Quarta feira, 26 de julho de 2006. Onze horas da manhã na fria capital gaúcha. Milhares de jovens estudam química, física, biologia, matemática, português, inglês, centenas de meninas trocam olhares com centenas de meninos e alguns matam aula para namorar longe da escola, enquanto outros milhares aproveitam a manhã livre para treinar musculação ou dormir até mais tarde. Quarta feira, 26 de julho de 2006. Onze horas na fria capital gaúcha. Bairro São Geraldo. Através de um fórum de discussão, um jovem de 16 anos anuncia seu suicídio pela internet.
Até aqui a história não surpreende, afinal a adolescência é um período repleto de instabilidades e fóruns e blogs são espaços públicos e íntimos ao mesmo tempo em que se pode confessar algo assim. Ocorre que aquela viagem iniciada às 11 horas da manhã não teria volta: os demais participantes do fórum incentivam o jovem porto-alegrense, dão dicas, acenda quatro bocas de gás, não se preocupe com o calor, tenha calma, vá em frente. Uma menina do Canadá, amiga do jovem, estupefata, liga para a polícia local e às 15h45 a Polícia Federal brasileira é informada do caso pelos canadenses. "Quando chegamos, tocamos interfone, campainha, e nada. Entramos e quando chegamos ao banheiro ele estava enforcado no cano do chuveiro", conta o delegado de Homicídios e Desaparecidos Juliano Ferreira, que foi à casa do garoto com a Brigada Militar assim que informado pela PF.
A delegada da Criança Vítima, Eliete Rodrigues, que ficou responsável pelo caso em razão da idade do jovem, determinou perícia em seu computador e afirma que "tudo indica que os participantes sejam de fora do país, não só do Estado". Ainda assim lembrou que a indução, instigação ou auxílio ao suicídio é crime com pena de dois a seis anos de reclusão.
O caso chocou tanto nossa fria cidade que até os meios de comunicação, que normalmente têm o suicídio como tabu, noticiaram o fato em suas manchetes. Não propriamente pelo suicídio - o Rio Grande do Sul tem o maior índice de suicídios do país, 16,6 casos para cada grupo de 100 mil pessoas -, mas pelo envolvimento da internet no caso. E a este fato vieram se somar as brigas de torcidas marcadas on-line (quem não lembra dos banheiros queimados no Grenal) e os abusos eleitorais cometidos na rede para dar eco aos que insistem em colocar a internet no banco dos réus. Os pais, alarmados, falam em tirar o computador dos quartos dos filhos e limitar o acesso à rede. Os professores, despreparados, apontam a importância dos livros.
Mas também os livros, como quando Os sofrimentos do jovem Werther foi lançado na Alemanha em 1774 e provocou uma onda de suicídio entre os jovens, foram alvo de questionamentos. Não apenas essa história de Goethe, mas os objetos em si. E hoje os livros não sofrem nenhum tipo de censura, ainda que, como diria Eduardo Galeano, os preços já os proíbam
Com a internet a situação é bem diferente. Jovem, incompreendida e revolucionária, tem sido apontada como modelo e metáfora do mundo contemporâneo, onde qualquer pessoa é produtora de conteúdo, desvirtuando lógicas milenares de transmissão de conhecimento. Na era digital o professor lê um artigo do aluno, o pai aprende com o blog do filho e o leitor sugere pautas para seu jornal. Não é mais preciso um capital considerável para se publicar idéias, angústias ou mesmo para defender bandeiras, expondo como nunca as rachaduras de sociedades antes vistas como homogêneas.
O caso do jovem gaúcho, embora realmente chocante, não é inédito na Era Digital. Em julho de 2005 um blogueiro italiano narrara seu suicídio pela internet, e pelo menos dois pactos suicidas pela internet foram registrados no Japão, em outubro de 2000 e fevereiro de 2003.
Culpar a internet pelas mortes, pelas brigas no Grenal ou pela baixaria eleitoral é confundir sobremaneira meio e mensagem, ignorando as reais razões que levam um jovem a cometer ato tão extremo. E aproveitar-se disso para levantar a possibilidade de restrições para o uso da rede é um crime para a democracia. Imagine se o golpe de 64 fosse articulado nos dias de hoje quantos Ziraldos o Brasil não teria, quantos Pasquins, quantos manifestos e movimentos apócrifos, muitos internacionais, lutando pela liberdade de imprensa. Imagine se a internet fosse uma realidade na Berlim da Guerra Fria quantas famílias não ficariam tão separadas, quantas mentiras não se solidificariam e quantas vidas não seriam poupadas.
Mas a tecnologia da grande rede não é imune à ambição dos ditadores. O Google, a fim de obter autorização para o funcionamento do site na China, concordou em omitir o conteúdo não-aprovado pelo governo chinês: "Para operarmos na China, tivemos de remover informações disponíveis no Google.cn, obedecendo às leis, regras e políticas locais. Apesar de esta ação não estar de acordo com nossa missão, deixar de oferecer o serviço seria ainda pior", justificou Andrew McLaughlin, do conselho de políticas da empresa, à agência de notícias Reuters. Recentemente também a Microsoft reconheceu que seu sistema de blogs em chinês impede literalmente que se escrevam termos como "liberdade" ou "democracia": "Se para o Google e a Microsoft censurar suas páginas é um preço bom para entrar no mercado chinês, quem poderá dizer o contrário? Não pense na IBM, ela já é chinesa.", questiona o jornalista Gustavo Mansur.
Fica claro, desta forma, que pais e professores não deveriam assustar-se tanto com o computador nem com a rede, e sim com as tentativas de encobrir as rachaduras e diferenças sociais ao invés de enfrentá-las e resolvê-las. A vida do jovem Werther porto-alegrense não podemos trazer de volta, mas com um tanto de conversa muitas outras podemos salvar sem precisar crucificar uma tecnologia.
Mesmo nesta era digital em que vivemos, nada mais valioso, produtivo, e benéfico, na busca constante pelo equilíbrio entre os seres, do que uma boa conversa: "tête à tête", de mãos dadas, numa verdadeira troca de energia positiva. Apesar de um pouco chocante, vale à pena ser lido o texto em epígrafe. Achei-o interessante porque só ratifica uma das premissas que sempre fundamentam meu pensamento: em qualquer que seja a situação de conflito, "uma boa e equilibrada conversa" é o que importa e se faz imperativo; uma conversa onde os interlocutores realmente se escutem, deixando de lado as agressões; mesmo que, em determinadas circunstâncias, careçam de um "mediador". Em última análise, a conversa ainda é um dos mais eficazes meios para exposição de idéias, definição de posicionamentos e entendimentos entre as pessoas.
É o sistema de "bode expiatório", tão presente na cultura ocidental. O bode era enviado ao deserto com papéis colados nele onde estavam escritos os pecados dos moradores da vila. Hoje, a tecnologia e a mídia são os bodes expiatórios. O mais indicado e interessante seria, mesmo, discutir os conceitos reais envolvidos no fato: a cultura, a sociedade de consumo, a solidão das cidades modernas, a desesperança e falta de perspectiva atual. Mas discutir é complicado, o bode expiatório é muito mais fácil. Desliguem os computadores e a TV então.