Dia desses fui classificado como um chato (nenhuma novidade, pois eu mesmo me intitulo de chato e costumo, jocosamente, dividir as pessoas em duas classes - a dos chatos e a dos mais chatos ainda), mas um chato não da chatice costumeira com a qual usamos tal vocábulo, mas sim o chato por ter de ser sempre do contra. Sou um chato por ser do contra, por não gostar de dar presentes, por não gostar de comemorar datas como Dia dos Namorados ou Natal e também por detestar a festa de Ano Novo (sempre a mesma coisa, sempre as mesmas promessas de mudanças e, invariavelmente, sempre os mesmos erros... o ser humano não muda). Mas agora eu sou um novo chato, sou mais que o normal porque eu torço contra o Brasil na Copa!
Sim, caro leitor, podem me condenar aqueles embriagados de amor pela seleção, pois eu sou um torcedor contra a seleção. Não me conformo como podem os colegas brasileiros torcer a favor de uma seleção de estrelas, que não joga a bola que todos queremos ver, que tem como grande mestre um senhor ultrapassado como Zagallo que só sabe falar do número 13 e como técnico um homem com fama de retranqueiro, que se preocupa com o antiespetáculo em que se transformou o futebol. Não suporto a idéia "parreiriana" de, em primeiro lugar, não levar gols, depois vamos pensar em fazer algum... Para mim é a morte a goleada de 1 a 0 que parece ser o objetivo de Parreira na seleção. A vitória tornou-se meta suprema, funcionalizou-se até a arte no futebol. Parreira e a seleção do tetra foram responsáveis diretos por isso.
Tenho nítido para mim que uma coisa é o Brasil, outra a seleção. Muita gente não tem essa distinção e acaba por crer num único ente, como se torcer pela seleção fosse torcer pelo Brasil. Oras, eu torço pelo Brasil, mas não por esta seleção. Torcer pela seleção não vai fazer o país melhor, mas sim apenas aqueles jogadores - que vão ganhar mais milhões do que já costumam ganhar - e membros da CBF. Sem contar o Lula, mas este parece que vai ser reeleito com o hexa ou não. O povo vai ficar feliz e se iludir, mas o país continuará a mesma porcaria. Aqueles jogadores, campeões ou não, não querem saber do Brasil, afinal, moram na Europa, não pegam ônibus ou metrô lotados, não têm dívidas a pagar e não trabalham desde quando o sol nasce até quando se põe. Ganham em euro, moram em mansões, Brasil é sinônimo de férias e família, e de vez em quando só.
(Outra coisa que separa Brasil e seleção - premiação. Questiono: é sensato defender o país e ganhar 200 mil reais - ou dólares, não lembro ao certo - cada jogador? Não deveriam eles jogar por orgulho do país e livre e espontânea vontade? Continuemos: é interessante sermos penta e talvez hexa em breve e termos no país clubes falidos, sem jogadores de grande expressão e talento e estádios vazios? É inadmissível vermos essa calamidade e continuarmos a aplaudir nossos jogadores no exterior, a encher estádios, dar show de bola enquanto aqui não se consegue manter nem jogadores medianos... Por que a milionária CBF, que fatura milhões e milhões com Nike, amistosos sem nenhum valor além do comercial e premiação da FIFA, não investe nos clubes nacionais, não usa esse dinheiro para fazer do futebol no Brasil a potência que é o futebol do Brasil?)
Já escrevi aqui neste mesmo Digestivo sobre a triste e cômica despedida de Romário da seleção quando houve aquele pseudojogo de futebol contra Guatemala no Pacaembu. Não há nada que mais me irrite - e me instigue a torcer contra - do que o espaço e a paixão que imprensa e sociedade em geral destinam a jogadores de futebol semi-analfabetos, milionários, que foram jogar no exterior, ganham milhões para vestir uma camisa e outros tantos para fazer propaganda de qualquer coisa. Não suporto ver o caderno de Esportes do jornal a notícia da milésima loira gostosa que o Ronaldo, o gordo, está catando, a boate em que ele apareceu e bebeu, a roupa que a namorada vestiu e desfilou etc. etc. etc.. Por que o endeusamento de um jogador como Ronaldo que deixou de ser jogador há tempos para se transformar numa figura pop, uma celebridade?
Pensando nisso, não há como não lembrar da figura da estrela de cinema, que não era nem o ator nem o personagem. Lembro do estudo de Edgar Morin sobre as estrelas, As Estrelas - Mito e Sedução no Cinema (José Olympio), em sua definição de que a estrela seria a fusão entre o ator e o personagem. Segundo ele, "à medida que o nome do intérprete se torna tão ou mais forte que o da personagem, começa a se operar enfim a dialética do ator e do papel, na qual surgirá a estrela". Essa dialética a qual ele se refere é justamente uma contaminação recíproca entre ator e personagem, cada um encarnando o que trazem de si no outro.
Pois bem, no futebol (não só nele, mas em praticamente todo meio que tenha na figura humana o centro de sua ação e possa gerar lucros) parece que vivemos também essa dialética do jogador de futebol com o vendedor, com o publicitário, com o capitalismo. O jogador de futebol, hoje mais do que nunca, é uma celebridade, tratado como tal, como uma espécie de deus (não à toa chamam vários deles de rei, deus da bola, mágico, todas expressões que nos remetem a poderes além dos meros humanos). Mas, ao final, temos em si o sujeito como um mero produto midiático.
Escreveu Morin: "sua vida [da estrela] privada é pública, sua vida pública é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica". Seria a vida de Ronaldo, o gordo, real? Seu contrato vitalício com a Nike, que lhe rende milhões, é real; seu contrato com o Real Madrid é real; sua capacidade de jogar futebol, demonstrada desde quando despontou no Cruzeiro, é real, mas e sua vida pessoal com mil mulheres diferentes? E seu casamento com a Ciccarelli? E sua vida amorosa e afetiva, a relação com amigos, parentes, ex-namoradas, ex-casos? E sua vontade de jogar futebol hoje em dia? E o medo de assumir que está gordo, que está fora de forma e que isso o impediria de desenvolver seu melhor futebol? Não seria Ronaldo, o gordo, uma espécie de espectro do futebol brasileiro nos últimos três anos, pelo menos desde quando se transferiu para esse pseudoclube de futebol que é o Real Madrid (um clube que contrata não pelo que o jogador possa render dentro de campo, mas sim o que possa render fora de campo não deve ser levado a sério)? Não seria ele uma figura surreal, sua vida um mito do qual muitos tentam tirar lições?
Os mitos, segundo Karen Armstrong, em Breve História do Mito (Companhia das Letras), são histórias universais e atemporais que moldam e espelham nossas vidas - exploram nossos desejos, nossos medos, nossas esperanças. São narrativas que refletem a condição humana e nos ajudam a compreender quem somos. Se o mito é uma forma de exemplo a moldar comportamentos e anseios, não entendo por que a imprensa e opinião pública preservam tanto Ronaldo (não só ele, claro). Ronaldo é um mito corrompido pela sociedade doente em que hoje vivemos. Ele foi (tenta ainda ser) um baita jogador (fenômeno, dizem alguns exagerados), mas atualmente não o é. Ronaldo deixou de jogar bola faz tempo, e sua vida privada que é pública ajudou nesse processo de desinteresse pelo futebol. Afinal, se ele continua a ganhar milhões, aparece na imprensa mais em páginas de fofoca e cada vez com uma namorada nova do que no caderno de esportes, a imprensa não cobra nada e sempre passa a mão em sua cabeça a consolá-lo (coitado, fez cirurgia no joelho duas vezes, deu a volta por cima etc. etc.) por que haveria de cobrar dele e exigir um bom futebol, mesmo numa Copa do Mundo? Por que querer futebol se ele oferece a todos diariamente outras formas de produto midiático que não o futebol - a discussão em torno de seu peso, de seu novo contrato, de seu novo carro, de sua nova paixão (amor, não? Aliás, é possível o amor a uma pessoa como Ronaldo?), de uma nova bolha no pé... Ronaldo alimenta como um grande mito a imprensa de diversas formas, até bate-boca com o presidente ele arrumou.
Não, futebol é o de menos que se quer de Ronaldo e outros tantos. Quer-se entretenimento, quer-se sua imagem vendendo jornais e produtos, quer-se a estrela na qual o transformaram, não mais o jogador de futebol. Querem o mito às avessas. Afinal de contas, deixemos o futebol para os mortais, aqueles que de fato importam numa seleção. À imprensa, que investiu milhões e precisa de retorno, temos Ronaldo e a máquina de fazer notícias. É por figuras mais sérias que ainda jogam futebol que talvez seja possível que eu tenha de engolir o Zagallo, Ronaldo e outros mais dessa seleção. Mas, enquanto isso, torço contra! Torço para Argentina e Holanda, que foram minha aposta no bolão em que participo. Entre o bolão e o hexa, fico com o bolão, pois não tenho contratos milionários com empresas esportivas nem nada. Chega de premiar e glorificar a incompetência e a corrupção que é o futebol no Brasil. Enquanto tivermos bons jogadores a conquistar títulos, nada vai mudar. A catástrofe é condição sine qua non para o renascimento do futebol no Brasil.
Sou chato mesmo, do contra... mas quem não é que atire a primeira pedra. (Saudades do futebol...)
Caro Lucas. Gostaria de completar a sua lúcida chatice e dizer que já estar escrito nas estrelas quem será a seleção campeã.
Ou alguém imagina que o espírito ariano de Hitler foi enterrado com ele no Bunker? Como nós não temos nenhum Jesse Owen, já viu, né?
Que bola é essa que queremos ver afinal? Acredito, sim, que a torcida tenha o direito de ver realmente um bom jogo de futebol. Mas jogar o futebol arte tem lá seus efeitos colaterais como nas seleções de 82 e 98, cheias de astros do nosso futebol que voltaram pra casa vaiados pela torcida após Paulo Rossi e Zinedine Zidanne. Assim não dá! Ou jogamos o futebol arte ou o futebol de resultado. O certo é que nossa seleção deixou de ser exclusividade dos brasileiros e passou a ser cobrada pelo mundo inteiro. Deixo uma sugestão: lembram-se dos Globe Trotters DO Harlem? Saem pelo mundo recebendo para dar show de basquete, pois a seleção tem o compromisso de arrematar títulos. Vamos criar uma Seleção Brasileira de Futebol estilo Globe Trotters e quem quiser ver espetáculo que pague por isso, pois na copa do mundo eu quero é ser campeão!