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Quarta-feira, 12/4/2006
Guimarães Rosa: linguagem como invenção
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 13500 Acessos

Grande Sertão: veredas. Em lugar de alguma coisa, restam palavras. Não se pode pensar Guimarães Rosa de outra forma. Por isso, uma narrativa tradicional não lhe serve de nada, pois apenas o levaria às limitações do pensamento lógico, científico e da análise factual ou objetiva do mundo.

Imagine-se o início do Grande sertão: veredas escrito de forma normal: "Não foi nada, não. Os tiros que o senhor ouviu não foram de tiroteio. No quintal, lá embaixo, perto do córrego, distraio-me com tiro ao alvo, para me divertir. Faço isso todos os dias, porque gosto, já desde a minha infância. De lá me chamaram por causa de um bezerro; um bezerrinho branco que nasceu meio mutilado, com uns olhos que nem parecem olhos, e uma cabeça que parece de cão."

Agora, compare-se o original: "Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não. Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, olhos de nem ser - se viu -; e com máscara de cachorro."

Evitar a realidade ao máximo e investir na criação de uma linguagem que se basta a si mesma, eis o princípio da arte de Guimarães Rosa. Descrever, como apresentamos na versão normal do trecho do livro, uma criatura disforme com olhos revirados e cabeça de conformação anormal pode ainda ser concebida pela imaginação do leitor e mesmo admitida sem hesitação. Mas, um bezerro "com máscara de cachorro" e com olhos, cuja descrição é deliberadamente evitada ("de nem ver - se viu") já não se enquadra em um simples relato de fatos; caracteriza, isto sim, a precariedade do real sob a força da linguagem.

Óbvio: Guimarães Rosa insere-se numa tradição literária que não quer dar continuidade a uma técnica narrativa tradicional; o que lhe interessa é a idéia de invenção possibilitada pela destruição de formas semânticas e sintáticas tradicionais.

Em Notas sobre a literatura dizia T. W. Adorno: "Se o romance quiser continuar fiel à sua herança realista, e dizer o mundo como realmente é, deverá renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, contribui apenas para favorecer a sua função de produzir ilusões." Isto é correto, pois a moderna consciência literária tem a certeza de que os fenômenos da realidade não podem ser abarcados como um todo. E Guimarães Rosa está na mesma clave de James Joyce, que reconhece de forma inequívoca a essência inexoravelmente desconexa da vida, e percebe que o objetivo da literatura é rejeitar o mundo das aparências enganosas, a fim de contestar as tradicionais concepções da realidade. Para isso é necessário, antes de mais nada, idealizar uma linguagem inteiramente pessoal, oposta à linguagem concatenada de uma realidade enganosa. Considerações dessa natureza fizeram com que Guimarães Rosa criasse sua linguagem típica, forjando vocábulos inusitados, resultando num manancial imagético surpreendente.

O modelo de linguagem criado pelo autor de Grande sertão, com recursos expressivos adequados, contrapõe-se a toda e qualquer afirmação categórica, a toda e qualquer certeza estabelecida. A não ser, claro, a da possibilidade de uma linguagem inventiva, esta sim, o fato real que o interessa.

"O que falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. (...) De mim, toda mentira aceito. O senhor não é igual? Nós todos. Mas eu fui sempre um fugidor. Ao que fugi até da precisão da fuga. (...) Possível o que é - possível o que foi. E - mesmo - possível o que não foi".

Novamente recorremos a T. W. Adorno que dizia que "inexiste obra de arte moderna de algum valor, que não se deleite com dissonâncias e desarticulações." E é o que Guimarães Rosa faz o tempo todo, fazendo da indeterminação o princípio de sua própria linguagem. Pois sabemos, desde Mallarmé, com seu desejo de escrever um livro sobre nada, que a linguagem se tornou uma coisa autônoma, vindo a ser cada vez mais independente do fato real. Melhor: ela é o fato real.

O uso do enfileiramento de partículas de orações através de amálgamas de vocábulos isolados, bem como por meio de justaposições de palavras provenientes de diversas línguas e regiões (elementos lingüísticos indígenas do tupi-guarani com o português) faz com que a riqueza da arte de Rosa derive das experiências no campo semântico e sintático que acabam por se constituir como uma reflexão sobre a própria insuficiência da nossa linguagem tradicional.

Antigamente o romancista procurava estabelecer, desde o início, uma impressão de realidade, multiplicando dados e datas, que pudessem contribuir para dar ao seu relato o caráter de "cópia" da realidade. No romance moderno o mundo desintegra-se, porque a linguagem também se desmorona do seu sentido habitual. A realidade é fingida, diferente da realidade fictícia.

A literatura de Rosa não pretende chegar a nenhuma observação segura, como não deseja oferecer pontos de referência definitivos ou seguros. Por isso, sua linguagem também não é segura. Na sua criação o autor conta com um estilo próprio, ao qual subordinará todos os demais aspectos. Este estilo, por sua vez, obedece às suas próprias leis, que lhe permitem filtrar de tal forma o idioma específico, que este, uma vez libertado das amarras convencionais, vem a tornar-se indício de algo totalmente diferente.

E como um mestre da linguagem como um fim em si mesma, para além da realidade objetiva, Guimarães Rosa dá um banho de invenção, de surpreendente invenção: "O espaço é tão calado, que ali passa o sussurro da meia-noite às nove horas." Aqui, numa frase, a destruição do tradicional conceito de tempo. O autor sabe que o tempo que divide nossas experiências em horas, não corresponde à realidade; o tempo constitui apenas uma ilusão ordenadora de nossa razão, uma imagem imposta, que de forma alguma equivale à nossa realidade psíquica.

A visão da vida e a visão da linguagem em Rosa se misturam. Pois para ele, "a vida é um mutirão de todos, por todos remexida e temperada", e forçosamente a linguagem que descreve essa vida tem de ser remexida e temperada.

Parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade, em Guimarães Rosa, "Minas não há mais, o que há é apenas a linguagem."

Termino com uma pérola: "Lei é lei? Loas! Quem julga já morreu. Viver é muito perigoso, mesmo."


Jardel Dias Cavalcanti
Campinas, 12/4/2006

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