COLUNAS
Quinta-feira,
1/6/2006
Sombras Persas (VII)
Arcano9
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O fogo quase eterno atrai os visitantes ao Ateshkadeh
Yazd, 5/11
"O homem de mente pura e correto, ó Ahura Mazda, cuja alma é em harmonia com a verdade, reflete apenas sobre ti e dedica a ti suas boas ações. Ó Ahura Mazda, deixe-nos aproximar de ti, louvando-te e entoando a ti tuas canções."
Lembro de Vinicius de Moraes. A chama que vejo não é eterna. Mas, para nós, que não vivemos mais que umas 100 primaveras, é como se fosse. Um vaso de metal é sua residência. O fogo é alimentado com maderia várias vezes por dia, dia e noite, por sacerdotes. Você vê o fogo por trás de um vidro escuro, praticamente só vê as chamas por trás do vidro, elas balançando no outro lado. O fogo, que é um símbolo de pureza. O fogo de Ahura Mazda.
Novamente, volto meus olhos para as inscrições sagradas nas paredes ao meu redor.
"Armaiti deve conceder à pessoa que tem força espiritual, honestidade e pureza, a firmeza e a estabilidade do corpo. Tal pessoa deve, sem dúvida, ser bem-sucedida no sofrimento da vida e deve ser vista, Oh meu Ahura Mazda, como teu bom servo."
O templo não longe do centro velho de Yazd é conhecido como Ateshkadeh e abriga a chama zoroastrista desde 1940. No entanto, o fogo aparentemente vem queimando sem parar desde aproximadamente o ano 470. A chama já foi transferida de um templo para outro três vezes, uma em 1174, outra em 1474 e outra, finalmente, em 1940, para o atual local. Incrível.
A chama do Zoroastrismo antecede Cristo, antecede Alexandre. Era a religião da primeira dinastia persa, a de Ciro. Os séculos trouxeram à Pérsia os seguidores de Alá, mas, mesmo assim, até hoje há zoroastristas no Irã. Muito pouco do que Zoroastro escreveu sobreviveu ao tempo, como o fogo à minha frente. No entanto, sabe-se que a religião foi uma das primeiras - ou quiçá a primeira - a defender a existência de um Deus onipresente e invisível, Ahura Mazda. Zoroastro, nascido provavelmente entre 1700 e 1500 a.C, acreditava também em dois princípios opostos, responsáveis um pela luz, outro pelas trevas; um pela vida, outro pela morte. O primeiro representado também por Ahura Mazda e o outro por Angra Mainu. Os dois princípios coexistem na Terra e o fiel tem que se esforçar para se livrar de impurezas associadas a Angra Mainu durante toda a vida. Semelhanças com conceitos cristãos nessa religião não são coincidência.
"O Zoroastrismo é a mais velha das religiões do mundo que foram reveladas, e provavelmente tem mais influência sobre a humanidade, de forma direta ou indireta, do que qualquer outra fé isoladamente (...) Zoroastro foi então o primeiro a ensinar doutrinas como a de que as pessoas serão julgadas depois que morrerem, a da existência do Céu e do Inferno, a da futura ressurreição do corpo, a do Juízo Final e a da vida eterna reunindo corpo e alma. Essas doutrinas iriam se tornar preceitos de fé familiares para a maioria da humanidade por meio de empréstimos feitos pelo Judaísmo, pelo Cristianismo e pelo Islã (...)"
Mary Boyce em Zoroastristas, Suas Crenças Religiosas e Práticas
Conversando com um zoroastrista, perguntei se é verdade que os seguidores da religião são adoradores do fogo, como eu já havia ouvido falar antes mesmo de viajar até Yazd. "Você é cristão. E certamente reconhece o símbolo da Cruz", diz ele, em um tom de voz que mescla o didático e o aborrecido. "Mas você não é adorador da Cruz. Você adora seu Deus, a cruz é apenas um símbolo. É o mesmo para nós. Nós não adoramos o fogo." Me sinto frustrado, na verdade: no Ateshkadeh, esperava ver zoroastristas prostrados, fazendo reverências ao fogo, vestido roupas estapafúrdias. Não vi nada disso. Na verdade, os zoroastristas têm poucas características de roupa que os diferenciam das demais pessoas no país, embora nem sempre tenha sido assim. Talvez a principal seja que as mulheres (que usam o véu, exigido de todas no Irã) não vestem o negro chador - entretanto, em Teerã, também há muitas muçulmanas não muito religiosas que não usam essa vestimenta. Os zoroastristas formam um grupo que soube se misturar bem em meio aos xiitas, e os xiitas retribuem a tolerância. A religião é aceita pelo Estado islâmico, assim como o Cristianismo dos imigrantes armênios. Por outro lado, os seguidores da religião sofreram perseguição no passado. Possivelmente essa pressão tenha sido a causa da imigração de muitos zoroastristas para o oeste da Índia, onde vive uma de suas maiores comunidades.
Como o Islã, que tem seus cinco pilares, os seguidores de Zoroastro têm três princípios que seguem: os de pureza e moralidade em ações, pensamento e palavras. Esses preceitos estão presentes no símbolo mais conhecido da religião, o Faravahar. Ele mostra um homem de perfil, com uma mão aberta e segurando um aro na outra. A figura também tem duas asas, cada uma com três camadas de penas. Cada um dos elementos da ilustração (esculpida em tumbas e nos palácios em Persépolis) tem um significado importante para a religião. O aro representa lealdade; a mão aberta indica respeito; e cada uma das camadas de penas lembra um dos três princípios de pureza e moralidade.
Yazd, uma cidade com 400 mil habitantes no meio do deserto, concentra o maior número de zoroastristas no Irã. Seriam talvez cerca de 30 mil, num universo de seguidores que, no país, deve girar em torno dos 150 mil. Por ser esse centro religioso, atrai muitos fiéis que espalharam pelo mundo. Decido deixar para trás o Ateshkadeh e caminhar por uma longa avenida que cruza o belíssimo centro velho de Yazd. A cidade é pequena e, no espaço de uns 20 minutos - depois de parar para tomar uma Zan Zan Cola e me aliviar um pouco do calor -, chego à fronteira entre a zona urbana e, literalmente, o nada do deserto. Nessa área limítrofe, encontro uma construção fechada, cercada por muros, que chama a atenção à distância por causa de uma cúpula toda cor de barro. A porta está encostada, não trancada, e coloco a cabeça para dentro, na esperança de ver alguém e pedir autorização para dar uma olhada. Ninguém me vê e decido entrar e só depois, à sombra de árvores, do templo e de sua cúpula bege, encontro um senhor sentado, acompanhado de duas pessoas de pé. O senhor me chama.
As pessoas de pé são turistas como eu, e também vêm de longe: Toronto. Me alivio em ouvi-los falando em inglês. Um homem de pé tem óculos escuros e uma bengala na mão. A mulher ao lado dele, agarrando-o pelo braço, me pergunta de onde sou e se espanta: "você é zoroastrista?", pergunta, não conseguindo imaginar que no país da folia carnavalesca exista alguém que possa seguir os preceitos de sua pura religião. "Não, mas quero conhecer mais. É muito interessante", respondo. O cego me diz que há muitos zoroastristas no Canadá, e eu lhe arranco uma risada quando pergunto se há muitos jogadores de hóquei sobre o gelo que dedicam seus gols a Ahura Mazda.
O interior do templo, chamado de Fortaleza dos Leões, é gelado. O senhor que havia me chamado, o zelador, diz que o local vai fechar logo e exige que eu coloque uma espécie de solidéu branco, da cor de todas as paredes lá dentro, antes de entrar. Logo fico impregnado no delicioso cheiro de insenso de rosas, a fumaça parece vir das profundezas, descendo as escadas. Vejo cartazes, alguns em inglês, louvando Ahura Mazda, iluminados pelo sol que entra por alguma janela que nem percebi onde ficava. Não tenho tempo para procurar. Desço mais escadas e abaixo a cabeça para me encaixar numa entrada de uma víscera profunda no animal branco e sagrado. A fumaça do incenso é quase sólida. O que vejo é um pequeno altar, uma lâmpada elétrica, um incensário e uma ilustração do que imagino que seja Zoroastro - parecendo um Deus hindu, com pele e olhos com cores fortes, verde, azul, vermelho. Com seu inglês básico, o senhor me explica que o templo foi construído aqui pela presença de um poço ancestral, perto do pequeno altar que eu estava vendo.
Converso com o zelador e sinto que ele ficou muito feliz com o fato de um visitante das alienígenas terras latino-americanas, que nem é zoroastrista, tenha mostrado interesse em saber das suas crenças. Retiro o solidéu e respiro o ar ensolarado do exterior, me liberando das névoas perfumadas. "Você está sozinho? Não veio com uma excursão? Sabe falar persa? Como está se virando?", me perguntam os canadenses, parecendo genuinamente interessados. Fiquei comovido, me vi como um filho viajante pedindo à mãe que não se preocupe. Me senti, por poucos e bons minutos, parte de uma pequena família adotiva. Uma família que os muçulmanos do Irã, com seu imenso poder, seus templos gigantescos, impecáveis, lotados, não poderiam ser. Os zoroastristas canadenses e meu novo amigo, guardião da Fortaleza dos Leões, se despedem de mim com sorrisos lindos no rosto. Vou lembrar deles quando pensar em Yazd no futuro.
* * *
São 4 da tarde, o sol continua potente e desço do ônibus. Estou em um subúrbio no sudeste de Yazd, muito além de onde estão os limites do mapa no meu guia. As Torres de Silêncio ficam a 3,5 km daqui. Não há ônibus até lá. Anoitece às 17h. Começa a corrida, meus pés contra o sol. Um vento quente me alcança e caminho contra ele.
Aos poucos, as motos e os carros enlouquecidos dão lugar a um vasto conjunto de prédios residenciais, muitos ainda em construção. Amarelos, esbranquiçados, eles são camaleões nesta secura que se levanta na poeira a cada um de meus passos apressados. Parece que estou no Mojave, na Califórnia, prestes a participar de um duelo com um caubói ao anoitecer. As montanhas se aproximam e vejo o contorno de colinas mais baixas, logo à frente. Meus lábios estão rachados. O sol está na minha cara, me fritando, mas depois eu o vejo hesitar, querendo e não querendo se esconder atrás das montanhas. Quando começa a se decidir e a me deixar em paz, quando os prédios habitacionais acabam e começo a pisar na areia, alcanço as Torres.
A preocupação zoroastrista com pureza vai além de simplesmente respeitar preceitos morais. Há também regras especiais para evitar que os elementos como o ar e a terra sejam contaminados. Por isso, antigamente, existia um ritual que eles seguiam quando um membro da comunidade morria. Eles não eram enterrados, o que contaminaria a terra, nem cremados, o que mancharia o vento. Eles construiam torres - neste caso, chamadas Torres de Silêncio e colocavam os cadáveres no alto delas, sentados, sob o olhar atento de um sacerdote, que se sentava com o morto. Logo surgiam os abutres. As aves só deixavam os ossos, que eram então jogados em um poço próximo. A função do sacerdote era verificar qual dos olhos do cadáver os abutres arrancavam primeiro. Caso o primeiro fosse o direito, tratava-se de um bom sinal. Caso o outro fosse comido antes, mau agouro. O bizarro sistema "ecologicamente correto" dos zoroastristas se livrarem dos seus cadáveres foi abandonado há seculos, mas as torres permanecem, testemunhas da alegria dos urubus. Os seguidores da religião tiveram que procurar outra forma de resolver seu problema. Aparentemente, hoje a coisa é mais simples: eles enterram seus mortos em câmaras de concreto, que isolam o cadáver da terra.
As Torres de Silêncio se tornaram um dos principais pontos turísticos de Yazd e marcam mais uma das fronteiras da cidade com o deserto. Baixas, as Torres ficam praticamente invisíveis à distância, vistas do alto das colinas próximas, em meio a outras ruínas de casas e construções zoroastristas há muito desocupadas. Quando cheguei ao alto de uma dessas a colina, o sol estava se pondo. O vento parou. À distância, com a luz alaranjada e a poeira, a cidade parece ainda mais desolada. Tudo é estático. Não vejo um pássaro, os carros não aparecem, não há um pássaro, o único ruído é de algum turista por perto, alguma criança, não sei. A voz logo se cala. Yazd parece congelada no fim da tarde. No deserto iraniano. As Torres parecem paradas no tempo, no tempo em que eram o centro de tudo. No alto delas, está a cidade. E eu, planando em silêncio, esfomeado, sou o abutre.
Uma das Torres (esq.) narrando suas lembranças macabras
(Continua...)
Arcano9
Londres,
1/6/2006
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