Quando foi lançado no ano passado o "Movimento Literatura Urgente", uma coisa me chamou a atenção no site do manifesto - fora as propostas e requisições deles - era a lista de assinantes. Dezenas de nomes, acompanhados de um "escritor" e o nome da cidade em que o cidadão reside. Logo me veio a dúvida: o que faz de alguém um escritor? I mean, o que dá a uma pessoa o "direito" de adicionar esse detalhe em sua assinatura? Criar um blog e colocar exercícios de ficção lá? Fazer amizade com o pessoal do Paralelos? Publicar um conto em uma antologia, seja ela qual for? Quais são os critérios?
A impressão que fica é que nessa nova geração não se quer ser escritor, mas estar escritor. Circular no meio literário, ser convidado para a FLIP, aparecer na "Tinta Fresca" da EntreLivros, ter seu livro resenhado pelo Rascunho ou pelo Digestivo, enfim, todo o status que a "profissão" traz. E nunca desenvolver um projeto ficcional. Há um pouco de ingenuidade romântica nisso, mas às vezes acho que bom mesmo era na época do Stendhal, que orgulhosamente escrevia para cem (bons) leitores. Poxa, não são poucos os blogueiros-escritores que já possuem comunidade no Orkut com mais de cem membros. Não sejamos hipócritas: é evidente que a glória é essencial, que ter o trabalho reconhecido faz parte do processo. Agora, e a obra, cadê?
Uma etapa básica do processo de formação do escritor é, ou deveria ser, a descoberta do escritor em si. Para Proust, "o único livro genuíno, um grande escritor não precisa inventá-lo, no sentido comum, pois ele já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo". Não basta, pois, sentar-se ao computador, abrir o Word e deitar monólogos que se transformarão em contos ou romances. Muitos aspectos estão envolvidos. Como a forma, o estilo, a escolha desta idéia e não daquela. Todas essas certezas só advêm da prática. Anos de prática. Há influência, é evidente, dos autores que admiramos, dos efeitos que determinadas leituras nos proporcionaram. Mas literatura não é algo assim tão amorfo, ora.
Digamos que P.R., um novo autor, tem como modelos literários Ítalo Calvino, Herman Melville e Muriel Spark. Autores bem distintos entre si. Como P.R. saberá para que lado seu texto vai pender? Treinando. Se o processo funcionar bem, nosso jovem autor escreverá livros que não terão nada a ver com os de seus modelos. O que tiramos da experiência de leitura não são apenas noções de estilo e de escolas literárias, e sim pontos de vista, experiências, filosofia. Não é preciso querer escrever sobre marinheiros para admirar e ser influenciado por O Coração das Trevas ou Lord Jim - além de uma boa história, esses livros trazem idéias na entrelinhas, para serem dissecadas.
"Sou donde nasci", afirmou Guimarães Rosa. Todos somos. Faulkner só começou a se destacar na literatura quando percebeu que seu grande tema era o sul decadente onde havia crescido. Balzac praticamente transcrevia o que via nos salões da alta-sociedade parisiense, somando às histórias toques de ficção e brilho narrativo. O grande barato da literatura está nesse descobrir qual é o seu universo ficcional, qual é o tipo de linguagem adequado à sua personalidade e àquilo que se propõe. Não é algo como "vou escrever como Beckett"; somos escolhidos pela linguagem, pelo estilo, pelos cenários e pelos temas. E eles podem ou não dizer respeito a nossa vida e ao nosso meio social.
E o escritor é, antes de tudo, um leitor. E o que é um leitor, senão um acúmulo de idéias conflitantes e/ou convergentes, um punhado de "concordos" e "discordos" que, fundidos, formam um quociente? É um processo demorado? Naturalmente, demanda tempo para que se adquira uma bagagem de leitura suficiente. Por isso é tão bacana. Os pretendentes a autores não têm se dado esse tempo. Querem publicar com vinte e dois, vinte e cinco anos. Não dão mostras de querer viver por aquilo, apenas viver daquilo. Clarice Lispector escrevia para não morrer. Essa necessidade de literatura parece extinta. A idéia de passar anos se preparando soa como tortura das mais cruéis. Ok, a própria Clarice - assim como Thomas Mann - começou a publicar muito cedo. São exceções, e ainda produtos de uma época em que a formação humanística era infinitamente mais consistente do que a que vemos hoje nas escolas e universidades.
Quanto aos blogs e a utilização da internet como fonte de divulgação, não vejo nada de mais, a princípio. A internet é uma ferramenta, como o eram as revistas literárias (tão pouco lidas hoje, uma pena) e os folhetins. E que mal pode fazer para um jovem autor utilizar um espaço para desenvolver sua arte? O problema é quando o blog serve mais como publicidade do que como estudo, e aí voltamos à questão do estar escritor. Navegando por alguns dos sites pessoais de autores, quase tudo que vejo são cumprimentos a amigos e anúncios de lançamentos de livros dos parceiros. Literatura mesmo, pouca. É bacana caminhar ao lado de outros escritores, trocar experiências; só isso não dá. Imagine se Borges e Bioy Casares passariam todo o tempo tecendo loas um ao outro em hipotéticos blogs.
Outra conseqüência perniciosa desse jogo de comadres é se unir contra os "inimigos comuns", como a crítica. Isso aconteceu, por exemplo, com Jerônimo Teixeira, que falou mal de novos autores na Veja e vem sendo massacrado por eles nos blogs. Deus, isso é terrorismo. Jornalista não tem compromisso com nenhum movimento ou geração. Parem para pensar em quantos grandes autores e livros foram criticados em seu lançamento e hoje são tidos como clássicos. Se foi assim com eles, que eram gênios, por que haveria de ser diferente com vocês? Os bons ficam, sempre.
E não, não é por panela ou perseguição que vocês não ganham os prêmios literários. Uma carreira é construída aos poucos mesmo. Vejam o caso do Bernardo Carvalho, que lançou vários romances lidos por meia dúzia de críticos e só veio a receber prêmios e atenção com Nove Noites, quase dez anos depois de sua estréia. Carvalho teve a sorte de ter uma grande editora (a Companhia das Letras) bancando o desenvolvimento de sua carreira. Quanto a isso, os novos autores não podem reclamar, pois alguns deles estão em grandes editoras - André Sant'anna e Daniel Galera na própria Companhia, Marcelino Freire e Marcelo Mirisola na Record, Santiago Nazarian e João Paulo Cuenca na Planeta. Uma chance assim vale mais que mil Jabutis, nesse ponto da carreira. Portanto, escrevam.
Você tirou as palavras da minha boca. Esgota tudo o que venho falado sobre essa nova geração de autores que parecem escrever pela manhã e postar à tarde. Realmente escrever requer tempo, esperiência e, logicamente, talento. E o ato de escrever é irmão siamês da do ato de ler. gd ab
Que artigo tão lúcido e sagaz. Eu vi um rapaz dizer numa peça: "escritor não precisa escrever algo, mas pensar em escrever algo". A Clarice Lispector se dizia escritora amadora. Quem escreve para não morrer, sendo escritor ou não, de repente lê seu artigo, morre. Sejam ou estejam, mas não morram.
Minha opinião pessoal é: feliz do agraciado ser que redime sua consumição com a escrita do sentir. Se houver mais disso nessa geração, com certeza teremos verdadeiros escritores.
Ser ou estar escritor, é um dilema na minha vida. Sei que quero ser ou estar escritora o tempo todo. Quero que seja minha profissão. Mas isso não depende só da minha vontade.
Seu artigo é despretensioso e sincero. Também me sinto incomodada com toda essa superficialidade. Não me refiro à comunidades virtuais - a internet é uma ferramenta útil e essencial no mundo contemporâneo -, me refiro a essa vontade estúpida que vários aspirantes têm de obter publicidade, fama e sei lá mais o quê. Também tenho blogs, mas não quero divulgar a minha imagem, mas sim meus textos. Você fez bem em citar a influência dos autores que admiramos. Sou fã de dois escritores completamente diferentes: Clarice Lispector e José Saramago. Estilos diferentes, visões distintas. O que eles têm comum? A universalidade com que exploram a condição humana. Cada qual do seu jeito. Quando li a obra-prima ''A hora da estrela'' (Lispector) decidi que ser escritora não seria apenas um hobby para mim, tive uma espécie de ''epifania''. Se eu quero viver da literatura? Jamais. Não preciso viver da arte. A arte é que precisa viver em mim.