"É a intolerância do inculto. Como se diz no filme do Sganzerla sobre o Noel Rosa, do burro a gente só pode esperar o coice."
As palavras são do crítico de cinema da Folha de São Paulo Inácio Araujo, em recente entrevista à edição número 2 da revista Paisà. Ele fala sobre o fato de que o espectador médio de cinema às vezes se mostra despreparado para ir de encontro a filmes que o provoquem, que não sejam mastigados, que fujam do lugar-comum. E aí, em vez de haver a busca pela compreensão, a tolerância para se achar respostas ou a humildade para reconhecer que determinado trabalho pode guardar segredos muito mais profundos do que aparenta na superfície, há um rechaço total, quase agressivo, àquele objeto estranho.
"Quando a gente tinha cinema popular, como o Marabá, as pessoas eram culturalmente modestas, mas sabiam ver cinema. (...) Hoje o cinema virou diversão de classe média, e a classe média tem dificuldade em conviver com a imagem. Ela acredita mais na escrita."
Com sua lucidez característica, Inácio Araujo achou a nódoa exata do que vem mais pegando na recepção do cinema atualmente - em especial no Brasil, cuja classe média se acha mais acima da média do que realmente é. Muita gente ainda pensa que cinema é, basicamente, a arte de contar histórias. Balela, pura balela. Arte de contar histórias é literatura. Cinema é arte da imagem e da montagem. As "historinhas" devem surgir a partir desse princípio, e não o contrário. E é justamente esse contrário que parece estar dominando o pensamento do tal público médio. Cobra-se dos filmes que eles narrem histórias críveis, fechadas, coerentes, como se esta fosse a sua obrigação, e deixa-se de lado o gosto pela percepção das imagens.
Eu mesmo já escrevi algo sobre o assunto no Digestivo, num artigo de razoável sucesso entre os leitores chamado "A falta de paciência com o cinema". O assunto merece ser retomado, em enfoque levemente diferenciado. Agora, o que se questiona é o porquê da necessidade dos espectadores de verem no cinema o que eles querem, e não o que os filmes têm a lhes oferecer. E normalmente o que parece ser mais buscado é mesmo a "historinha". Pois o cinema será muito mais apreciado no dia em que se voltar a amar a imagem.
Essa idéia de que os filmes narram alguma coisa surgiu lá no começo do século XX, com as produções do americano David Wark Griffith, em especial O Nascimento de Uma Nação e Intolerância. Só que mesmo naquela época, o que estava em jogo não era essencialmente a preocupação em "contar", mas em "mostrar como contar": Griffith se apropriou de diversas técnicas até então pouco utilizadas e criou uma fabulação, com começo, meio e fim, através de montagem e das relações entre uma cena e outra. Mas no fundo, importava não necessariamente o que se contava, mas a forma como se contava. Esse era (é) o diferencial do cinema em comparação às outras artes. O classicismo de Griffith não tinha necessariamente como fim narrar, e sim apresentar essa narrativa e provar como ela poderia existir a partir dos artifícios da imagem.
Não é por nada que os filmes mais citados como essenciais na história do cinema sejam preponderantemente focados menos no enredo e mais em todo o resto. O Encouraçado Potemkin, Cidadão Kane (na foto), Roma, Cidade Aberta, Ladrões de Bicicleta, Acossado, Os Incompreendidos, Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Gritos e Sussurros, 2001 - Uma Odisséia no Espaço, para ficar apenas em alguns mais básicos e de memória imediata. Ou se formos pensar em diretores menos modernos, como Hitchcock (Um Corpo que Cai), Howard Hawks (Rio Vermelho), Sergio Leone (Três Homens em Conflito), Chaplin (Luzes da Cidade), todos, sem exceção, tinham crença muito maior na imagem do que na palavra. São gênios inesquecíveis porque souberam trabalhar essa crença dentro das estruturas que possuíam para transmitir suas próprias ambições ideológicas e artísticas.
Entre os mais recentes, Abbas Kiarostami (Gosto de Cereja), Clint Eastwood (Menina de Ouro), David Cronenberg (Marcas da Violência), até bambas do cinemão como Peter Jackson (King Kong), e tantos mais, se destacam igualmente por saberem se utilizar da expressividade e significados das imagens, mesmo em filmes que partem basicamente da "historinha". Até um cineasta verborrágico como Manoel de Oliveira (Um Filme Falado) tem no que apresenta visualmente grande parte de sua força - como o close final de John Malkovich no filme citado. Oliveira, aliás, assim como Cronenberg, Eastwood e outros, são prova de que nem sempre um filme de imagens precisa seguir essa linha cegamente. Ele pode sê-lo dentro dos padrões ditos industriais e ainda assim se tornar obra-prima puramente cinematográfica.
Porém, o tal espectador médio parece continuar negando a essência do cinema. O imenso público de uma comédia como Se Eu Fosse Você, de Daniel Filho (mais de 3 milhões nas salas), que prega a narração acima da narrativa, que aposta num humor de boutique novelesco, é a demonstração do que Inácio Araujo falou. Não prego aqui (quem sou eu...) o fim do roteiro - se bem que há grandes cineastas que o fazem, mas é outra história. O que não pode acontecer é achar que "roteiro" significa "texto", "história", "argumento". Roteiro é um guia do filme, é o mapa pelo qual o diretor vai seguir para atingir seus objetivos, sejam eles quais forem. Mas o que vem sendo feito em muitos casos é a consideração de que roteiro é o supra-sumo do cinema, o deus-rei da narrativa, a motivação para se gostar ou não de um filme. Quantas vezes não ouvimos por aí: "ah, esse filme tem um roteiro bem fraquinho", ou "não gostei porque o roteiro é batido".
E daí se é batido? Quantas vezes já se contou uma história de assalto no cinema? E aí temos Um Plano Perfeito, de Spike Lee. Quantas vezes vimos na tela a reconstituição da colonização da América pelos europeus? Pois está em cartaz O Novo Mundo, obra-prima sensorial e emotiva de Terrence Malick. E como pedir um "bom roteiro" de um filme tão focado no choque e incômodo das imagens como Crime Delicado, de Beto Brant? Ou exigir coerência narrativa de uma viagem amalucada de cores e paixão que é 2046 - Os Segredos do Amor, de Wong Kar-wai?
Quer (maus) exemplos inversos? Quando o roteiro busca se justificar por si mesmo, há o risco de surgirem anomalias como Crash - No Limite (prometo ser a última vez que toco neste filme), que, por simplesmente falar de intolerância e choque racial, recebeu láureas e o apreço de boa parte do público - será que pouco importa se tudo é feito de modo grosseiro, artificial e pedante? Ou então pensemos no roteiro tão rico e interessante como o de Escuridão (na foto), suspense pouquíssimo visto de John Fawcett, diretor que parece não saber trabalhar com a imagem e, apesar da "historinha" extremamente intrigante, aposta no excesso da edição de som e em sustos fáceis. Fosse melhor trabalhado na elaboração e encadeamento do que estava à frente da câmera e teríamos um grande filme de terror, muito mais assombroso e relevante que esses suspenses bobocas entornados no circuito semanalmente.
O assunto não esgota aqui. Na verdade, devem ter ficado vários pontos sem ser tocados e muitos outros exemplos faltosos. Se foi o que ocorreu, o leitor tem a chance de se manifestar e salvar injustiças que possam ter sido cometidas na falta de algum nome/título. O mais importante a ser destacado, porém, é que, enquanto o tal espectador médio seguir pedindo dos filmes assistidos só histórias legais e originais e rejeitar tudo que fugir daquilo que ele espera, o cinema apenas vai caminhar para trás.
Na entrevista à Paisà, Inácio Araujo questiona: "você já pensou se alguém propusesse o projeto de O Ano Passado em Marienbad hoje em dia? O cara ia ser morto, pendurado em uma árvore. (...) Acho difícil entender certas transformações, mas o público do ano 2000, talvez porque seja conservador, não está disposto a embarcar naquela aventura (...)". Ele se refere ao famoso filme do francês Alain Resnais, datado de 1961 e recentemente lançado em DVD no Brasil, uma das obras mais enigmáticas e imagéticas já realizadas. Quem conhece, entende à perfeição o que Inácio fala. E não tem como tirar-lhe a razão.
Marcelo, eu gosto de 2046, eu não gosto de Blow Up, eu gosto de Marvada Carne, eu não gosto de Cidade de Deus, eu gosto de Fogo e Paixão, eu não gosto de Central do Brasil. Este exercício 'a la Buñuel, longe de propor uma demissão crítica, aposta na crítica instintiva como inteligente... e ele achava que um filme pode ser tudo, menos chato... e eu amo Buñuel quando ele não é chato (rs)... e eu gosto deste texto. Abraços do Mário!!!
Marcelo, realmente a situação está crítica. As produções holywoodianas invadem os circuitos dos shopping-centers, não deixando a chance de ver um bom filme para quem gosta realmente de cinema-arte. Não podemos culpar os exibidores nem os produtores e diretores. O público infelizmente quer efeitos especiais, tiros, carros voando e explodindo, sem falar nos Harry Porters da vida. E vai ser sempre assim. As salas de "artes" para assistirmos um filme iraniano, espanhol ou vietnamita são poucas. Um bom exemplo é a sala da UFF (Niterói), que passa 3 filmes por semana (e ainda acho pouco). Gostaria que fossem mudados diariamente mas aí já demais. Um abraço, Ivo Samel
Marcelo, estava passeando pelo Google e vi o seu artigo. Achei interessante e comecei a ler. Já no meio eu estranhei esta diferenciação que você sugere entre contar história e a paixão pela imagem. Eu acho que entendi, e por isso mesmo pergunto onde você colocaria filmes como "Dersu Uzala", do Akira Kurosawa, "Rocco e seus Irmãos", do Visconti; também dele, "Ludwig", entre outros. Todos são grandes filmes, tanto tecnicamente falando (belas imagens, grandes montagens, plena utilização dos recursos técnicos), quanto o enredo. Eu acho que a separação que você tenta fazer é impossível, a linha que separa estas duas coisas em um filme é muito tênue. Uma imagem "X" solta, descontextualizada de sua história, pode não ser nada atraente. Mas se for colocada com precisão, e em torno dela se construir todo um significado, ela pode se tornar muito interessante. O mesmo pode acontecer ao contrário. Bom, se você quiser continuar esta conversa, podemos fazer por e-mail, aqui não cabe mais. Abraços.