"Ele era um estudante como qualquer outro, dotado de início de um jeito curioso, depois, do maior talento que já houve neste século."
"Terminado o curso, ficou claro que Glenn era já melhor pianista do que o próprio Horowitz; de repente, tive a impressão de que Glenn tocava melhor do que Horowitz; e, daquele momento em diante, Glenn passou a ser para mim o virtuose do piano mais importante do mundo todo; de todos os muitos pianistas que ouvi a partir de então, nenhum tocava como Glenn, nem mesmo Rubinstein, que sempre amei, era melhor do que ele."
Quem sobrevive ao contato com o gênio? Só o outro gênio? Às vezes, nem o outro gênio. Mas então não é gênio: se gênio fosse, não teria abalada a sua genialidade.
Gênios, encontramos um ou dois na vida. Às vezes, nenhum. Nenhum gênio, a vida inteira. Dizem que nasce um gênio a cada duzentos anos. É possível. Eu acho que já encontrei um gênio... Será que era mesmo?
Nélson Rodrigues, ele próprio um gênio do teatro, dizia de seu irmão, Roberto Rodrigues, que faleceu precocemente: "Foi o único gênio que conheci". Não era verdade; havia pelo menos mais um gênio - esse dos "sports" - na família: Mário Filho, que criou o caderno de esportes dos jornais, e que dá nome ao estádio do Maracanã.
Enfim, O náufrago (Companhia das Letras, 2006, 140 págs.), de Thomas Bernhard, é sobre um gênio, Glenn Gould. Na verdade, sobre o encontro do narrador do livro, e do náufrago em questão, com esse gênio pianístico.
A história é muito simples. Foram os três estudar com Horowitz, Vladimir Horowitz, no Mozarteum, em Salzburgo. Todos com o desejo de se tornar virtuoses do piano, mas apenas um realizou o feito. Por quê?
Por causa das Variações Goldberg, de Bach. Quando Wertheimer, o náufrago da história, ouviu a execução de Glenn Gould, o pianista américo-canadense que de fato existiu, desistiu imediatamente do piano. Wertheimer, que era possivelmente o maior talento do Mozarteum na época, percebeu que nunca executaria as Variações Goldberg daquele jeito. Mesmo sendo o talento máximo da escola, dobrou-se ao gênio, abdicou da carreira de concertista e aposentou o piano definitivamente. O narrador do livro, também: ao perceber que não poderia ser o "máximo", como sempre tinha sido em tudo, desistiu igualmente, fechou a tampa do piano e se desfez dele da maneira mais brutal possível. Ele escreve:
"De fato, não há nada de mais medonho do que ver uma pessoa tão grandiosa que sua grandiosidade nos aniquila, ter que assistir a esse processo, suportá-lo e por fim acabar inclusive por aceitá-lo, ao mesmo tempo em que na verdade não acreditamos num processo desses, não enquanto ele não se torna para nós um fato irrefutável, (...) quando então já é tarde demais."
Há uma cena em Gênio Indomável - que é só um filme, não uma obra de gênio - em que o matemático, detentor da Fields Medal, olha para o gênio e admite: "Eu vivia bem, eu era um sujeito feliz - mas, depois de conhecer você, nunca mais tive tranqüilidade. Depois de saber que você existe, acabou a minha paz de espírito". (Tudo bem, ele não disse exatamente isso, mas vocês pegaram o sentido.)
Wertheimer, no livro, ao descobrir-se "sem talento para a música", impotente diante de um Glenn Gould, entrou num processo de naufrágio. Depois de aposentar o piano, recolheu-se em casa - era herdeiro de uma família abastada da Áustria - e procurou se dedicar à filosofia. Foi ser aforista, mas fracassou nisso também, e na vida, ainda. Possessivo, Wertheimer, o nosso náufrago, tiranizou a irmã, que era a única pessoa que ainda tinha no mundo - enquanto arrasou, simultaneamente, toda e qualquer empresa do narrador da história. Sem talento para a música, acabou melancólico e, por fim, "sem talento para a vida":
"Nós nos deparamos continuamente com esses náufragos e homens sem saída (...) Temos o maior trabalho para nos salvar desses náufragos e homens sem saída, pois tanto os náufragos quanto os homens sem saída fazem de tudo para tiranizar o mundo a seu redor, para acabar com seus semelhantes."
O narrador tenta racionalizar o processo, para ver se escapa do redemoinho - mas é tragado por ele do mesmo jeito. Se Wertheimer se dedica aos aforismos, essa "filosofia de calendário" (como a chama), o narrador dedica algumas décadas de sua existência à escrita - e quase uma década inteira a um ensaio sobre Glenn Gould, que nunca conclui; por achar-se, ora, sem concentração ou por achá-lo, muitas vezes, inautêntico.
Como Wertheimer, nunca mais em seu juízo perfeito depois da consagração de seu colega de Mozarteum (Gould), o narrador procura refúgio em outra atividade que não a música - mas similarmente fracassa:
"Vivemos tentando escapar de nós mesmos, mas fracassamos sempre nessa tentativa, quebramos a cara, porque nos recusamos a compreender que não podemos escapar de nós mesmos, a não ser por meio da morte."
Nietzsche dizia que nunca apreendemos totalmente o gênio. Quando pensamos que o compreendemos, e achamos que alcançamos sua genialidade, estamos, na verdade, reduzindo o gênio à nossa estatura.
Para Wertheimer, o náufrago, e para o narrador da história, o que resta depois da constatação do fracasso na música, na vida e em todas as demais iniciativas? A morte; nem precisa responder. Wertheimer suporta a sua infelicidade apenas até os cinqüenta:
"Quando me levanto, penso com repugnância em mim mesmo e tenho pavor de tudo o que me espera. Quando me deito, só sinto o desejo de morrer, de não acordar mais, mas então acordo, e esse processo horroroso se repete, e continua enfim se repetindo por cinqüenta anos."
Sobre os cinqüenta, o narrador, mais especificamente, complementa:
"Quando passamos dos cinqüenta, nós nos vemos como pessoas vis, sem caráter; a questão é quanto tempo suportamos essa situação. Muitos se matam aos cinqüenta e um (...) Aos cinqüenta e dois também, mas mais aos cinqüenta e um. Nesse qüinquagésimo primeiro ano, tanto faz [a causa mortis] (...) A causa é com freqüência a vergonha da fronteira ultrapassada que sente o qüinquagenário ao completar cinqüenta anos. E isso porque cinqüenta anos são mais do que suficientes."
Glenn Gould, o herói dos dois, morre aos cinqüenta e um, conforme contam seus biógrafos. Em tal estado de clarividência, segundo nosso narrador, no presumível ápice de seu gênio, que não lhe resta nada mais senão o derrame. Wertheimer, o náufrago, mais o narrador, vão visitá-lo uma última vez, nos EUA, nessa época, e constatam com unanimidade que o fim de Glenn está próximo.
E não apenas o fim de Glenn, mas o de Wertheimer também:
"(...) a morte de Glenn (...) [foi] letal para ele, e a palavra letal ele pronunciou com uma precisão monstruosa. Nós não precisamos estar ao lado de uma pessoa para nos sentirmos ligados a ela mais do que a qualquer outra, disse. A morte de Glenn afetou-o profundamente."
O náufrago, depois de abandonado pela irmã - que se liberta de suas garras, quase aos cinqüenta (!), casando-se com um suíço -, escolhe o caminho do suicídio. Não tem uma morte nobre, como a de Glenn Gould - "em combate", como diria Wittgenstein -, prefere enforcar-se numa árvore. Quase de frente para a casa da irmã, que o havia abandonado. Mas é uma morte banal; assim como tinha sido sua vida: banal.
O livro, então, começa com o nosso narrador na pousada em que os três, em sua juventude, costumavam se hospedar. O livro todo, portanto, é uma sucessão de lembranças que, na cabeça do narrador, brotam enquanto ele espera para ser atendido pela dona da pousada. Wertheimer, o náufrago, havia falecido (logo depois de Glenn), e o narrador, pela primeira vez, estava ali sozinho. Cercado de memórias, das falas dos outros e dos pensamentos seus.
Glenn Gould, o gênio, havia aniquilado os outros dois? Ou estes já eram fracassos anunciados, muito antes do Mozarteum, de Salzburgo e de Horowitz? O narrador da história não tem uma resposta definitiva para essas questões. Talvez porque, como o seu náufrago, tivesse vivido suficientemente atordoado e, sendo na mesma medida afetado pelo naufrágio em si, não o admitisse, como sobrevivente que era, embora não lhe tivessem servido para nada suas teorias... O que escrevia sobre o náufrago - um fanático pela infelicidade e um estudioso do sofrimento humano - o narrador podia aplicar, justamente, a si:
"Na teoria, ele dominou todos os desconfortos da existência, todas as situações de desespero, todo o mal que nos consome no mundo, mas, na prática, nunca, jamais foi capaz de fazê-lo. Assim sendo, e contrariamente a suas próprias teorias, ele continuou afundando, até o suicídio."
Até o fim do livro, não temos notícia do suicídio do narrador, mas poderia ter acontecido. Afinal, é uma história sem saída. O livro que, como o ensaio, começa com Glenn Gould, e seu gênio incontestável, então termina como um amontoado de espasmos meditativos - sobre o encontro com o gênio, sobre a sobrevivência depois dele, sobre a morte e sobre o fechamento de um ciclo (a vida?). Assim como o gênio está marcado pelo seu destino, seu antípoda também está condenado? Para que alguns se salvem, toda a humanidade deve perecer?
"Glenn tinha o maior apreço pela palavra náufrago e por seu significado; lembro-me bem; foi na Sigmund-Haffner-Gasse que o náufrago lhe veio à mente. Quando observamos as pessoas, só vemos mutilados, Glenn nos disse certa vez; mutilados interiormente, exteriormente ou ambas as coisas, é só o que se vê, pensei. Quanto mais as observamos, mais mutiladas elas nos parecem, porque estão de tal forma mutiladas que não queremos admitir, mas é como estão. O mundo está cheio de mutilados. Caminhamos pelas ruas e só vemos mutilados. Convidamos alguém para nos visitar e recebemos um mutilado em casa, disse Glenn, pensei."
Apreciei sua matéria sobre o Glenn Gould. Um amigo meu, pianista amador, já me havia mencionado o seu GÊNIO, mas o seu artigo sobre o livro do Thomas Bernhard despertou-me para saber mais sobre o Gould. Músico amador, tentarei ouvir o que há dele, ou pelo menos alguma coisa dele, para que meus ouvidos medíocres possam aquilatar melhor o que falam. Atenciosamente, Dinaldo Borba de Oliveira, Salvador, Bahia
Sem dúvida, um grande livro que li na primeira edição brasileira (Rocco). Tua resenha (excelente) faz jus a ele. Sou grande admirardor de Bernhardt - li todos os seus livros - e de Gould. Grande abraço.
É precisamente esse o papel do resenhista literário. Podemos criar amor ou ódio por ele, logo de cara. Podemos não concordar uma vírgula com o que diz sobre um algum artista e/ou obra: Como pode ele dizer uma asneira dessas sobre fulano? Ou: Quem esse pensa que é pra falar isso de uma obra que nunca ouvi falar. Etc etc... No mínimo, deixa-nos curiosos para desvendar o porquê de seu texto. Gould, a quem planejo ouvir desde tempos imemoriais, parece-me mais próximo depois de teu texto, JDB. E tenho que fazê-lo rapidamente ou... E se ao ouvi-lo o que será de mim com meus alfarrábios delirantes. Terão alguma serventia? Sua técnica (ou sei lá o quê) ao piano dizimará minhas possíveis aspirações literárias? Serei mais um náufrago a balançar-me em frente à alguma editora que nunca, em verdade, esteve lá? Serei mais um Wertheimer ou tenderei a ser um milésimo de um quinto de Bernhard? De todas as dúvidas ponderáveis só não me assalta uma: tenho a urgência em ouvir Gould. Não dá para adiar mais.