COLUNAS
Quinta-feira,
1/6/2006
E Viva a Abolição – a peça
Lisandro Gaertner
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(Entram em cena dois senhores de bigode, ao som
daquela musiquinha da Escrava Isaura.
"Lele-lele-lelele". Cada um carrega uma placa no
pescoço dizendo Vilão de Novela)
Leôncio: - Barão de Araruna! Que bom vê-lo por aqui!
Barão: - Olá, doutor Leôncio. Como vai a vida?
- Nada bem, Barão. Nada bem. Esses malditos
abolicionistas e as suas idéias de libertar os
escravos estão tirando o meu sono. Não sei como
poderei manter os negócios se eles tiverem sucesso.
- Ora, doutor, relaxe. Quando a abolição vier,
ela trará grandes vantagens para todos nós.
- Como, Barão? Vai dizer que o senhor agora
comunga com esses ideais abolicionistas?
- De maneira alguma, doutor Leôncio. Mas, devo
dizer: acho que a abolição será uma boa e lucrativa
mudança. Preste atenção na minha linha de pensamento.
Quanto lhe custa manter um escravo hoje em dia?
- Bom, vejamos. Tem a senzala, a alimentação, o
feitor, o capitão do mato, as correntes, os chicotes.
Hum, cada escravo deve me custar uns 10 contos por
mês.
- 10 contos. Por outro lado, um colono lhe
custaria, agora, uns 20 contos. Mas, futuramente,
depois da abolição, acredite, meu caro, eles custarão
bem menos.
- Como?
- Veja só. Digamos que agora tenhamos 100
colonos. Depois da abolição teremos esses mesmos 100
colonos mais 300 escravos libertos, todos eles
competindo por uma vaga na lavoura. Isso sem contar
com os imigrantes que estão aparecendo por aí.
- E daí, Barão?
- E daí que serão mais de 400 trabalhadores
querendo um trabalho que pode ser muito bem feito por
40. Isso quer dizer que, como existem muitas pessoas
interessadas na mesma vaga, poderemos pagar muito
menos a um colono. É um simples de caso de oferta
versus procura. Assim, ao invés dos 20 contos de
hoje, ou dos 10 contos que gastamos com os escravos,
pagaremos a cada colono algo por volta de 5 contos ao
mês.
- Mas isso é genial! Como não pensei nisso
antes? Vou lhe dizer: nunca imaginei que o fim da
escravidão seria tão proveitoso.
- Você ainda não viu nada, meu caro Leôncio. Os
nossos lucros não param por aí. Quando todos forem
"livres", ainda precisarão de um lugar para morar.
Como não teremos mais as senzalas, planejo oferecer às
pessoas moradias um tanto parecidas com as casas dos
escravos, mas menos seguras e limpas. Algo que
chamarei de conjuntos habitacionais.
- De graça?!
- Claro que não, doutor. O senhor está me
estranhando? Como somos donos de todas as terras, eles
precisarão pagar a nós uma taxa pela moradia. Algo que
eu penso em chamar de aluguel. Para isso eles
precisarão nos dar algo por volta de 2 contos.
- Hum, pagaremos a eles 5 contos, ganharemos 2
do tal aluguel. Ainda estaremos lhes pagando 3 contos.
Será possível baixar esse valor ainda mais?
- Claro. O senhor esqueceu de algo fundamental: a
alimentação. Como qualquer pessoa livre, eles
precisarão comprar a sua própria comida. E quem produz
comida por aqui?
- Nós mesmos!
- Exatamente. Com a alimentação da família eles
acabarão gastando mais 2 contos que irão direto para
os nossos bolsos.
- Dois mais dois, quatro. Pagamos cinco, eles
ainda terão 1 conto para guardar.
- Para guardar, não. Para gastar.
- Com o quê? Eles já têm moradia e alimentação!
- Eu sei, mas a liberdade vai enlouquecer as
pessoas. Todos vão querer parecer melhores do que são.
Ter mais coisas do que podem ter. Afinal, eles adoram
se sentir ricos, mesmo sendo pobres. Por isso vamos
passar a vender besteiras que pareçam conceder status a esses pobres de espírito. Esses produtos serão
chamados de supérfluos e com eles, as pessoas gastarão
mais 2 contos por mês.
- Espere um pouco. Há algo errado com essa
conta. Eles ganham 5. Gastam 2 com aluguel, 2 com
comida, 2 com supérfluos. Eles ficarão devendo 1
conto. De onde eles tirarão esse dinheiro?
- Nós lhes daremos esse dinheiro.
- A troco de quê?
- Para cobrar juros. Somos ou não somos os donos
dos bancos da região?
- Meu Deus, se eu soubesse disso teria apoiado
a abolição antes. Se antes nós gastávamos 10 contos
com um escravo, agora ganharemos 1 conto pelo mesmo
trabalho.
- 1 conto mais os juros, meu caro Leôncio. Antes
nós gastávamos, agora eles pagarão e caro para
trabalhar! E não serão apenas os negros. Os brancos,
os asiáticos, homens de todas as raças e credos
pagarão para trabalhar para nós. Abolir a escravidão
será o mesmo que expandi-la. E o melhor de tudo é que,
ao contrário desses escravos ingratos, eles pagarão
para trabalhar e ainda se sentirão felizes.
- Como isso é possível?
Barão. Simples. Eles pensarão que são livres. E existe
algo melhor que a liberdade? Então, meu caro amigo,
você ainda acha que a abolição é um mau negócio?
- Pelo contrário, Barão. É um ótimo negócio.
Mas algo me passou pela mente. Até agora só tratamos
dos homens. Afinal as mulheres ficam em casa para
cuidar dos afazeres domésticos. Será possível
inclui-las nesse negócio? Os nossos lucros
duplicariam.
- Calma, Leôncio. Uma coisa de cada vez. Depois
da abolição, daremos um jeito de incluir as mulheres
nesse esquema também.
- E como faremos isso?
- Com um novo movimento, meu caro amigo. Um novo
movimento para libertar as mulheres. Algo que eu estou
pensando em chamar de Feminismo.
Leôncio: - Barão, o senhor é um gênio.
Barão: - Obrigado pelo elogio, doutor Leôncio, mas não
sou nenhum gênio. As pessoas é que são ingênuas
demais.
Lisandro Gaertner
Rio de Janeiro,
1/6/2006
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