Antigamente era mais divertido: à entrada dos gladiadores na arena do Coliseu de Roma, a platéia delirava aos gritos esperando assistir e se emocionar com o rio de sangue que se derramava sobre o chão de pedregulhos, por onde caiam mortos os fracos. Se fossem cristãos os abatidos, maior o prazer, evidentemente. Para a sede de sangue, além de guerreiros havia ainda leões devidamente esfomeados para triturar as frágeis carnes humanas.
Mas na contemporaneidade a possibilidade de prazer ainda se oferece às massas... e a quem não se julga pertencer a ela (como escapar de uma Copa do Mundo?). Um prazer derivado não da sede mórbida por sangue e morte, um prazer sem a agressividade produzida por músculos devidamente preparados para destruir o oponente, um prazer pela espera da vitória grandiosa de um time de futebol, um prazer, sim, mas com a sua devida assepcia. Nada de violência, nada de constrangimento ao adversário.
Cada país se envolve como um todo no momento da entrada de seus guerreiros, digo, jogadores, em campo. Uns talvez mais do que outros (o caso americano é exemplar, preferem vibrar por outros esportes, mesmo em tempos de Copa do Mundo). Há toda uma publicidade sobre a Copa e um acentuado nacionalismo brota no coração de cada cidadão. A bandeira ressurge como símbolo maior do encontro de almas que torcem pelo mesmo objetivo, a vitória de seu país. A questão sociológica que se coloca é se este nacionalismo é natural ou implantado pelos marqueteiros de plantão, que vivem seus dias de glória durante acontecimentos como estes.
Pouco importa agora as divagações intelectuais, o que interessa é que os corações são possuídos pela paixão pelo futebol de tal forma que o gosto se universaliza, para além das ideologias. Não há saída, mesmo que você odeie e ache ridículo ver tantas pernas correndo atrás de uma bola. Se houver uma jogadinha mais artística em campo, um lance espetacular que leve ao gol, você vai vibrar, se extasiar. Vai querer mais. Vai esperar por mais. E se não acontecer muitos outros lances fabulosos, o pouco ainda será muito, te levando a uma satisfação enorme e esse momento lúdico da partida será glorificado por todos os aparelhos midiáticos mundialmente conectados em tempo real para exibir aquele lance de gênio.
Sede de gol ou sede de arte? Os dois, se possível juntos. Um drible arriscado, um chapéu que seja: eis a glória de todo torcedor. Temos um desejo enorme por arte e o futebol pode proporcioná-lo universalmente. Tudo bem que o tempo de uma jogada genial seja curto. Mas ressoará para sempre na nossa memória. Pelé não será lembrado na história humana para sempre por causa de suas jogadas inimitáveis? Não vemos e revemos insistentemente suas jogadas e seus gols com uma emoção sempre renovada? Sim, ali há arte e ela é assim mesmo, como dizia Stendhal, "uma felicidade para sempre".
No caso brasileiro, e de outros países periféricos, há um elemento ainda a mais para se considerar sua paixão pela Copa do Mundo: a idéia de uma possível revanche. Sim, nós, os campeões em desigualdades sociais, o país da miséria, do crime, da justiça injusta, do racismo camuflado, dos políticos salafrários e inconseqüentes, assistimos encantados àquele menino magrinho, nascido na periferia, driblar, com sua genialidade, os grandalhões bem alimentados pela glória da sua riqueza historicamente assentada (em parte adquirida com o trabalho escravo do terceiro mundo).
Freud explica esse nosso prazer. Um mecanismo de compensação vivenciado ao mesmo tempo por uma grande massa de fracassados que encontra ali, na vitória de seu time, sua "descarga vingativa". Assim é melhor, não precisaremos pegar em armas e colocar nossa vida em jogo lutando contra a opressão dos países dominadores. Outros estarão na arena por nós e vencerão simbolicamente por todos nós. Afinal, somos civilizados, bem comportados, politicamente corretos. Não é mesmo? E o que importa é mostrar para eles como somos "diferentes", "artísticos", mesmo com a nossa miséria indestrutível. Afinal, temos a nossa "verdade tropical" (risos).
Durante a Copa do Mundo podemos identificar quem são os donos do mundo. Basta olhar pelas laterais dos campos durante os jogos e ver as marcas que aparecem cercando o gramado. Já reparou nisso, caro leitor? O que se exibe pode ser também um perigo, pois estes serão os prováveis alvos dos futuros homens bombas.
À parte tudo isso, aqui estamos nós, queimando de amor por nosso país, por nossos jogadores, pelo brilho fugaz de uma jogada divina, por um gol de mestre. Mais vibrante que uma batalha romana, uma bola lançada sobre a cabeça ou sob a perna de um jogador nos transporta para uma vibração alucinante que, talvez, devêssemos procurar em outro lugar. Onde?
Só uma coisa nos desagrada, a todos, creio eu: o funcionamento técnico dos jogos, a pobreza artística dos jogadores que a cada dia que passa são sistematicamente treinados para perderem sua individualidade, seu estilo próprio, como havia nos atletas do passado. E sem esse estilo, não existe arte. Há a vitória, que queremos de qualquer maneira, mas a vida tem sede de arte e sem arte o futebol corre o risco de tornar-se um esporte desinteressante para nós e por todos. Aí será seu fim.
Caro Jardel, faz tempo que não nos falamos. Mudei de provedor e, conseqüentemente, de e-mail, não sabia mais o seu e assim nos desencontramos. Talvez vc não lembre de mim. Sou aquela garota de Recife, interessada nos clássicos, especialmente os russos e franceses. Finalmente, iniciei a leitura de Em Busca do Tempo Perdido. Ainda estou no Caminho de Swan, entorpecida. Desde já, obrigada pelas boas dicas. Quanto à Copa, como não se envolver? Difícil, mas acho fundamental diminuir o volume da Globo.