As pernas formavam um arco, voltado para fora, uma delas mais curva que a outra e, focalizadas por trás, ocupavam a maior parte da tela. Caminhavam; o pé direito, a borda externa do pé direito, que estranhamente apontava para dentro, dava pequenos toques na bola que jamais se afastava muito, imantada por aquele pé torto que a conduzia displicentemente através do gramado, batendo de leve a intervalos sempre inesperados. Através desse arco via-se
outro par de pernas que executava uma espécie de dança, frenética, sapateando no mesmo lugar, ameaçando avançar contra a bola mas desistindo imediatamente e recuando, mantido em permanente estado de exasperação pelos toques imprevistos, impedido de conseguir a sincronia necessária para
avançar porque, todo mundo já sabia, aqueles toques não permitiam isso, a ninguém. O filme era em branco e preto e havia uma música poderosa tocando juntamente com o som do estádio repleto. A câmera, super lenta, mostrava - havia um artista também manejando essa câmera - os calções negros do clube da estrela solitária, as meias grossas, uma até o meio das canelas, a outra amarfanhada, caindo sobre as chuteiras de couro, pequenos torrões de grama
que saltavam a cada passada e, num momento digno de um Stanley Kubrick, a câmera muda seu foco e, entre o arco das pernas, torna nítida a torcida, emudecida, bocas ainda se abrindo para o grito uníssono, corpos que se erguem como uma onda, uma multidão mesmerizada, intuindo o instante que se aproxima e que ela, a multidão, reconhece: Mané arranca, pela direita. A cena muda nesse instante e outra câmera, posicionada acima do solo, mostra o campo, a zona direita da grande área; mostra Mané Garrincha fintando seu marcador com o drible impossível: corre para a direita, dois passos apenas, mas deixa a bola para trás. Mas faz isso com tal convicção e rapidez que o marcador se movimenta para interceptá-lo antes de perceber que a bola ficou. Mané Garrincha, como se ricocheteasse num muro invisível, já voltou para
onde a bola está e, no décimo de segundo que o marcador leva pra corrigir seu próprio movimento e tentar, como último recurso, um carrinho naquelas pernas tortas, Mané Garrincha já partiu, dessa vez com a bola, pela direita. Sentado no chão o marcador o observa - a cabeça balança, inconformada - enquanto Mané se afasta, um corisco, rumo à linha de fundo.
Ele se movimentava pela linha lateral direita do campo como se não existisse ninguém ali, como se estivesse em outra dimensão e, na verdade, estava. Tinha essa capacidade natural de estar sempre décimos de segundo a frente de qualquer um, a explosão muscular extraordinária que, na época, nem tinha esse nome, era apenas magia. Corria livremente rente à linha branca que limitava o campo, levando com ele a zaga adversária que não conseguia
sequer tocar a bola para escanteio, passando como um malabarista consumado no espaço de poucos centímetros entre as canelas dos manés - com letra minúscula - e a linha branca da lateral direita dos gramados. Na seqüência desse lance alguém entra na área, Didi, Vavá, não me lembro mais, e recebe o passe rasteiro, vindo da linha de fundo (qual jogador, hoje, recebe um passe
assim?) e, na corrida, enche a rede adversária. Mané volta caminhando para o meio do campo, comemora timidamente o gol com os companheiros, toques de mão e tapas nas costas, olha pra trás, por sobre o ombro e sorri marotamente para o goleiro.
Vi essa cena quando eu era menino, na casa - uma mansão - de um colega de sala cujo pai possuía um cinema particular. Quero me convencer, hoje, de que era um documentário do antigo Canal 100, mas não posso afirmar. Sei apenas que a cena não faz parte do filme Garrincha, a Alegria do Povo (de
Joaquim Pedro de Andrade) e, na minha inconsciência de menino de oito ou nove anos de idade, jamais atinei em pesquisar o assunto. Lembro-me apenas que esse colega meu, menino rico e boa praça, me levou até sua casa para me mostrar o projetor de cinema "de verdade" e entramos na sala de projeção no momento em que o pai, sozinho, assistia. Eu, emérito perna-de-pau das nossas peladas de rua, me confrontei, na sala escura, com o deus do futebol e sua
aparição na tela iluminada. A partir daí, de certa forma, desisti do futebol. Não só por saber que eu não era, nem seria (nem eu, nem mais ninguém) páreo para aquela demonstração de fluidez de movimento, de habilidade pura no ato de jogar bola, como também pelo fato de que aquela malícia, elevada ao estatuto de arte pelas dimensões da tela, registrada na sucessão dos fotogramas de um projetor qualquer, estaria ali, disponível como um maná para os famintos, os discípulos da malandragem, herdeiros da
esquiva; nós, brasileiros em suma. Isso me assustou. O maná do Mané congelou meu estômago e eu não tenho mais estômago para discutir futebol.
Há pouco tempo uma revista famosa no Brasil recebeu um número recorde de cartas quando levantou a questão de quem seria melhor jogador: o rei, Pelé, ou o príncipe etíope (tem cara de príncipe etíope) Ronaldinho Gaúcho. Entre as diversas opiniões houve aquelas que assinalavam o abismo entre as épocas, o futebol era assim, hoje é assado - não há dúvida de que hoje os
jogadores são atletas, antes de mais nada - e a especulação não leva a lugar algum, como em quase toda discussão sobre futebol. Houve realmente um rei, que eu saiba, com seus cavaleiros, sua távola redonda, mas eu procuro ainda pelo mago da côrte. Com ele não havia barreiras em campo, não haveria Parreiras que o disciplinassem, não haveria, como nunca houve, esquemas
táticos sendo que ele encarnava sua própria tática, solto no corredor estreito que demarcou como seu território exclusivo: o lado direito ao longo da linha que limita o campo adversário.
Manuel Francisco dos Santos, o Garrincha, bi campeão mundial, 58-62, morreu, me parece, em 1983, joelhos detonados, pobre, barrigudo, inchado de pinga, uma penca de filhos e de dívidas. Foi o "Anjo das Pernas Tortas" de Vinícius de Morais, a Estrela Solitária de Ruy Castro. Levou com ele um
tipo de magia que não existe mais.
Também sou fã do Mané e me emocionou vê-lo homenageado de uma forma tão bela, emocinante e agradável. O autor do artigo soube, como o Mané, ser simples e genial. Pode ser que o Guga não jogue bem futebol, mas seu domínio das letras é extraordinário! Parabéns! Queremos outros artigos do Guga!
Este artigo nos traz a sensação de que estamos realmente vendo o Mané jogar. Remete a coisas do passado. As observações do autor são sensatas e sensíveis. Quero ver mais artigos desse cara na revista. Vale a pena. Vou virar leitora assídua. Parabéns.
Nada sei ou entendo de futebol, mas lembro-me bem do Garrincha. Aliás, lembro-me bem da Elza Soares, figura marcante na vida do Mané. Relações que só o amor pode explicar. Puxa, o canal 100!!! Nossa!!! Cines Candelária, Metrópole, Palladium. Saudades desse tempo. Guga, você pode ter desistido do futebol, mas continua batendo um bolão nas artes. Escreve muito bem, pinta e desenha como poucos. Tenho por você essa admiração contínua e estável, passo a ser suspeita para tecer comentários. Se me permite, vou surfar lá no seu blog...rsssss. Um abraço.
Devem existir uns 200, 400, 1000 textos da mesma categoria desse aí, dentro das caixas de papelão espalhadas pela nossa casa - casa minha, do Guga e do pequenino Max. Essa mensagem é pessoal mas vai pra todos aqueles que escrevem, e escrevem muito, pensam mais ainda e depois guardam tudo em caixas de papelão que acabam no chão da despensa, porque o chão do escritório tem que ficar limpo. Esse Guga é esse cara, que eu admiro e amo há anos. Ver os outros verem o que ele é capaz de escrever me traz alegria - orgulho até. E um certo alívio de que talvez eu não tenha que ser a única testemunha desse talento.
Valeu Guga, por falar assim, com vigor e emoção, sobre um brasileiro nato, filho de índios, maior exemplo de alegria e arte no futebol. Garrincha é o cara, e o Guga também!
Desde pequenina que sou Botafogo. Herança do gosto de meu pai por esse time. Garrincha junto com os outros jogadores do time, como Nilton Santos, nos deram muita alegria e motivaram muita criança a se dedicar ao football. Ele foi único e mágico, e Guga soube descrever essa mágica de forma magistral.
Imagine Mané nessa época da Alemanha tecnológica, copa das 1001 câmeras, com "Reverse Angle" e tudo mais... Precisa, não. Gugão taí pra mostrar pra gente com palavras. Valeu, Gugão! Sou eu cada vez mais fã.
Eu não pude ver o Garrincha jogar; quando ele morreu tinha apenas três anos de idade. Eu não tive esse prazer. Mas como fica nítida a imagem do Mané contida no texto do Guga! Lemos o artigo e entramos na mente do cara. As imagens estão lá, perfeitas, em P&B: as duas pernas tortas entortando, talvez, as outras 22 adversárias. Valeu.
O Guga foi muito feliz no seu relato. Lembro-me bem que, no bicampeonato de 61-62, conquistado pelo botafogo, eu tinha entre 9 e 10 anos de idade e naquela época só se ouvia os jogos pelo rádio. Aqui na minha cidade, a rádio do então estado da Guanabara, que transmitia o jogo em ondas médias, entrava no ar com dificuldade. No entanto, nos momentos de escutar bem, só dava Mané Garrincha estraçalhando a defesa do Flamengo. Parecia que a conquista de 62 tinha sido um replay de 61. Só um gênio, um iluminado, pôde realizar tantas façanhas, entretanto sua ingenuidade e humildade não deixou que ele visse sua grandeza. Parabéns.