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Quarta-feira, 26/4/2006
A essência da expressão dramática
Guilherme Conte
+ de 9500 Acessos
+ 5 Comentário(s)

Finalmente fui assistir ao monólogo O Porco, agora em cartaz no SESC Ipiranga. E, caros leitores, permitam que esta coluna comece com um atentado ao bom jornalismo - sonegação de informação: vou me furtar a fazer a sinopse de praxe.

Basta dizer que O Porco trata das memórias e reflexões de um porco em um chiqueiro, à espera do abate. E a ressalva está no próprio programa da peça: qualquer coisa que se diga sobre ela além disso vai ter como único resultado subtrair o impacto causado no espectador. E a peça é realmente impressionante.

Somos recebidos pelo porco num chiqueiro simples, austero. Há somente uma porta e um balde. E ele começa a falar. Fala sobre tudo: as lembranças de sua infância, o seu dia-a-dia, sua relação com o porqueiro. Sobre seus sonhos e anseios, suas mágoas e desilusões.

A aparente verborragia despretensiosa do início envolve o público aos poucos. O clima se torna claustrofóbico e angustiado. Bastam 50 minutos para que a platéia passe de um estranhamento disperso a uma introspecção incômoda, até certo ponto dolorida.

Sob certo ponto de vista, há uma dimensão de tragédia na história deste porco. O "destino de sua jornada" é certo, não há escapatória. Ou há? Ele conjectura, se questiona, cria estratagemas. Mas o passar do tempo torna sua situação mais urgente. Sente-se um mal-estar constante.

"Não há metáforas", analisa Henrique Schafer, que foi indicado ao Prêmio Shell de Melhor Ator ano passado por esta atuação. "É um texto que não tem meias-palavras, ele diz o que quer dizer, embora haja um certo jogo ali dentro." De fato, um dos pontos altos da montagem é a total limpeza de apoios e caminhos tomados pelo ator em cena. As certezas e conclusões não são impostas; elas vêm do espectador.

É uma obra aberta, e sua riqueza vem de como ela ressoa em cada um de nós. O acerto deve-se a Henrique e ao diretor Antonio Januzelli, antigo professor da USP. Seu currículo abriga nada menos que 38 anos de serviços prestados ao teatro. E, sobretudo, de "paixão pelo trabalho do ator", conforme revela entusiasmado.

O Porco, aliás, é parte integrante de uma longa pesquisa da formação prática do ator, que Januzelli desenvolve há vários anos. "Enxergo o teatro fundamentalmente como o encontro com o outro", diz. "A interpretação deve ser o mais limpa e 'de dentro' possível, para que o ator se coloque a serviço desse encontro, para que ele realmente chegue e toque o público."

Foram três anos e meio de ensaio até que O Porco estreasse, em novembro de 2004. Os dois primeiros anos, conta Henrique, foram de "pura limpeza": "Foi um trabalho fascinante, de realmente me despir de cacoetes, idéias pré-concebidas, saídas óbvias e fáceis..." A partir daí, seguiu-se um ano e meio de efetiva construção, de desenhar o papel. "Buscamos criar sensações, mas não efeitos, sem metáforas", diz.

E o resultado é impressionante. Henrique atinge um nível de refinamento em sua atuação raro de ser visto, que culmina em uma expressividade comovente. Seu absoluto domínio técnico permite que ele segure os 50 minutos sem perder-se por sequer um segundo - e isso absorve completamente a platéia. Simplicidade e honestidade são as chaves da interpretação.

Henrique tece seu porco com uma precisão e uma delicadeza camerísticas. Lembra um esmerado quarteto de cordas, algo que toca fundo pela intimidade. Januzelli extrai dele a essência mais pura, o ator em sua desnuda natureza.

A indicação para um dos mais importantes prêmios do país parece não ter afetado em nada a humildade deste campineiro de olhos claros e fala mansa, com anos dedicados à pedagogia do teatro. E não poderia ser diferente, sob o comando de Januzelli. "Nós ensaiamos sempre, sempre e sempre", conta o diretor. "Meus espetáculo nunca estão prontos, sempre busco alguma nova dimensão." A experiência com a peça se torna mais intensa quando travamos conhecimento com certos dados biográficos do autor. O escritor francês Raymond Cousse lançou Stratégie pour deux jambons, o texto que deu origem a O Porco, em 1978, como forma de romance. No ano seguinte, adaptou-o para os palcos e o iterpretou. Sua formação de ator era autodidata.

"Com isso, podemos perceber que ele tinha uma necessidade de botar tudo aquilo para fora, de verbalizar tudo", diz Januzelli. "Escrever, para ele, não foi o bastante." Cousse terminou sua vida de modo trágico: suicidou-se aos 49 anos. Saber disso dá um outro caráter ao nosso contato com a peça, sem dúvida alguma.

A versão apresentada aqui toma por base o texto El Cerdo, uma versão do Stratégie feita pelo ator, diretor e dramaturgo espanhol Antonio Andres Lapeña. Ela ganhou notoriedade com a atuação de Juan Echanove. A tradução, direta e simples, é de Eliana Teruel.

Enfim, uma experiência memorável e profunda. O teatro, despido de alternativas fáceis e clichês, em busca de sua essência. "O homem não vive sem o ator" - diz Januzelli - "porque o ator é este ser que o representa para que ele se conheça melhor". Henrique Schafer e seu porco são, de fato, cada vez mais necessários nos dias de hoje.

O Porco - SESC Ipiranga - estúdio - R. Bom Pastor, 822 - Ipiranga - Tel. (11) 3340-2000 - R$ 10,00 - Sábado e domingo, 20h30 - Até 28/05.

Circuito

* Miserê Bandalha é uma das agradáveis surpresas em cartaz na cidade. A Cia. de Atores Bendita Trupe traz uma visão sobre a violência e o crime nos dias de hoje. O texto, criação do grupo com a dramaturga Claudia Vasconcellos, conta a história de dois meninos que entram na "vida errada". Demora um pouco para engrenar, mas acerta o pé e arranca gargalhadas da platéia, com alguns verdadeiros achados. Elenco irregular, mas com alguns destaques, e com evidente paixão pelo que faz.

Teatro João Caetano - R. Borges Lagoa, 650 - Vila Mariana - Tel. (11) 5573-3774 - R$ 10,00 - Sexta e sábado, 21h, domingo 20h30 - Até 30/04.

* O Grupo XIX de Teatro, sob a direção de Luiz Fernando Marques, volta com dois de seus principais espetáculos: Hygiene (domingos, 16h) e Hysteria (sábados, 16h). O primeiro trata do dia-a-dia de um cortiço, enquanto o outro trata de um hospital psiquiátrico. Teatro de qualidade, com interpretações precisas e emocionantes. Uma boa chance para conhecer o notável trabalho do grupo.

Vila Maria Zélia - R. Cachoeira esq. com R. dos Prazeres - Catumbi - Reservas pelo (11) 8283-6269 - R$ 10 - Até 28 e 27/05, respectivamente.

Voltaram aos palcos...

* Agreste, de Newton Moreno, agora no Tuca Arena - Tel. (11) 3670-8455

* Essa nossa juventude, de Kenneth Lonergan, no Fecomercio - Tel. (11) 3188-4141

* Oração para um pé-de-chinelo, de Plínio Marcos, no Espaço dos Satyros - Tel. (11) 3258-6345


Guilherme Conte
São Paulo, 26/4/2006

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COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
26/4/2006
20h03min
Fica a curiosidade: como sera que ele conseguiu patrocinar dois anos de ensaio? Nao e' economicamente viavel eu ficar dois anos me preparando para qualquer coisa... Sera' que patrocinamos a "limpeza" dele, atraves do dinheiro do imposto? Nada tem a ver com a peca, mas acho que seria bacana saber como ele consegiu fazer isso... Pois se a "limpeza" depender de fatores externos, ela nao seria honesta com o teatro como arte...
[Leia outros Comentários de Ram]
27/4/2006
12h43min
Os ensaios não foram remunerados ou "patrocinados", Ram. Henrique e o Januzelli ensaiavam no tempo que tinham entre suas atividades (aulas etc.). Se há algo que não falta em "O porco" é honestidade.
[Leia outros Comentários de Guilherme Conte]
27/4/2006
23h03min
Henrique nos deixa literalmente encurralados no nosso cotidiano, 'a espera do porqueiro que somos todos. É quase impossível sair ileso desse trabalho indescritivel. O texto traduz isso... de resto, só assistindo.
[Leia outros Comentários de Claudio Mendel]
3/5/2006
04h10min
Assisti a uma representação deste Beckett em Macapá. Um grupo de jovens atores encenando "Esperando Godot" sob colunas do palco de nosso único teatro durante os finais de semana de abril último. Achei interessante. Tenho comentado com minha namorada que é professora de Arte-Educação que as produções locais usam e abusam do besteirol ou de um teatro voltado para o público infantil. Sei que existem umas tantas companhias de teatro aqui. Não sei o que andam fazendo no que tange a encenarem algo além do quase-porno-chanchada ou infanto-farsesco, se é que soube me expressar... De vez em quando tiram um Artaud da cartola (que é a mesma peça que se encena há anos). Este "Esperando Godot", se não me engano, vez ou outra é encenado. Somando ao caricaturesco "Bar Caboclo" (uma escrachante paródia de um certo bar d'antanho local), temos um mais-do-mesmo acachapante. Falta-nos outros autores. E com urgência. Não quero ficar esperando Godot eternamente. Em todos os sentidos, diga-se de passagem.
[Leia outros Comentários de Pepê Mattos]
24/8/2006
19h33min
Guilherme, é você? O meu aluno de 7ª e 8ª série daquela escola em Moema? Pela qualidade dos textos acho que é você mesmo. Se for, me escreva, tá?
[Leia outros Comentários de Virgínia]
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