"Os assassinos estão livres, nós não estamos" Renato Russo em "O Teatro dos Vampiros"
Para os verdadeiros artistas não existe uma separação entre arte e vida. Essa separação esquizofrênica só existe para os acadêmicos, que se acostumaram a pensar apenas com a cabeça e não com as vísceras. E se vamos falar em Renato Russo, o que interessa são as entranhas e não o raquítico cérebro.
Existe uma tradição dentro do rock de uma espécie de artista maldito, semelhante à mesma tradição que existe na literatura com nomes como o de Rimbaud, Verlaine, Lautreamont e Oscar Wilde. No caso do rock, a tradição é marcada pelo abuso de álcool, cocaína, alucinógenos e sexo (às vezes com o tempero do homossexualismo declarado e/ou transformismo encenado). Esta tradição existe também na filosofia, na música, na pintura, no teatro e no cinema como foram os casos de Nietzsche, Charlie Parker, Van Gogh, Antonin Artaud, Bukowski, Kerouac, Pasolini (para citar apenas alguns). Se eu fosse falar do jazz, mencionaria Charlie Parker e Billie Holliday apenas para não esquecer deste estilo também grandioso nas suas pulsões incontroláveis. Sem esses casos, com certeza a arte e o pensamento seriam apenas um exercício masturbatório e ralo de intelectuais acadêmicos.
No caso do rock, que também necessita do fertilizante da loucura e da vida intensa (existe diferença?), temos os nomes de Jim Morrison, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Cazuza, Cássia Eller, dentre outros tantos não menos importantes. São figuras que levaram a arte mais a sério que a própria vida. Merecem o pedestal por isso, além de outras virtudes que comentaremos em seguida. Para ser mais preciso, e é bom ser preciso neste momento, não separaram a arte da vida e fizeram da própria vida uma obra de arte. Conectando criação e existência, compuseram para nós, simples mortais, músicas que brotavam de seus sentimentos mais profundos, como uma espécie de extensão física de seu próprio interior em efervescência.
Vamos nos deter agora no caso específico de Renato Russo. Quando olhamos ou ouvimos o som do Legião Urbana é evidente que o que nos atrai imediatamente é a presença de Renato Russo, como quando ouvimos o The Doors e não conseguimos sentir senão a presença peremptória de Jim Morrison. O mesmo ocorre quando ouvimos o Barão Vermelho e só pensamos em Cazuza. Não se trata de desprezar os outros músicos que, por sua vez, sustentam de alguma forma a presença dessas figuras à frente do palco. A questão é que estes nomes citados, e o Renato Russo é um deles, conseguem acumular em si mesmos uma força poética e uma presença sedutora que acabam por silenciar os outros componentes da banda. E não é apenas pelo fato de que eles são os cantores que isso acontece, se não nem lembraríamos do nome de Jimmy Page, do Led Zepellin, para ficar com apenas um exemplo. Não, o caso é mais complexo e diz respeito à própria força presencial dessas figuras, à sua capacidade de terem uma dimensão artística que supera a presença dos outros membros, de trazerem em si todas as tensões existenciais que o público recebe como uma bomba sobre suas vidas.
Um show começa. Renato Russo está diante do microfone, empunha-o como se fosse uma arma. A arte é perigosa. Numa república de conformados, então, mais ainda. Olha para o público com uma certa timidez. Mas não é isso, é a alma melancólica de poeta perigoso ameaçando nossas seguranças compradas com cartão de crédito que se impõe. Angústia, dor, solidão, ódio, descrença, crítica à estupidez política tupiniquim. Sua voz expressa o calor de um caldeirão incendiado pelo brilho e horror da vida, tudo ao mesmo tempo. "Parece cocaína, mas é só tristeza".
Para Renato Russo a arte e o álcool substituem a gilete que sangraria o pulso ou o coquetel molotov (tão necessário, às vezes) que poderia levá-lo à prisão. Necessidades de quem conhece as perversidades da vida e se sente incomodado com elas. Por isso, empunhar o microfone é coisa séria, angústia primitiva, fruto de uma necessidade vital de estar dentro do rock e da vida como o rock e a vida estão dentro dele. Tornar-se músico é responder a essa vibração de uma forma efetiva. É também querer ter um instrumento de contaminação para todos que passarem por perto.
Concentram-se na sua voz a ira política, numa crítica feroz ao nosso otimismo forjado pelos poderosos: "Nas favelas, no senado, sujeira por todo lado... e todos acreditam no futuro da nação... que país é este?", e a dor do amor: "A tempestade que chega é da cor dos seus olhos". E também há ainda a doçura melancólica: "é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã" ou "sempre precisei de um pouco de atenção... esse é o nosso mundo". Quem não se rende?
O público de Renato Russo é fiel, ligado a ele por uma intensidade sentimental-artística juvenil, rebelde, inconsolável, selvagem. Quando Renato pergunta: "Que país é esse?". A resposta é imediata e certeira: "É a merda do Brasil".
Sim, resposta certeira; ou alguém consegue ser otimista num país em que negros são abatidos como vermes por forças repressivas que os transformam em marginais apenas por causa de sua cor, onde crianças crescem ao lado de esgotos a céu aberto, onde mães deitam lágrimas sobre filhos que dormem chorando sem um mísero copo de leite para matar sua fome noturna, onde doentes morrem em filas de espera que mais lembram campos de concentração nazista, onde o projeto educacional do governo não é mais que uma fraude ou piada, onde os políticos são apenas uma ameaça aos bens públicos?
O tipo de voz que sempre precisamos é como a de Renato Russo, dolorida, sincera, feroz, crítica, amarga, melancólica, descrente, arrasante, cristalizada pelo pó da dor e perfumada pelo álcool do amor, soltando a fumaça da poesia como um xamã que revela o teatro de sombras que é a nossa existência: grandiosa e medíocre, fugaz e brilhante - ao mesmo tempo.