O leitor de hoje certamente conhece a banda Legião Urbana, que encerrou sua carreira musical com a morte de Renato Russo em 1996. Com meus quase 30 anos, sou da geração que viveu o auge da banda nos anos 90, só que tem um detalhe na minha biografia que deve ser mencionado: eu não ouvia Legião Urbana, e nem gostava de bandas de rock. Era preconceituoso mesmo, só queria saber de MPB. Isso nos meus 12, 15 anos de idade.
Claro que não era tão alienado de nunca ter ouvido algumas músicas, como "Monte Castelo", "Pais e Filhos", "Eduardo e Mônica" e "Que País é Este?", mas eu era daqueles que não gostava nem de passar perto. Passava tardes gravando em K7s músicas da Musical FM e nem aí para o que todos ao meu redor e da minha idade ouviam. Queria Tom Jobim, isso sim que era música, o resto era ruído. Até hoje penso assim de algumas bandas de heavy metal...
Minha relação com o Legião Urbana começou tardiamente, quase em seu fim. Na verdade, o primeiro CD que comprei da banda foi em 1996, alguns meses antes de Renato Russo morrer. Comprei o Música para Acampamentos, uma coletânea da qual não gostei de quase nenhuma música, tirando algumas clássicas. Ainda estava ressabiado com a banda, queria abrir meus horizontes, começara a ouvir Barão Vermelho e queria conhecer mais de bandas de rock nacional. O Legião era obrigatório para qualquer garoto que quisesse ganhar alguma menina. Na época, eu não conhecia Legião e não tinha ganhado nenhuma guria também. Era um outsider completo, de certa forma ainda sou, mas há 10, 15 anos, eu era quase uma aberração.
O Legião me conquistou, por incrível que pareça, não com "Pais e Filhos", o hit intragável de "Faroeste Caboclo" ou então o grito de guerra "Geração Coca-Cola". Nada disso me instigou a ouvi-los mais e mais. O CD que me marcou foi o derradeiro da banda, A Tempestade ou O Livro dos Dias. Aquele CD em formato diferente, sem a tradicional caixinha, mas sim um livrinho direto em papel, a cor azul, o disco preso na última capa. Aquilo sim que era um CD, aquelas músicas sim que me marcaram e ouço até hoje.
Lembro que comprei logo que lançaram, na minha ânsia de abrir o leque de opções de meu toca-CD (e ver se alguma garota se interessava por mim, afinal, o must daquela época era as rodinhas de violão e o garoto que conseguisse tocar "Faroste Caboclo" de cabeça...). Renato Russo morreu poucos dias depois. Não chorei como todos da minha idade choraram. Sei de gente que sentou atrás da porta do quarto e ficou a chorar, a cair em lágrimas como se fosse a perda de um ente querido. De fato, para aqueles jovens, ele era mais que isso. Algo que eu não sei porque não vivi sua morte como algo profundo. Para mim, ouvindo aquelas músicas de A Tempestade, parecia que Renato Russo já estava dando seu adeus, já escancarava a todos sua tristeza, melancolia, sua dor e sua angústia. A Tempestade derrama angústia do início ao fim, era de fato a última balada de um adeus encenado e bem orquestrado. O cantor e compositor despedia-se de todos pela música, e isso eu percebi.
Qual o impacto de um CD desses num garoto solitário, sem garotas, amante da segunda geração do romantismo, especialmente Álvares de Azevedo e sua Lira dos 20 Anos, que adorava o tema do sofrimento e da melancolia? Foi identificação à primeira tocada. "A Via Láctea", "Longe do meu Lado", "Dezesseis", "Mil Pedaços", "Leila", "Esperando por mim" e "Quando Você Voltar", músicas que detonavam meu lado romântico e desabrochava meu espírito nada sereno de que sofrer por amor era algo digno, louvável, edificante. Até hoje corre em minha mente certa idéia de que o verdadeiro amor é aquele em que não há o toque, a paixão, o sexo, o cotidiano. Haveria forma mais pura de amor que aquele alimentado e operado dentro de nossa mente, trabalhado pelo sujeito e canalizado para outro ser sem que houvesse a presença física? Amor sem o corpo. É possível amar sem o corpo?
Para ilustrar essa idéia, recorro a dois exemplos encontrados em um filme e em uma peça teatral. O filme é Adaptação, de Spike Jonze, com Nicolas Cage. Em certo momento, os dois irmãos gêmeos estão fugindo de um homem que quer matá-los e acabam por relembrar algo da juventude, da época do colégio. Um conta para o outro que este tinha feito papel de bobo diante da menina pela qual era apaixonado, pois depois que ele falou com ela, ela falou mal dele para a amiga. O irmão ouviu, mas não contou nada, só revelando aquilo naquele momento em que suas vidas estavam em perigo. O outro responde sem se impressionar algo assim: "isso é um problema dela porque eu tinha o meu amor, eu sentia aquilo e não deixei de sentir, eu vivi aquilo e fui feliz". Era o amor independentemente de haver correspondência. O amor platônico, vivido por aquele que ama sem se importar com a contrapartida.
O outro exemplo vem de Variações Enigmáticas, peça encenada com Paulo Autran em 2003 de um texto de Eric-Emmanuel Schmitt, traduzido pelo próprio ator (lançado em livro pela Editora Francisco Alves). Autran interpreta um velho escritor que mora isolado numa ilha e que recebe um jornalista para uma entrevista. Aquele senhor é austero, cínico e não perde a chance de cutucar o jornalista, que se revela um tanto fraco emocionalmente. O centro da conversa é sobre o último livro do escritor, que é uma reunião de cartas trocadas entre um homem e uma mulher que viveram uma grande paixão e se separaram voluntariamente. Desde então, viviam do amor emanado nas cartas. O amor entre eles era plenamente vivido por cartas, por demonstrações de amor e carinho escritas, sem se apegarem ao físico, ao estar junto, ao viver e envelhecer juntos. Assustava-o a idéia do cotidiano, da degradação da relação a ponto de evitar tudo isso simplesmente pela ausência um do outro. Em certo momento, questionado por que não se casaram, ele explica:
"Eu amava Helena. Queria que o 'para sempre' das nossas juras de amor durasse para sempre de verdade. Eu sei que a eternidade das paixões dura pouco. (...) Eu impus a separação para que nosso amor se fortificasse. (...) A vida a dois desenvolvia uma tensão intolerável: o fato de estarmos juntos na mesma sala, na mesma cama, nos lembrava sem cessar que nós éramos dois e não um. Eu nunca me senti tão só como quando roçava nela o dia inteiro. Nós nos jogávamos um sobre o outro para aplacar uma sede maior que nós, uma sede interminável, que se transformava em fúria, nós fazíamos amor noite e dia... longamente, furiosamente... queríamos nos transformar numa só carne. Para nos separarmos era como se tivéssemos que amputar uma parte um do outro. (...)
Você já percebeu a crueldade que existe em uma carícia? A carícia aproxima? Não, ela separa. A carícia irrita, exacerba; entre a palma da mão e a pele há uma distância intransponível, em cada carícia há uma dor, a dor de não se unir de verdade.
(...) ...queríamos destruir tudo que nos separava, ser um, enfim, um só em uma fusão definitiva. Mas era inútil, eu continuava eu e ela continuava ela. Então, tínhamos ainda a esperança do orgasmo; sentíamos que ele ia chegando, irresistível, aquele segundo em que nós ficaríamos enfim juntos, onde nós íamos nos confundir um com o outro, onde talvez, enfim...
Um espasmo. Outro espasmo. E novamente a solidão.
O orgasmo é apenas uma maneira de recair na própria solidão.
E finaliza com o seguinte:
"Aquilo não era mais amor, era escravidão. Eu só pensava nela, eu não escrevia mais nada, eu tinha necessidade dela."
Essa concepção do amor tem eco no que tenho em mim do Legião Urbana: uma ode ao amor aos termos românticos novecentistas, ao amor sem correspondência, distante, platônico, o sentimento de autocompaixão. E isso porque sofrível, doloroso, melancólico, mesmo aqueles amores que deram certo por um tempo. Parece que o amor, em qualquer caso, vai acabar. Parece que o homem busca o amor e o vive à espera de seu fim.
Penso comigo como seria a música "Eduardo e Mônica" se composta na fase final do Legião. Imaginem a versão que sairia se composta para o CD A Tempestade... Haveria amor possível entre duas pessoas tão diferentes quanto Eduardo e Mônica?
Lucas, está tudo muito bom, está tudo muito bem, mas não põe o Platão no meio. Olha só, Platão descreveu o amor com o sentimento de completude, aquela história de metade da laranja, alma gêmea e perfeição muito bem correspondida e realizada fisicamente, sim. No Romantismo, um personagem de Goethe, o jovem Werther, declarava seu amor platônico por uma mocinha e, por não ter seu amor retribuído, se mata. Pronto, estava feita a associação com amor platônico e não-realização. Naquela época muito mais gente leu Goethe que Platão, mas citar os gregos sempre pega bem, parece chique, de modo que até hoje permanece a idéia (errada) de amor platônico (=não correspondido), espiritualizado, não concretizado, idealizado. Você pode continuar romântico, fique à vontade, é muito bom para aprofundar a sensibilidade mas se você quer um amor platônico, vai ter que batalhar sua alma gêmea e ser feliz. Abraços, Irene.
E já que vc citou os gregos, essa associação de prazer e dor vem lá de Zeus. Diz que as serpentes que tinham esse nome eram inimigas e brigavam muito. Na tentativa de fazê-las parar, Zeus as une para todo o sempre. Daí sempre os dois sentimentos serem assim, tipo cu e bunda, unha e carne. Mas esse papo de amor sem corpo, sem carne, hum... sei não... tira dele a maior parte da graça. Bom texto, apesar da escorregada platônica. bjos
Caramba, o que são esses comentários? Na leitura do artigo torna-se claro que a referência ao “amor platônico” diz respeito a um uso ligado ao senso comum e não propriamente à filosofia de Platão. É injusto falar que o autor “cita os gregos” porque ele não o faz, logo, criticá-lo por esse motivo perde a legitimidade. Para mim, o artigo trata sobre o amor de forma despretensiosa e subjetiva, o que implica que não somos obrigados a concordar com esse ponto de vista, mas não devemos nos vendar para o fato de que é instigante e provocadora a noção de amor de que nos fala o autor. Livre de qualquer ameaça carnal que representaria o fim, o começo do fim – para tanto basta vermos os filmes de Ozon e Antonioni –, o autor propõe uma relação que desafia o estatuto do “amor” visto por lentes possessivas. Quanto aos comentários, não sei se chegaram a tocar no texto...
Lucas, realmente é uma pena você somente ter conhecido a linguagem urbana de Renato Russo na metade dos anos 90. Tenho 33 anos e tive a oportunidade de um dia, em 1986, ouvir pela pela primeira vez "Andrea Doria", que está no LP DOIS, com os seguintes versos: "quero ter alguém com quem conversar, alguém que depois não use o que disse contra mim". Este é o verdadeiro amor que Renato Russo gostava de expressar, sem amarras e amplo na sua totalidade. Na verdade, entendemos que o amor é tudo ou nada. E, parafraseando Russo, quem inventou o amor?Me explica por favor?