É difícil acreditar que seres humanos, com todo o tempo ou habilidade do mundo, com toda a paciência e com o apoio de qualquer técnica, possam ser capazes de construir obras tão perfeitas. É difícil acreditar que não foi Deus, Ele próprio, que veio à Terra e decidiu dar uma prova irrefutável de sua grandeza, como que para lembrar às pessoas o quão pequenas são elas. Contudo, aparentemente foram pessoas de carne e osso as responsáveis por cada milímetro das mesquitas Imã e Sheikh Lotfollah, que ocupam os cantos sul e leste da Praça Khomeini.
A mesquita Imã tem um portal monumental em frente à longa praça retangular, do lado oposto à principal entrada do bazar de Isfahan. Dizem que, antigamente, a praça de 500 metros por 160 metros era usada como campo de pólo. Ao contrário do que acontece normalmente nas mesquitas, o portal da Imã não conduz diretamente a um pátio interno. Para alinhá-la com a direção onde fica Meca, a mesquita foi construída para o lado direito. Quem atravessa o portal tem que pegar um corredor para a direita, e aí encontra o pátio interno. Ao redor desse pátio, há três imensas edificações com cúpulas e arcos. A superfície dessas edificações, mais o prédio onde fica o portal de entrada, é inteiramente trabalhada com mosaicos coloridos, formando as mais intricadas ilustrações.
Para um visitante, para fotógrafos, a mesquita Imã representa um desafio invencível. Para onde olhar? Do que tirar fotos? Cada mosaico, cada tema floral descrito nas paredes, merece uma foto. Os azulejos usados nas composições são todos em tons de verde, azul, amarelo e branco. Para onde quer que os olhos apontem, só há grandiosidade, e o conjunto não pode ser visto isoladamente em seus detalhes. Os detalhes, por mais lindos que sejam, não traduzem este monumento. Tudo parece remontar à inspiração divina, à abnegação. O corpo, ou a carne, são sacrificados em nome de um bem maior, que é o mais próximo da perfeição que um ser humano pode chegar.
A mesquita Lotfollah, do lado direito da praça, é bem menor, mas concentra a grandiosidade e impressiona há muitos tanto quanto a irmã maior. Sua cúpula externa tem uma cor indefinida; parece amarela, parece bege. O sol muda de posição, sua cor muda junto. Neste momento, de manhãzinha, é de um ocre escuro, reforçado pelas sombras causadas pela posição baixa do sol. O interior da cúpula é uma mandala. Ao entrar, o visitante tende a só ver o teto, procurando algo nele que nem se sabe o que é. Minha longa visita foi marcada pelos gritos dos turistas. A cada grupo que chegava, novos suspiros, mais cabeças erguidas pela força hipnótica do teto. Em um local como este, é natural sentir vontade de rezar. Agora entendo o objetivo de tantos detalhes. Que homem poderia ter criado tal universo em miniatura?
Shah Abbas I. Se Tamerlão teve sua Samarkand, Abbas teve Isfahan, sua maior obra e seu maior sonho, e a Praça Khomeini é o momento mais importante desse sonho. As obras na mesquita Imã começaram em 1611. Só o portal de entrada demorou quatro anos para ficar pronto. Só 18 anos depois de iniciada a obra, em 1629, último ano de reinado de Abbas, que a mesquita foi terminada. Grande parte do que se vê na mesquita é original daquela época, o que torna a construção ainda mais impressionante - tantos detalhes, tanta perícia com as técnicas existentes há quase quatro séculos atrás. O mesmo vale para a Lotfollah, que, diferentemente da maioria das mesquitas, não tem um minarete nem um pátio interno, só a sala com o domo mandala. Ela foi construída entre 1602 e 1619 em homenagem ao sogro de Shah Abbas, cujo nome foi conferido à construção. Lotfollah era um reverenciado estudioso do Islã vindo do Líbano, convocado pelo rei para supervisionar justamente a construção da mesquita Imã. Fez um excelente trabalho.
A arquitetura de Isfahan já mereceu livros e livros de análises, elogios, histórias. A praça monumental e as duas mesquitas são apenas os principais elementos. Há ainda a mesquita Jameh, ao norte do bazar, que junta elementos construídos pelas mais diferentes dinastias e conquistadores que estiveram no Irã: há partes da época de Tamerlão, da época dos turcos seljúcidas e dos próprios persas do passado. Há os palácios de Ali Qapu (na própria Praça Iman Khomeini) e o Chehel Sotun, com seus magníficos afrescos nas paredes e muitos outros locais. Encontrei a todos preservados e com riqueza de informações disponíveis para os turistas, que inundam a cidade vindos de todo o país e do exterior. A história do Chehel Sotun é particularmente interessante, tendo em vista as características de seus afrescos: há imagens de mulheres seminuas que têm tudo para deixar irados os muçulmanos mais radicais. Pouco depois da Revolução Islâmica, só a insistência e a habilidade diplomática dos responsáveis pelo palácio em suas negociações com as autoridades garantiu a sobrevivência das lindas pinturas.
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Seus olhos cintilam, refletindo o sol poente. São olhares de garotos jovens, de uns 18 anos de idade, tiradas uns 20 anos atrás. São dezenas, centenas de fotos. Um mar de fotos, algumas já estragadas pela chuva e pelo vento. Ao meu lado, vejo um senhor de 40 anos. Ele chega em silêncio, se ajoelha em frente a uma lápide. Olha a foto rapidamente, depois baixa a cabeça. Agora, parece conversar com o morto. Com os dedos da mão direita, bate de leve na sepultura, como se batendo de leve nas costas de alguém. A luz do pôr-do-sol é laranja e incide sobre a cabeça do senhor ajoelhado. A foto cria uma sombra longa que vai até o peito do visitante.
No norte de Isfahan, o cemitério Golestan-e Shohada, ou "Campo de Rosas dos Mártires", abriga sepulturas de soldados que foram vítimas da Guerra Irã-Iraque (1980-1988). Ver as fotos, e ver pessoas visitando as tumbas 25 anos depois de terminado o conflito, é tocante - mesmo para uma pessoa como eu, cujas únicas lembranças do conflito são os boletins lidos por Sérgio Chapelin e Cid Moreira nos Jornais Nacionais da minha infância. Para o Irã, esse foi um grande desafio enfrentado pelo Aiatolá Khomeini logo depois da queda do xá. Foi o primeiro grande desafio da Revolução Islâmica: conter Saddam Hussein. Em 1980, Saddam iniciaria o conflito ao tentar anexar a região do Shatt Al-Arab, um delta na fronteira sul entre os dois países. Em defesa de seu território, Khomeini extrapolou. Em breve, um objetivo claro se tornou trazer para o Irã as cidade de Najaf e Karbala, onde estão santuários de dois dos imãs mais queridos dos xiitas, Ali e Hussein. Se Saddam esperava se aproveitar do caos que tomara conta do Irã no período pós-Revolução Islâmica, cometeu um erro de cálculo, já que o aiatolá usou a ameaça de um inimigo externo justamente para unir o país em um tempo de crise. O conflito foi sangrento, desumano, doentio. Dois povos irmãos, compartilhando séculos de História. Por trás dos tiros, os interesses das potências ocidentais, particularmente os Estados Unidos, preocupadíssimos com o "demônio" na figura do barbudo e sisudo Khomeini.
Não se sabe ao certo quantos morreram no conflito. Estima-se algo em torno de 500 mil em cada um dos lados, mas possivelmente foi muito mais. Uma geração inteira de homens foi dizimada no Irã e no Iraque, e para quê? Para nada. Ao fim do conflito, o mapa não mudou. O que mudou foi a cabeça dos que sobraram, com as cicatrizes profundas que sobrevivem até hoje entre os mais velhos. No noticiário nestes dias, um dos destaques foi que, após tantos anos, um vôo comercial saído do Iraque pousou no Irã. Os dois países se aproximam, com grandes implicações. Novamente, ressurge o temor que o Irã tente "exportar" seu modelo revolucionário, e não há país no mundo mais propício para adotar tal modelo do que a agora República xiito-curda do Iraque. A participação dos sunitas nas eleições parlamentares no país foi um grande alívio para os americanos, que esperam ver o país com sua integridade preservada, apesar do ganho de poder dos xiitas, que formam a maioria da população do país. Mas a aproximação com o Irã não pode ser descartada e, para o presidente iraniano Ahmadinejad, galgando mais e mais posições como o grande porta-voz anti-Ocidente no mundo muçulmano, a mudança só pode ter um bom significado.
Ahmadinejad aposta que os jovens, que pouco ou nada se lembram do conflito contra o Iraque, vão apoiá-lo na sua batalha pela "independência" iraniana. O programa nuclear está de vento em popa, para "fins pacíficos". Os iranianos estão cansados de desconfiança dos estrangeiros e agora devolvem na mesma moeda. Para muita gente no país, a desconfiança da Europa e dos Estados Unidos em relação ao programa nuclear é a mesma que sempre existiu em relação à "teocracia" de Khomeini, a mesma desconfiança que levou o Ocidente a apoiar Saddam na guerra dos anos 80. A desconfiança dos iranianos ficou clara para mim quando tentei, por pura curiosidade, perguntar ao velhinho que ficou meu amigo em Isfahan se ele sabia onde fica a famosa instalação nuclear da cidade, reaberta após o fracasso das negociações do Irã com países europeus. O velhinho, geralmente falador até demais, ficou repentinamente calado. "Sim", respondeu ele, após alguns segundos constrangedores. Depois que continuou o silêncio, ele finalmente acrescenta: "fica a leste da cidade, a uns três quilômetros daqui". Mais silêncio. Mudamos de assunto. Pensei: talvez ele não ache que valha a pena falar sobre o assunto. Talvez ele ache que não valha a pena falar sobre o assunto comigo. Ou talvez não haja o que falar, ou seja melhor não falar. (As pessoas no Irã estão longe de ter liberdade de expressão. Os avanços rumo à liberdade de imprensa durante o governo do presidente reformista Mohammad Khatami têm sido alvo constante dos conservadores. Muitas publicações reformistas têm sido fechadas. A Anistia Internacional diz que "um grande número de críticos e oponentes do governo continuam sendo presos, muitos depois de julgamentos claramente injustos, a pena de morte é usada amplamente e a tortura é comum". O senhor idoso viveu a perseguição do xá - sabe que as coisas estão melhores, mas o medo não acabou. O tempo passou e ele aprendeu.)
O tempo passou. Estou indo embora.
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Uma longa caminhada solitária às margens do Rio Zayandeh. No horizonte próximo, ao sul e a leste, as montanhas. As do sul são particularmente bonitas e altas, mas, por algum motivo - talvez a poluição, talvez a luz do sol - eu não consigo distinguir se elas têm árvores ou não. Prefiro imaginar que sim, que elas foram transplantadas da Serra do Mar, e que na floresta há bananeiras e chapéus-de-sol. É engraçado como essas montanhas me dão uma sensação reconfortante. É como se eu soubesse onde estou, apesar de, lembrando o que fiz nas últimas horas, o panorama de mesquitas e pontes monumentais me seja tão alienígena. São as montanhas que refrescam esta cidade. Todas as roupas de frio que trouxe estão sendo colocadas à prova. Eu sou um microcosmo do resto do mundo. Meu gorro de lã é islandês; meu tênis, um Reebok americano, comprado em Orlando. Minha jaqueta, londrina, minha camiseta, do Shopping Morumbi, em São Paulo. Tantos elementos exóticos, sob o efeito deste ambiente, têm uma interação inesperada, levando a uma reação química em que eu sou o tubo de ensaio. Sinto a reação. Vou caminhar mais um pouco para ver o resultado.
Acho que o Irã também está andando. É um país belíssimo e caótico, de um passado incrível, com séculos de história. Com problemas sérios de direitos humanos. Está trilhando um caminho, inegavelmente o seu próprio, bem diferente do islandês, do americano, do britânico, do brasileiro. Será que esse caminho é o correto? Não é melhor caminhar para o outro lado? Será que é melhor caminhar acompanhado, tendo com quem conversar? Será que é melhor ouvir conselhos sobre para onde caminhar? Ficar com medo de ir em certa direção porque dizem que é perigoso? Não sei. Só sei que é necessário caminhar, e é melhor escolher seu próprio caminho. Por isso eu vim para cá. Espero que o Brasil, os brasileiros, estejam fazendo o mesmo.
A mandala no teto no interior da mesquita Lotfollah
Sinceramente? Eu não teria coragem de ir praí. Também, sinceramente, tenho ainda a esperança de que as coisas melhorem. Não vai acontecer amanhã ou depois, ou daqui a alguns meses ou 1 ano. Mas sei que é possível melhorar. Basta que caia sobre os homens que governam as nações envolvidas em toda essa questão bélica, um pouco de bom senso. E sobre os civis que levam suas crenças religiosas ao extremo também, óbvio.
Arcano, grande jornada! Pela tua caneta, quero dizer pelo teu teclado, parece que aprendi muitas coisas sobre o Irã. Pena que eles não gostem de cachorros...