Identificar uma obra-prima no cinema é tarefa muitas vezes subjetiva. No caso do cinema de Ingmar Bergman, nem tanto: alguns de seus filmes podem receber a tão polêmica alcunha sem medo ou hesitação, pelo simples motivo de serem, essencialmente, o que de mais lindo e intenso que a tela grande pode proporcionar. O espectador agora tem a chance de ver o provável (e assumido) último filme de Bergman. Saraband foi lançado em DVD no país e já está disponível nas locadoras. Oportunidade de conferir na tela o ocaso de um cineasta fundamental que, aos 88 anos, ainda guarda muito a dizer da natureza humana.
Sueco nascido em 1918, na cidade de Uppsala, Bergman teve forte formação luterana, por conta da rígida criação do pai. Isso influiria em toda a sua obra. Estudou em Estocolmo e iniciou carreira artística no teatro. Foi nos palcos que adquiriu boa parte dos conceitos e idéias que desenvolveria à perfeição no cinema - arte na qual começou como roteirista. O primeiro filme, Crise, data de 1945, desde então com as obsessões típicas que permeariam os filmes: religiosidade à flor da pele, pecado, culpa e morte, sempre a morte.
Porque Bergman é, acima de tudo, um cineasta fúnebre, pesado, carregado de tristeza e desilusão. Não foi sempre assim: dirigiu comédias também, como o curioso Sorrisos de uma noite de amor (1955), inspirado em Shakespeare. Só que foi no drama que o status de gênio realmente tomou forma. Um de seus filmes mais emblemáticos e referenciados é O Sétimo Selo (1956), em que, ao retornar das Cruzadas, um homem se encontra cara a cara com a morte e, num jogo de xadrez, define o rumo da humanidade. Curiosamente, há otimismo no desfecho, o que vai contra muito do que Bergman costuma fazer, mas ainda assim resume boa parte das características do diretor.
Morangos Silvestres (1957) veio logo em seguida, novamente tendo a morte como tema principal - na trajetória do velho que relembra grandes momentos de sua vida. O Rosto (1958) tem no título o que mais fascina o sueco: a face humana, as rugas, as expressões de amor, ódio, medo, frustração. Poucos cineastas dão tanto valor ao rosto, herança vinda provavelmente do dinamarquês Carl Dreyer e seu A Paixão de Joana D'Arc (1928). Os ângulos fechados acima do pescoço tiram quaisquer impressões de teatro que o cinema de Bergman ainda possa manter - já que, no fundo, ele encena na tela pequenas tragédias dramáticas, em linguagem que remeteria aos palcos não fosse a consistência e o impacto de sua câmera.
Isso fica mais explícito em Gritos e Sussuros (1972), considerado por muitos (inclusive por este colunista) o auge de Bergman. Apostando na simplicidade de recursos, o sueco entrega às atrizes (as parceiras tradicionais Harriet Andersson, Ingrid Thulin e Liv Ullmann), auxiliadas pela fotografia avermelhada e pelos simbolismos da imagem e do som, toda a complexidade de uma crise familiar iniciada - como não poderia deixar de ser - pela aproximação da morte. Num processo de completa desintegração, Bergman descasca a personalidade de cada personagem, chegando a dissecar "como uma cebola", segundo o próprio roteiro, cada ruga do rosto de Liv Ullman, a atriz-fetiche, a musa maior, do sueco, mulher com quem ele inclusive se casou e teve filhos. Gritos e Sussurros é a grande prova de que o cinema pode conjugar arte e humanidade, dor e agonia.
Cena de Gritos e Sussurros
Alguns filmes do diretor também têm tom operístico, como A Fonte da Donzela (1959) e A Flauta Mágica (1975), sendo este último uma adaptação quase literal da ópera de Mozart. Bergman ainda conseguiu demonstrar na tela a inquietação da chegada de um regime totalitarista em O Ovo da Serpente (1979), em que cunhou a expressão usada ainda hoje para falar do pré-nazismo. E também captou a delicadeza das relações amorosas através do olhar de gente apaixonada e confusa - são os casos de Cenas de um Casamento (1974) e Fanny e Alexander (1982).
Listar o que é obrigatório para ver de Bergman é impossível. Além dos citados, são indispensáveis O Silêncio (1962), Sonata de Outono (1978) e Persona (1966), este um dos mais maravilhosos e tristes estudos da personalidade feminina, resumidos na presença de Bibi Andersson e Liv Ullmann. Mas também Através de um Espelho (1960), A Hora do Lobo (1968) e Depois do Ensaio (1984) não podem jamais faltar. O ideal é simplesmente ver todos. Mas vale o aviso: nunca assista a um Bergman seguido de outro. Seus filmes têm pesos de concreto, batem fundo na alma e precisam sempre ser refletidos e digeridos por algum tempo.
E chegamos a Saraband. Realizado com câmera digital exclusivamente para a televisão, teve uma exibição em canal sueco e chegou a passar em salas comerciais na França. Aqui no
Brasil, foi direto para o disco doméstico, o que não significa que o filme não mereça atenção - existe uma falsa idéia de que filmes que vão direto para as locadoras se deram mal no exterior ou são tão ruins que a distribuidora não bancou nos cinemas, mas isso é uma outra história. Incrível como Bergman torna este seu dito filme final quase um epitáfio
Liv Ullman olha para a câmera e relembra o passado. É assim o início do fim de Ingmar Bergman. Saraband retoma os personagens da minissérie (transformada em longa-metragem) Cenas de um Casamento e mostra uma espécie de epílogo de toda a cinematografia do diretor. A melancolia das imagens e diálogos de Saraband reflete situações de dor. O foco é a perda. Perda do amor, da inocência, da felicidade, da vida.
Perda da vida, morte: é isso que realmente move os filmes de Bergman. Não é diferente aqui. A principal personagem não é Liv Ullmann, interpretando Marianne, ex-esposa de Johan. É Anna, a nora falecida de Johan, a mãe de Karin, a mulher de Henrik. Todos os personagens gravitam em torno dessa presença ausente, dessa defunta que deixou marcas profundas em cada um.
Liv Ulmann e Erland Josephson em Saraband
A sarabanda é uma dança espanhola, mas também um movimento musical difícil de ser atingido e que, quando existe, é sublime. O caminho de Karin, filha de Anna, é uma sarabanda: ela está presa ao desejo do pai desde a morte da mãe. Seu percurso rumo à libertação é o mote do filme, e a encenação cíclica de Bergman (os personagens aparecem em duplas, sempre tendo um dialogando com alguém da cena anterior) parece ir ao encontro do desfecho de uma saga de pessoas angustiadas.
Desfecho que não se refere só a Saraband, mas ao próprio Bergman. Quando Liv Ullmann ressurge de frente a uma mesa, novamente a nos olhar, a câmera sufocante do diretor se aproxima daquele rosto enrugado e olhos lacrimejantes, como a assumir que a vida, apesar das batalhas pessoais, é mais cruel do que se quer reconhecer. No cinema de Ingmar Bergman, não é qualquer um que consegue atingir a sarabanda.
Bergman só é um cineasta porque produziu filmes; a frase é, desculpe-me, óbvia. Lidando com cinema é natural (ou espera-se) que alguma coisa da especificidade (argh!) cinematográfica apareça na obra. Assim é que Bergman acaba focando os rostos ou usando algum corte, alguma montagem, tipicamente cinematográfica. Mas ele faz isso quase relutantemente. Bergman "pensa" como diretor de teatro. "Gritos e Sussurros" ou "O Sétimo Selo" poderiam ser facilmente montados em palco, sem grandes problemas. Se alguém tentar uma coisa dessas com, digamos, "2001 - Uma Odisséia no Espaço", essa eu queria ver. Mas isso realmente não importa. Bergman é um grande autor com seu grande e sombrio teatro que esfarela questões sem importância. Um teatro que não é pra todo mundo, não é pra mim, que preciso de pelo menos um ano de intervalo entre dois filmes dele, para me recompor de toda aquela morbidez cristã excessiva.