Um jovem americano resolve seguir carreira acadêmica em Física, depois de uma experiência reveladora num Kibutz. Faz sua pós-graduação em Berkeley e como tese propõe uma solução interessante para entender um problema em Física Quântica (em dimensões infinitas como ele gosta de dizer). Seus artigos chamam a atenção dos acadêmicos da California Institute of Technology, um dos maiores centros de pesquisa em Física do mundo. Ele acaba por receber uma grande oferta para um Físico recém-doutorando: uma bolsa de três a quatro anos para pesquisar e ensinar o que quiser naquele campus.
Depois da euforia pela notícia, as dúvidas começam a surgir no jovem: "será que serei capaz de ter outra idéia?", "será que farei pesquisa relevante?", "será que vou satisfazer as expectativas dos professores de Caltech?", "será que vou ser lembrado por algo que fiz?". Fica ainda mais tenso quando descobre que nas salas ao lado da sua ficam duas das grandes figuras do século em Física: Murray Gell-Mann, que ainda não havia ganho o Nobel, e Richard Feynman, já de posse do seu Nobel. No fim do corredor se encontra também John Schwarz, um dos proponentes da então desacreditada e nascente Teoria das Cordas.
Nervoso e sem saber direito o que fazer, sabendo que sim, tem algum talento - "será que não foi sorte de principiante?" - mas em dúvida quanto à capacidade de pesquisa, o jovem procura a orientação dos mais experientes professores do departamento. Desencantado com o mau humor crônico de Gell-Mann, encontra em Feynman o mentor involuntário que lhe informa com convicção: "faça Física por prazer, porque a ama. Trabalhe em problemas que lhe pareçam interessantes, e não naqueles que sejam interessantes para outros ou porventura estejam em voga. Não pule para aquilo que você não acredita, só porque está sem idéias (ou seja, não faça pesquisa em Teoria das Cordas só porque algum professor importante apoia esta idéia). E finalmente, não me peça para te dizer o que fazer, isto só você vai poder determinar, sozinho...".
O jovem é Leonard Mlodinow, autor de Feynman's Rainbow: A search for beauty in Physics and in Life. Após cerca de um ano de conversas com o mestre Feynman, Leonard acaba seguindo carreira como roteirista - escreveu inclusive roteiros para série Jornada nas Estrelas -, e escritor, ao descobrir que gosta mais de escrever do que de pesquisar. Ao informar Feynman que estava escrevendo como hobby, recebeu dele esta ótima resposta, que traduzo do livro livremente:
"Eu uma vez pensei em escrever fiçcão, eu mesmo. Sim, eu já dei palestras; isto é, eu falei e elas foram gravadas. Mas esta é uma saída fácil. Por isso, numa festa no departamento de letras, eu perguntei a eles, só por curiosidade, como eu faria para escrever um livro de ficção e este professor, que respeito profundamente, disse Tudo que você tem que fazer é escrever.
"Peguei uma cópia dos Contos dos Irmãos Grimm. Eu pensei, eles não devem ser muito difíceis de escrever... Eles podem fazer o que eu quiser, porque têm anjos, ogros e coisas assim. Então podem fazer o que quiser, têm várias formas de mágica. Então eu disse, vou inventar uma destas histórias.
"Eu não consegui inventar nada que não fosse uma combinação do que eu já havia lido. Eu senti, infelizmente, que quando eu recombinava as coisas, não gerava uma trama profundamente diferente, com alguma sacada, algo diferente, alguma surpresa. No entanto, a próxima história do livro tinha alguma forma de surpresa, diferentemente das outras histórias. Haviam ogros nela novamente, mas a natureza da trama, o desfecho era bem diferente. E eu disse 'Não há mais possibilidades aqui'. Então eu lia a próxima e era completamente diferente. Então eu acho que não tenho o tipo de imaginação para criar uma boa nova história.
"Mas isso não quer dizer que não tenho uma boa imaginação. De fato, eu acho que é muito mais díficil fazer o que um cientista faz, entender ou imaginar o que aí está, do que imaginar ficção, isto é, coisas que não estão aí. Para realmente entender como as coisas funcionam em pequenas ou grandes escalas (físicas) requer muita imginação, pois elas funcionam de maneira completamente diferente do que você espera! Precisamos de muita imaginação para visualizar um átomo, para imaginar que existem átomos e como eles devem estar operando. Ou para fazer a Tabela Períodica dos Elementos.
"No entanto, a imaginação do cientista é sempre diferente da do escritor, pelo fato de que é verificada. Um cientista imagina algo, e Deus diz 'incorreto' ou 'até agora, tudo bem'. Deus é o experimento, obviamente, e Deus talvez diga 'Ah, não, aquilo não está de acordo'. Você diz: 'Eu imagino que funciona assim. E, se funciona, então você deve ver isso como consequência'. Então outras pessoas olham e não vêem. Falta de sorte sua. Seu palpite estava errado. Você não tem isso ao escrever (ficção).
"Um escritor ou artista pode imaginar algo e certamente pode não estar satisfeito com isso artisticamente ou esteticamente, mas isto não tem o mesmo grau de precisão e absolutez com que o cientista lida. Para o cientista existe este Deus do Experimento que pode dizer: 'Isso é lindo meu amigo, mas não é real.' Isto é uma grande diferença.
"Suponha que houvesse algum grande Deus da Estética. E que toda vez que você fizesse uma pintura, não importando o quanto ela te satisfizesse, não importando nada, mesmo que algumas vezes não te satisfizesse, de qualquer maneira você a submetesse para o grande Deus da Estética e o deus dissesse 'isto é bom' ou 'isto é ruim'. Depois de um tempo, o problema para você seria desenvolver um senso estético que se encaixasse com esta coisa, não somente com seus sentimentos e idéias pessoais. Isto é mais parecido com o tipo de criatividade que temos em ciência.
"Também a escrita, diferentemente da matemática ou da ciência, não é um corpo do conhecimento que está expandindo e tudo é posto junto, num gigantesco ser sendo construído por pessoas em conjunto, em que há progresso. Será que você pode dizer: 'Todo dia estamos nos tornando escritores melhores porque vimos o que foi escrito antes?'. Que nós escrevemos melhor porque outros caras mostraram como fazer isso ou aquilo antes, e portanto agora podemos seguir adiante? É assim em ciência e matemática. Por exemplo, eu li Madame Bovary, que achei maravilhoso. Claro que não era nada além de uma descrição de uma pessoa comum. Eu não estou certo da minha noção de história, mas creio que Madame Bovary era no início de sua escrita, um romance sobre pessoas comuns. Eu acho que se os romances de outros parecessem mais com isso, eu ficaria feliz. Mas os romances modernos não são feitos com aquele tipo de trabalho artesanal e cuidadoso, com aquela atenção para detalhes. Os poucos romances modernos que eu dei uma olhada, não pude aturá-los."
As palavras de Feynman de 1980 parecem ter sido ditas sob medida para explicar os movimentos de "novos autores" que acontecem no Brasil. E servem também como um bom conselho para todos que querem escrever um romance moderno. Esqueçam o Deus da Estética, desenvolvam um trabalho artesanal e cuidadoso, com atenção para detalhes.
Feynman's Rainbow é um alerta sobre um fenômeno curioso que observo na literatura e na crítica literária brasileira: a obsessão com o que será pensado daqui há 150 anos. Será que "minha obra vai entrar para História"? Será que "estou escrevendo o livro da década"? Ninguém sabe o que vai acontecer daqui há 150 anos. É imprevisível. Mas se você escreve com prazer, com atenção e carinho para a arte de escrever, desenvolvendo suas ferramentas literárias a perfeição, pode ter certeza que está fazendo o certo. Mesmo que seu livro seja irrelevante, ao menos te deu prazer.
Justamente por não ter um entendimento profundo da criatividade, da história, da possibilidade de continuamente se fazer história, inclusive na literatura, é que nos obcecamos com questões desnecessárias e cuja resposta correta é imprevisível. Sim, você - autor da geração 00, 99, 80 - tem o direito de escrever coisas ruins, coisas pela metade, coisas bonitas mas chatas, coisas feias mas interessantes, livros de sucesso, ou sem sucesso. Tem inclusive o direito de gostar ou desgostar de qualquer livro. E nada disso vai qualificar ou desqualificar uma geração ou um autor... E ninguém, nem mesmo o Deus do Experimento vai poder te dizer se o que você fez é relevante ou não no big scheme of things. Se você perguntá-lo provavelmente dirá: "desencana, vai para casa, ler, escrever, ou quem sabe, assistir televisão. Mas se divirta com o que faz".
Post Scriptum
Se querem ler bons livros, recentes, deêm uma olhada em Johaben: Diário de um Construtor do Templo de Zé Rodrix e 120 Horas de Luis Eduardo Matta. Dois livros feitos com carinho e por artesãos das letras, com toda atenção para detalhes que uma boa obra requer.
Interessante tudo o que vc escreveu no seu artigo. Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi o seguinte: "Será que 'minha obra vai entrar para História'? Será que 'estou escrevendo o livro da década'?". Isso mostra claramente a necessidade que a maioria tem de se perpetuar de alguma forma, seja através de algo que fez, dos filhos que teve ou mesmo crendo que terá uma outra vida aqui ou em outro lugar qualquer. O fato é que o homem não aceita sua finitude e com isso inventa mil maneiras de se "religare". Talvez deixe até de viver em plenitude o momento presente na expectativa de ser "alguém" daqui há 150 anos. Feynman tem razão quando diz que devemos fazer o melhor e o mais prazeroso agora, enquanto temos a certeza de sermos ou de estarmos... O amanhã é ainda uma incógnita onde seremos ou não.
Ainda hei de ler o "120 horas". Estou curioso... "mas creio que Madame Bovary era no início de sua escrita, um romance sobre pessoas comuns"... Adorei todos os trechos que vc separou desse Feynman. Preciso ler maios coisas dele. Abraços