- Bom dia, minha senhora. Sou do IBGE e vim realizar o Censo de 2010. Aqui está o meu crachá.
- Ah, tudo bem. O síndico já havia me falado que o senhor vinha hoje. Além disso, eu vi o cartazinho. Pode entrar, por favor.
- OK.
- O senhor gostaria de tomar alguma coisa? Um café? Um chá? Uns biscoitinhos?
- Não, muito obrigado. Tenho ainda muitos apartamentos para visitar hoje. Será que poderíamos ir direto ao questionário?
- Com certeza. Sente-se, por favor.
- Muito obrigado. Sua idade?
- Não se pergunta isso a uma dama...
- Eu sei, minha senhora, mas eu sou do Censo. Do Cen-So! Preciso saber dessas informações.
- Eu tenho... setenta...
- ...setenta e?
- O senhor me pegou. Setenta e sete.
- OK. Acredito que a senhora seja aposentada.
- Não, não. Eu sou escritora.
- Escritora? A senhora vive disso?
- Claro que não. Quem me dera. Apenas o Paulo Coelho consegue sobreviver de literatura do Brasil. Também, um homem de tanto talento... Dizem que ele até faz chover.
- Tá, sei, já ouvi falar sobre isso. E o que a senhora faz para se manter?
- Ah, eu recebo umas pensõezinhas.
- Umas?
- É, recebo uma do meu pai, que foi militar, e uma do meu marido, com o qual casei apenas no religioso. Além disso, eu fui professora primária.
- OK. Então, que ocupação eu coloco aqui? Sem ocupação ou escritora?
- Põe escritora que é mais bonito.
- Mais bonito... Tá certo. Olha, atualmente o pessoal tá pegando no pé da gente nesse lance de ocupação. Então, eu tenho que fazer umas perguntas para saber se a senhora realmente é escritora segundo os critérios da CBO.
- CB o quê?
- CBO. Classificação Brasileira de Ocupações. A CBO é uma lista que identifica as ocupações existentes no mercado, incluindo áreas de atividade, recursos e competências específicas. Sem isso qualquer um pode dizer que é qualquer coisa e o Censo não vai refletir a realidade. Então, posso perguntar sobre as suas competências de escritora?
- Pode.
- Primeira pergunta: a senhora costuma ler?
- Ler?
- É, ler.
- Tipo o quê?
- Ué, sei lá. Livros, revistas, jornais, esse tipo de coisa.
- Ah, meu filho, eu não leio, não. Quer dizer, hoje em dia, com a minha vista...
- Mas, como a senhora pode escrever se não lê nada?
- Bom, eu já li né. Sabrina, Júlia, essas coisas... ah, e, vez ou outra, no cabeleleiro, eu leio uma Caras, uma Contigo...
- Tá, vamos passar dessa. A senhora domina a língua?
- O que você quer dizer com isso, meu filho?! Tenha respeito! Não vê que eu sou uma senhora?
- Não, a senhora não entendeu. Estou perguntando se a senhora entende bem de português, escreve bem em português, entendeu?
- Ah, o português é uma língua tão complicada, né? Eu erro como todo mundo erra, meu filho. Quando eu era professora ficava com tanta pena dos meus alunos. Eles eram tão burrinhos... mas, vez ou outra, um deles até me corrigia. Isso era tão bonito.
- Tá. Vamos dizer que o seu conhecimento da língua é satisfatório. E sobre criatividade? A senhora é criativa?
- Eu sou muito criativa. Meu último livro, por exemplo, é muito criativo. É a história sobre uma menina que vem do Oriente Médio e se apaixona por um gêmeo. Aí aparece um clone...
- Calma aí. Isso aí não foi uma novela?
- Foi? Eu não lembro direito.
- Tá, vou colocar aqui que a senhora é suuuper criativa!
- Muito obrigado pelo elogio, meu filho.
- Bom, depois dessa, vejo que nem preciso perguntar sobre a sua intuição e senso de observação. Pelo jeito, os dois são ótimos.
- Exatamente. Você também é muito observador.
- OK. Vamos a questões mais práticas. Quando os seus livros foram publicados, a senhora mesma negociou o processo de edição? Entende de direitos autorais?
- Direitos autorais? Não, meu filho. Quem me entendeu errado, agora, foi você. Eu nunca publiquei um livro.
- Nunca?
- Nunca. Pra dizer a verdade, eu nem terminei o meu único livro.
- Não terminou nem um livro?
- Não, para dizer a verdade estou numa encruzilhada. Na minha história uma menina que é apaixonada por um boiadeiro vai para os Estados Unidos procurar fama e fortuna, mas não sei se ela deve ficar com ele no final ou com um americano rico.
- Mas a história não era sobre a menina do Oriente Médio? Deixa pra lá. Vou ser sincero com a senhora. Não acho legal a gente botar que a senhora é escritora. Não condiz muito com a realidade.
- Não dá mesmo? Nem fazendo uma forcinha? Que pena, eu conheço tanta gente que é escritor e não se encaixa nos critérios que o senhor colocou... Alguns até são meio famosos.
- Pois, é. Conheço vários desse tipo. Olha, acho melhor colocar que a senhora simplesmente não tem ocupação.
- Sem ocupação. Que coisa horrível de se dizer. Aposto que deve ser a pior "ocupação" dessa lista.
- Pode ficar tranquila, essa nem chega perto da pior. E olha que tem algumas "escritoras" que se encaixam direitinho nela.
Bem, Lisandro, deixando um pouco de lado a sua ótima observação sobre a escritora, aproveito a oportunidade para levantar uma questão que me irrita na carreira literária. O MTE tem em sua classificação de ocupação "Profissionais da Escrita"; o DPF tem em seu formulário de passaporte o código de profissão "546 ESCRITOR"; no entanto, a profissão de escritor, "profissionalmente", não é reconhecida, assim como a de músicos, atores etc. Eu penso da seguinte forma: antes de ficar reclamando de uma série de fatores que são inerentes à vida de um escritor e se brigar por leis de incentivos, é preciso refletir e tentar fazer "aquilo" que os escritores nunca fizeram, que é o reconhecimento e a profissionalização do escritor.
No mais, seu texto tem muita coerência, mas, vale lembrar que vivemos num mundo onde tudo é voltado para o lado comercial e, os oportunistas de plantão, sabem muito bem disso.
Sds...Elaine Paiva
Ó, se não fosse por você, eu nunca, mas nuuuuuunca saberia da existência dessa tal de CBO. Agora, deixa eu ir correeeeendo pra casa porque daqui do trabalho não consegui abrir o último link ("Sr. Usuário, o acesso a páginas não profissionais está indisponível.") Há espaço pro humor no Digestivo, graças a Zeus!
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk! ótimooooooooo! muito bom! Lisandro, vc está de parabéns... foi impossível não rir dessa crônica sua!
boa d+... e olha q eu nunca tinha te "reparado" por aqui, mesmo seu gênero sendo um dos meus preferidos... cbo? eu nunca soube dessa maluquice de requisito do censo...ai ai ai! mas e agora?
que porcaria! não vou poder nem mais mentir qdo o moço do censo passar lá em casa... justo esse ano q eu queria me passar por escritora... beijo e mais uma vez, parabéns!
Aprecio bastante sua coluna, mas achei o humor deste texto previsível. Talvez seja somente que eu já tenha ouvido muito esse tipo de piada... E parabéns pelos textos anteriores!