Como é que alguém reconhece um poema? Boa pergunta. Como é que alguém começa a escrever poesia? Por que alguém acha que sabe quando um texto é poesia e quando ele não é? E aquelas pessoas que dizem que você "está no caminho certo"? Que trajeto é esse? Quando começa e onde se estabiliza?
Um dia a professora ensinou o que era rima. Disse que ão rimava com ão. A classe inteira entendeu. Depois ela disse que poema era um texto escrito em verso. Era só escrever a frase e terminá-la em duas ou três linhas diferentes. Junte-se isso à rima e será provável acontecer um poema. Certo? Errado.
Mais adiante, um toque de métrica. Todos os exemplos de bons poetas. Olavo Bilac, uma máquina de calcular. Para ficar mais moderno, Chico Buarque. Não o músico, mas o poeta. Dizia Leibniz: "O prazer que obtemos da música vem da contagem, mas da contagem inconsciente. A música nada mais é do que aritmética inconsciente". Ai, meu Deus, eu nem sabia disso. Se soubesse, não teria gostado de música. Agora é tarde.
Mais adiante, outra professora mandou ler Manuel Bandeira. Aí alguém descobriu que nem sempre rima, nem sempre verso, nem sempre palavras bonitas. Poesia era o clima. Leminski ainda nem havia nascido.
Mas o trajeto acaba aí, quando alguém tem que ler os livros do vestibular e estudar para a prova. O trajeto só não acaba quando alguém resolve pegar um caminho paralelo. Vai lá, faz as próprias escolhas e avança pela direita. Não tem mais prova, nem múltipla escolha e nem "redija um pequeno texto". Só tem vontade e ritmo.
E vai treinando, vai experimentando, livre para gostar e para detestar. Pega emprestado, compra, aluga. Vê o filme e lê o livro. Edição e reimpressão. Apresentação, prefácio, posfácio. Lê mais um. Um desconhecido. Poeta brasileiro, empreendedor. Edição própria, edição de bolso. Até que a poesia se instala. Como se fosse um software? Mais ou menos. Um reconhecedor de poetas apita quando um texto é poesia. E engraçado: não precisa ter gostado. Alguém separa quando é gosto e quando é fato. Certos poetas são poetas, mesmo que eu não goste do que eles fazem na sua sesmaria de papel. Não é problema meu. Mas há poetas que não o são. Como é que alguém sabe?
Maior dificuldade do mundo é explicar para alguém, um aluno, que seja, que literatura não é qualquer coisa. Não é juntar palavras bonitas e soltar assim, num desarranjo calculado. Nem é estilhaçar os sentidos e deixar tudo meio flutuante. Nem mesmo pode ser picar as frases em versos de 12 sílabas.
Literatura não é, necessariamente, o conteúdo. Não é suficiente, para ser literatura, que se conte uma boa história. Digo esta literatura de arte. Há outras, claro. Mas não basta arranjar um mote sensacional. Faça o teste: distribua a boa idéia por uns 5 escritores e veja no que dão. Uns mais, outros menos. Uns nada. Uns fazem da boa história uma nuvem. Outros, capturam minotauros com ela. Há quem a deixe do mesmo jeitinho que encontrou. Não aumentam nela sequer uma característica.
Há outro exercício: dê aos 5 escritores uma história ruim. Veja lá o que acontece, de novo. Quem sabe fazer bonito arranja para a história outra beleza. Se a história não é boa, o texto é. Tanta coisa é assim. Clarice Lispector, meu exemplo preferido, tinha por hábito inventar (ou não) histórias banais e fazer delas textos lindos e emocionais. Ou vão me dizer agora que é bárbaro saber de um cego mascando chicletes?
Já Gabriel García Marquez conta histórias boas e movimenta o mundo com elas. Ainda por cima são belas se forem só letras. Literatura. E como se explica isso a alguém?
E se o alguém começa a escrever e pede: dá uma olhadinha? Ai, posso aqui matar um santo. Vou dizer que não é, mas pode ser. O texto é ruim, a história costuma ser também. Então é o texto que salva a história, quando o conjunto é literatura. Percebe? Se a história é ruim, mas a alma é literária, então está tudo bem. Mas se o texto for ruim, nem a boa idéia se salva. Tudo por água abaixo.
Mas volto ao problema: como explicar isso a alguém? É possível ensinar a ver? Não gosto de tratar do mundo como se tudo fosse questão de dom. Não gosto. Parece coisa divina. Divina, mesmo, só a transformação. Senão não dava nem vontade de continuar.
Se alguém me chega com um poema ruim, eu digo: ainda não. Não quer dizer que um dia não possa vir a ser. Pegue esse poema ruim e mande um poeta (mesmo) tratá-lo. Num lifting de texto, ganha o poema ares de arte. Mesmo se a idéia for fraca, como vela. E às vezes não é palavra aqui, substitui, corta, cola. Não. Às vezes só o poeta engolindo e vomitando tudo de novo.
Como explicar a alguém que literatura é uma forma de usar a linguagem? São as mesmas palavras que estão no dicionário. Em qualquer um deles. São as mesmas pontuações que aparecem nas gramáticas. Mas por que elas não parecem as mesmas? Como se aprende a dar nelas uma liga poética? É o inesperado, diria o diabo. Confio.
Literatura é linguagem carregada de significado. Noutras palavras, disse isso o sábio Ezra Pound. Depois disse que era significado à máxima potência. Meio Leibniz, parecia matemática. De repente, é. Fazer o quê? Literatura é uma espécie de poção que você faz com as palavras da sua língua, com os temperos do seu estilo e as intimidades que você tem com o seu idioma. Essas intimidades é que são o segredo. Intimidades que as moças da vida dão, e só elas. Porque se você ficar muito cheio de pudores, não sai mais do que uma combinação burocrática de palavras do dicionário.
Mas como é que alguém faz isso? Não nasce. Não nasce, insisto. Todo mundo nasce podendo. Inclusive qualquer coisa. É fazendo exercício, atividade, tentativa. É assim que alguém percebe o gosto que as palavras têm quando os textos são literários. Lendo, relendo, achando bonito.
Achar bonito já é outro problema. Achar bonito também não é para qualquer um que não tenha tentado. Achar bonito tem que ter olhos. Tem que ler e achar bonito. Quando alguém lê e pensa: como pode? Não é só a história, mas é o jeito dela. É assim. Como é que explica isso a alguém? Não sei. O jeito é fazer junto. Pegar alguém pela mão e tocar a fazer as coisas. Como as hortas, como os bolos, como os cultivos, de maneira geral.
Humm... achei bonito seu texto. E me parece que é assim mesmo. Tentar, rasgar folhas, começar outra vez, de outro jeito... ter a idéia, mas não ter tempo de colocar no papel. Bater a cabeça na parede de raiva por ter perdido a idéia. Depois ter outra idéia, desta vez com papel e caneta ao alcance. Escrever, ler, reler, ficar satisfeito. Ou de novo... Não é pra muitos. Mas quando se alcança, é muito bom. Dá uma sensação de "eu posso, eu faço". Eu não sei se sou. Dizem por aí que sim. Eu gosto, ao menos, de tentar ser. Obrigado!
Mais que uma boa pergunta. Talvez seja a pergunta fundamental da literatura. O que é poesia, afinal? Ana Elisa responde, em parte, algumas questões. O que já é muito. No entanto só o desejo de ser poeta não faz o poeta; nem disciplina ou esforço contínuo produzem, necessáriamente, boa poesia. Na verdade não produzem poesia nenhuma. O bom escritor pode simular, inteligentemente, um procedimento poético, mas nada é mais avesso à simulação do que um poema. Aquela história de 90 por cento de transpiração, 10 de inspiração, não serve pra poesia; que precisa de mais de 100 por cento de pura inspiração, os 90 de suor, mais uns 157 de dedicação, uns 415 de resignação... e por aí vai. Milhares de pessoas utilizam a forma poética em textos de toda ordem mas, repito, os poetas não são tantos assim. Ainda bem. Essa coluna da Ana Elisa, além de ótima, dá o que pensar.
O mais legal é não dar rótulos... porque tem tanta poesia que não está em verso... e por outro lado tanta prosa versificada. Acho que esse é o barato de quem sabe lidar com a língua, com as infinitas possibilidades que as palavras abrem. Abraços
Escrever, escrever, pra escrever tem que sangrar, sentir a dor do mundo e inspirar o mundo a partir da posia... viva poesia!!!
Ana Elisa Ribeiro, seu texto faz pensar e dá uma vontade danada de sair escrevendo versos, verbos que servem a versos, verborragir versaria infindável. Valeu!