associados. Contribuiu para isso o advento dos blogs que, naquele ano, conhecia a sua popularização no Brasil e muitos dos "estertores" resolveram migrar para aquela nova e prática modalidade de comunicação. Foi quando Ram Rajagopal abriu o Cataplum, Rafael Lima, o Na Cara do Gol e Daniel Malaguti, o Bilhete do Caos, que passou, logo depois, a se chamar Observatório Solitário e mais tarde foi substituído pelo Notas da Jornada e, finalmente, pelo atual, Filosofia de Botequim. Houve também uma tentativa de se criar um blog dos Estertores da Razão, mas a idéia, por alguma razão, não vingou e acabou esquecida, embora a página permaneça no ar.
De 2002 a 2006 os membros dos Estertores da Razão mantiveram-se em contato e continuaram se encontrando e conversando, mas apenas como amigos, não mais como confrades de uma lista de discussão virtual. As coisas só começaram a mudar em 10 de janeiro de 2006, durante o lançamento do meu livro120 Horas, em São Paulo. Naquela noite, eu, Ram e Zé Rodrix nos encontramos e, após conversarmos e trocarmos algumas idéias, concordamos que era chegada a hora de reabilitar o fórum. Ram, imediatamente, assumiu o posto de moderador, que estava vago, mandou avisos aos membros e em fevereiro os debates recomeçaram, com enorme vitalidade, retornando aos níveis de 1999, com cerca de quinhentas/seiscentas mensagens mensais. Também as Rodadas Reais foram retomadas e a mais recente aconteceu durante um almoço num simpático restaurante da rua Gomes Freire aproveitando a presença de Zé Rodrix no Rio. Tudo aponta para um horizonte promissor, em que o fórum reocupará o lugar que lhe é de direito.
E, se alguém, algum dia, tiver curiosidade para saber como são os antológicos encontros da confraria dos Estertores da Razão, vai a dica: no próximo dia 18 de abril, a partir das 19h30, Zé Rodrix lançará, na Livraria Argumento, no Leblon, Rio de Janeiro, o seu novo romance Zorobabel: Reconstruindo o Templo (Editora Record) e os "estertores" estarão lá, marcando presença e fazendo barulho. Após os autógrafos, Zé Rodrix se retirará do salão para juntar-se à Rodada Real com os seus digníssimos confrades, afinal ninguém é de ferro e, após horas assinando livros, o autor precisa descansar o pulso, esquentar as idéias e pô-las na mesa, para que os demais as analisem e dêem partida no inevitável debate. Ah, como é boa e animada a vida estertora...!
Luis, para comemorar o seu texto que despertou ótimas memórias sobre o iniciozinho do nosso grupo, retornei a ler algumas de nossas antigas mensagens... O grande mérito dos Estertores é a amizade profunda entre seus integrantes, que atravessa a fronteira de ideologias e diferenças de pensamento... Somos capazes de discutir e aceitar críticas a nossa visão de mundo...
Hoje em dia, no Brasil, a observação crítica das próprias idéias, e o debate sincero e amigável anda em falta. Quanto mais um debate puramente baseado em idéias, e jamais em personalidades. Neste sentido, aprendi muito com nossos queridos amigos, que sempre puderam deixar suas marcas pessoais na mensagem, sem serem autoritários ou personalistas.
Esta capacidade de rir de si mesmo, e de conversar com humor, sarcasmo e ironia sobre temas "sérios" - colocados em um altar pela maioria das pessoas - deixa a lista como um dos grupos mais bacanas que faço parte. Vida longa aos Estertores! Ratis mortis, urubis pertis!
A leitura de seu artigo me fez voltar no tempo e sentir uma alegria - melancólica - não sei se existe isso, mas foi que o termos que encontrei para descrever minha sensação. Ingressei nos Estertores da Razão de forma meio enviezada, sem saber sequer do que se tratava. Conheci Luis Eduardo numa biblioteca onde ambos alugávamos livros. Conversa vai, conversa vem, trocamos nossos endereços eletrônicos e, um dia, recebi uma mensagem que continha o endereço dos Estertores. Gostei do nome e, como entrava em tudo o que aparecia na Internet, ingressei no grupo, sem ser convidada. Na época, ignorava inteiramente o funcionamento dos grupos e assustei-me ao ver minha caixa de mensagens, de repente, ficar lotada. No entanto, pelo teor das mensagens não foi difícil perceber que se tratava de um grupo de amigos e que eu "penetrara" no meio deles. Felizmente não fui expulsa e com isso pude estar em contato com jovens engajados, cultos e muito inteligentes. O melhor grupo que tive na Internet.